quarta-feira, 27 de julho de 2022

TRIPs e os acordos bilaterais

 

TRIPs estabelece um padrão mínimo de proteção à propriedade intelectual. Nada impede que dois países assinem um acordo prevendo um nível maior de proteção à propriedade intelectual, por exemplo, um prazo de vigência de patentes de 50 anos.

De fato o Acordo TRIPs busca restringir tais acordos bilaterais pelo Artigo 4o referente ao tratamento de nação mais favorecida: “Com relação à proteção da propriedade intelectual, toda vantagem, favorecimento, privilégio ou imunidade que um Membro conceda aos nacionais de qualquer outro país será outorgada imediata e incondicionalmente aos nacionais de todos os demais Membros”. Para o indiano Jagdish Bhagwati, da Universidade de Columbia, “Os acordos bilaterais estão destruindo o conceito de nação mais favorecida (segundo o qual não pode haver discriminação entre diferentes fornecedores, isto é, se um país faz uma concessão a uma determinada nação, precisa fazer a mesma concessão para todos os países membros da OMC). Esse princípio é central para a eficiência do comércio e fundamenta a OMC. Nós estamos vendo uma epidemia desses acordos bilaterais”.[1]

A CUP em seu Artigo 2º a respeito da igualdade de tratamento nacional estabelece que: “Os nacionais de cada um dos países da União gozarão em todos os outros países da União, no que se refere à proteção da propriedade industrial, das vantagens que as leis respectivas concedem atualmente ou venham a conceder no futuro aos nacionais, sem prejuízo dos direitos especialmente previstos na presente Convenção”. Bodenhausen destaca que o Artigo 2º da CUP quando se refere “as respectivas leis” está fazendo referência às legislações nacionais, desta forma, os países da União de Paris podem assinar Tratados bilaterais com outros Estados, por serem estes considerados Acordos Internacionais, que não substituem por completo a legislação nacional.[2] O Artigo 19 da CUP estabelece que “Fica entendido que os países da União se reservam o direito de, separadamente, celebrar entre eles acordos particulares para a proteção da propriedade industrial, contanto que esses acordos não contrariem as disposições da presente Convenção”. Em seu comentário Bodenhausen destaca que a aplicação destes Tratados bilaterais ou multilaterais pode estar limitada aos nacionais dos Estados que concluam tais Tratados.[3]

Se um país X estabelece um acordo bilateral com o país Y isentando-o de taxas para o depósito de patentes, tal vantagem torna-se automaticamente estendida a todos os demais países. Como estratégia para elevar o nível de proteção à propriedade intelectual os Estados Unidos assinou Acordos bilaterais com Jordânia, Chile, Omã e Colômbia, no intuito de que no futuro, quando forem discutidos a revisão de TRIPs, tais acordos bilaterais possam ser incorporados ao texto final do Acordo, de forma que não exista mais uma polarização entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, o que facilitaria a aprovação de níveis mais elevados de propriedade intelectual.

Pedro Roffe destaca que no Acordo de Livre Comércio (FTA) entre Estados Unidos e Chile este último questionou quais seriam os possíveis efeitos do princípio de nação mais favorecida (MFN) previsto em TRIPs. Por este princípio todas as vantagens e privilégios previstas no acordo TRIPs-plus seriam estendidas aos demais países imediatamente e de forma incondicional.[4] Por este princípio, presente no GATT, se os países X e Z assinam acordo bilateral, X concorda em conceder a Z alguns privilégios até então não concedidos a Z. Pelo princípio de nação mais favorecida Y pode pleitear as vantagens concedidas a Z, modificando-se assim a relação original entre X e Y, uma vez que Y recebe tais vantagens sem lhe ser imposto qualquer contrapartida. No âmbito do GATT para remediar esta situação alguns países concedem tais benefícios a Y na condição de obter reciprocidade, temos portanto um MFN condicional. O NAFTA, por exemplo, estabelecido antes de TRIPs segue esta linha de MFN condicional, na medida em que aplica o princípio de MFN apenas a investidores em situação similar as consideradas no Acordo e não a qualquer outro membro.

