quarta-feira, 15 de junho de 2022

O antitruste e as patentes no caso das peças de reposição da Kodak

 

Em Image Technical Services Inc. v. Eastman Kodak a Suprema Corte[1] jugou caso referente a peças de reposição de fotocopiadoras da Kodak. A empresa vendia peças de reposição numa época em que este mercado era de pequena dimensão. Na medida em que mais empresas começaram a atuar no mercado de manutenção destes equipamentos a Kodak passou a não comercializar estas peças alegando estar exercendo um direito que lhe era conferido por deter as patentes de tais peças. A Suprema Corte entendeu que há prática monopolística quando a empresa (i) muda sua conduta após período de livre licenciamento de sua propriedade intelectual em um mercado competitivo, (ii) quando o titular adquire suas patentes de forma indevida, por não atender as exigências legais (iii) quando a propriedade intelectual é meramente um pretexto quando na verdade sua real intenção é excluir concorrentes.[2] A Suprema Corte entendeu que o exercício dos direitos de propriedade intelectual foi mero pretexto para mascarar uma política que violava as leis antitruste. A Kodak foi condenada recusar-se a vender as próprias peças proprietárias e de tecnologia proprietária para as empresas de manutenção, muitas das quais fundadas por ex técnicos da empresa, que queriam competir com ela no mercado de manutenção. Na perspectiva de Carl Shapiro: “as receitas da Kodak com a atividade de manutenção constituíram apenas retornos econômicos sobre os grandes descontos sobre vendas iniciais no mercado altamente competitivo de copiadoras. Assim como os participantes do setor devem observar todo o ciclo de aprisionamento, o mesmo devem fazer as autoridades antitruste e os tribunais”.[3]

Herbert Hovencamp considera esta decisão como “a mais inútil e prejudicial decisão antitruste” ao condenar uma empresa que não exercia posição dominante no mercado[4] : “a Corte confundiu complementos com substitutos Um mercado relevante consiste de coisas que são seus substitutos, tal como dois postos de gasolina em lados opostos de uma mesma rua ou duas marcas de pastas de dente. Os dois produtores são forçados a competir um com o outro precisamente porque o comprador não necessita dos dois produtos. Ele precisa apenas de um e irá escolher o que considerar melhor. Quanto a produtos complementares, eles não apenas não competem entre si, eles são frequentemente com tecnologias totalmente diferentes e sob condições competitivas diversas. Por exemplo, pão e torradeiras são produtos complementares para se fazer uma torrada, o consumidores irá precisar dos dois. Mas o mercado de torradeiras pode ser monopolizado,(talvez devido a uma patente importante) enquanto que o setor de pães seja composto por milhares de padarias. Entender que o conjunto pão e torradeiras fazem um único mercado, seria sem sentido”.[5]

O entendimento de Hovencamp se alinha com o de Richard Posner em voto dissidente no caso Sterling[6]. A pequena empresa Sterling condicionava a venda de peças de reposição mais baratas à venda de uma determinada quota mínima de seus motores. Como pequena empresa a Sterling não ocupava posição dominante no mercado de motores, que era marcado por um ambiente de concorrência. Desta forma, a Sterling poderia elevar o preço das peças de reposição de seus motores somente até o limite e que o consumidor considera-se economicamente mais vantajoso adquirir um motor da concorrência. A Sterling estaria assim impossibilitada de exercer poder de mercado no mercado secundário de reposição de peças de seus motores, dado o ambiente de concorrência no mercado primário de motores.

A Corte de segunda instância no caso Kodak entendeu que a existência de posição dominante no mercado primário não constitui pré condição para a caracterização de posição dominante no mercado secundário.[7] Divergindo a doutrina da Escola de Chicago a Suprema Corte, ao confirmar o entendimento da segunda instância, entendeu que a existência e concorrência no mercado primário não necessariamente implica a exclusão de posição dominante no mercado secundário. A Suprema Corte entendeu que a existência de concorrentes no mercado secundário de manutenção das máquinas Kodak, segundo a lógica apresentada pela própria Kodak de se considerar os efeitos econômicos do sistema como um todo, deveria ser aceita de forma positiva pela empresa pois faria o preço do sistema (máquinas + peças de reposição + manutenção) ainda mais atraentes contribuindo para o aumento do número de máquinas da Kodak vendidas no mercado primário. Ademais a tese da Kodak baseada no argumento de Posner no caso Sterling, falha em assumir o comportamento dos consumidores baseado unicamente em critérios econômicos, quando na prática ele não tem uma noção exata de qual o custo total do sistema como um tempo (máquinas + peças de reposição + manutenção), ou seja, a abordagem de Posner ignora os custos de informação e os custos de troca dos consumidores aprisionados (lock in) na tecnologia da Kodak. A Kodak foi condenada a fornecer por dez anos para as empresas independentes de manutenção, as peças de reposição necessárias para o conserto de suas máquinas, além de indenização por perdas e danos.

Caso similar envolvendo a mesma empresa Xerox foi julgado em 2000 pelo Federal Circuit desta vez em favor da titular da patente como não tendo exercido de forma abusiva seu direito, agora considerado legítimo, de não contratar ou licenciar sua tecnologia patenteada, pois sua patente foi obtida atendendo aos requisitos legais e sua prática não se configura como sham litigation.[8] Joseph Farell e Carl Shapiro consideram a decisão do caso Kodak como uma “anomalia”. Segundo os autores a decisão contrária no caso Xerox pode ser explicada, ainda que de forma não muito satisfatório, pelo fato de a Xerox reafirmou o papel de suas patentes de forma muito mais enfática e mais cedo do que a Kodak [9]


[1] Eastman Kodak Company v. Image Technical Services, Inc., 504 U.S. 451 (1992).

[2] Image Technical Serv. V. Eastman Kodak Co., 125 F.3d 1195, 1218 (9th Cir, 1997) PARK, Jae Hun. Patents and industry standards. US:Edward Elgar 2010, p. 31, ANDRADE, Gustavo Piva. A interface entre a propriedade Intelectual e o direito antitruste. Revista da ABPI, nov/dez 2007, n.91, p.45

[3] SHAPIRO,Carl; VARIAN, Hal R. A economia da informação. Rio de Janeiro:Campus, 1999, p.175

[4] HOVENKAMP, Herbert. Antitrust enterprise: principle and execution, Cambridge:Harvard University Press, 2005, p.131/4769

[5] HOVENKAMP.op.cit.p.1988/4769

[6] Parts and Electric Motors Inc. v. Sterling Electric, Courts Of Appeals, 866 F.2d 228 (7th Circuit, 1988) cf. KUNTZ, Karin Grau. Parecer: O desenho industrial como instrumento de controle econômico do mercado secundário de peças de reposição de automóveis – uma análise crítica à recente decisão da Secretaria de Direito Econômico (SDE). cf. SILVEIRA, Newton. Direito de autor no design. São Paulo:Saraiva, 2012, p.260

[7] KUNTZ,op.cit.p.185

[8] In re Independent Servs. Orgs. Antitrust Lit, 203 F.3d 1322 (Fed. Cir. 2000) cf. ANDRADE, Gustavo Piva. A interface entre a propriedade Intelectual e o direito antitruste. Revista da ABPI, nov/dez 2007, n.91, p.46

[9] FARELL, Joseph; SHAPIRO, Carl. Intellectual Property, Competition, and Information Technology. UC Berkeley Competition Policy Center Working Paper No. CPC04-45, 2004, p.29 http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=527782

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