TRIPS, contudo, eliminou estas condicionalidades na medida em que o Artigo 4º expressamente prevê a aplicação do MFN incondicionalmente aos nacionais de todos os outros Membros, prevendo algumas situações de exceção, especialmente para Acordos internacionais relativos à proteção da propriedade intelectual que tenham entrado em vigor antes da entrada em vigor do Acordo Constitutivo da OMC. Apesar disso continua válido o entendimento de que a aplicação da cláusula MFN é governada pelo princípio Ejusdem Generis, que estabelece que esta se aplica apenas a questões que pertençam a mesma matéria ou a mesma categoria de participantes a que a cláusula se refere.[5]

Para Joseph Stiglitz os acordos bilaterais são considerados legais pelas regras da OMC apenas quando conduzem a mais comércio do que desviam: “deveria haver um tribunal internacional para determinar se esses acordos propostos são legais, com o ônus da prova a cargo dos países que tentam fragmentar o sistema de comércio mundial”.[6]

Na avaliação de Maristela Basso Estados Unidos e Europa tem estabelecido uma série de acordos bilaterais procurando estender os níveis de proteção à propriedade intelectual. Estes acordos em geral procuram: i) a extensão do prazo das patentes, ii) limitação do licenciamento compulsório, iii) obrigatoriedade da exclusividade de dados de testes de produtos farmacêuticos por cinco anos, iv) associação de autoridades de patentes e reguladoras, estabelecendo um vínculo (linkage) entre o registro do medicamento e a proteção à patente[7]. O Acordo de Livre Comércio entre Estados Unidos e Chile por exemplo, estabelece além destes quatro pontos o direito do titular obter prorrogação da vigência da patente por conta de atrasos excessivos no exame de patente ou em sua aprovação pelas autoridades de saúde no caso de produtos farmacêuticos.[8]

Para a Maristela Basso, estas extensões de direitos dos titulares de patentes são contrárias aos interesses dos países em desenvolvimento cujas economias ainda não se adaptaram aos custos de TRIPs: “Esses países não estão em posição de absorver totalmente os custos sociais de novas cargas de propriedade intelectual quando os verdadeiros custos sociais da última rodada de reforma estão se revelando somente agora”.



[1] MELLO, Patrícia Campos. Acordos bilaterais são instrumentos dos EUA, O Estado de São Paulo – 20 de julho de 2003 http: //en.mre.gov.br/index.php?option=com_content&task=view&id=589&Itemid=397.

[2] BODENHAUSEN. Guia para La aplicacion Del Convenio de Paris para La proteccion de La propriedad Industrial, revisado em Estocolmo em 1967. BIRPI: Genebra, 1969, p. 30.

[3] BODENHAUSEN. op. cit., p. 209.

[4] ROFFE, Pedro. Bilateral agreements and a TRIPs-plus world: the Chile-USA Free Trade Agreement. Quaker International Affairs Programme, Ottawa, 2004

[5] UNCTAD. Most favoured Nations Treatment. UNCTAD Series on Issues in International Investment Agreements, United Nations, 2010

[6] STIGLITZ, Joseph. Globalização como dar certo. São Paulo: Cia das Letras, 2007. p. 186, 431.

[7] WTO, WIPO, WHO. Promoting Access to Medical Technologies and Innovation: Intersections between public health, intellectual property and trade, fevereiro 2013, p.188, 189 http://www.wto.org/english/res_e/publications_e/who-wipo-wto_2013_e.htm

[8] GRANGEIRO, Alexandre; TEIXEIRA, Paulo Roberto. Repercussões do acordo de Propriedade Intelectual no acesso a medicamentos. In: VILLARES, Fabio. Propriedade intelectual: tensões entre o capital e a sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2007. p. 220.

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