quinta-feira, 15 de maio de 2014

Dupla proteção em PI

Denis Barbosa em sua tese de doutorado[1] defende argumento de que a duplicidade de proteções é um sério problema constitucional: “a lógica repele a coexistência de duas exclusividades excludentes sobre o mesmo objeto”. A proteção dupla de um mesmo aspecto de um objeto por diferentes títulos legais poderia constituir um mecanismo para se alcançar direitos adicionais por uma via alternativa, ferindo os interesses da sociedade.
Um estudo de Patrícia Porto sobre os limites à sobreposição de direitos de direitos de propriedade intelectual defende a tese de que não se pode prejudicar os direitos dos usuários do regime B e a expectativa de direito da sociedade (de um dia vir a utilizar o bem criado de forma livre), utilizando os direitos e a proteção concedidos de um outro regime A para um objeto, que não obstante ser protegido por A, está sendo usado como B. Por exemplo, um objeto protegido por patente de modelo de utilidade não pode ser protegido como marca tridimensional sob risco de penalizar a sociedade que possuía a expectativa de direito de utilizar livremente do objeto de proteção do modelo de utilidade após sua extinção. [2]
Por outro lado, a cumulação num só sujeito da titularidade do Regime A e do Regime B pode somar os efeitos dos regimes sempre que não haja incompatibilidade extrínseca ou funcional, nos exatos limites dessa compatibilidade. Desta forma, um mesmo escopo de proteção não pode ser jamais protegido por dois regimes diferentes simultaneamente. Por exemplo, se o criador tem um objeto tridimensional e quiser proteger por marca (se atendidos os critérios de marca) poderá fazê-lo, no entanto, ao fazê-lo ele abre mão se depositar uma patente de modelo de utilidade (se atendidos os critérios de modelo de utilidade). Ou seja, o criador pode até se deparar com uma situação em que pode escolher um regime ou outro, mas tendo optado por um deles, automaticamente está desistindo da segunda opção.
Não pode um mesmo objeto ser protegido simultaneamente por modelo de utilidade e desenho industrial porque em ambos os casos, a proteção incide sobre a forma de que o objeto se reveste. Se a nova forma dada ao objeto tendo em vista sua melhor utilização, conferir-lhe ao mesmo tempo um aspecto ornamental próprio, prevalece a natureza de modelo de utilidade[3].
Segundo Paulina Ben-Ami “A função específica dos modelos e desenhos industriais, portanto, é dar aos produtos um aspecto ornamental que os torne mais atraentes ao consumidor. Este aspecto ornamental não pode estar relacionado com a função do objeto. Esta é a finalidade do Modelo de Utilidade. No caso da nova configuração dada ao objeto resultar em sua melhor utilização, a natureza do privilégio que prevalece é a de modelo de utilidade, mesmo que esta nova forma tenha um aspecto ornamental próprio. Portanto, não pode o mesmo objeto ser protegido como modelo de utilidade e modelo industrial. Já os produtos industriais resultantes de uma invenção podem constituir, ao mesmo tempo modelo industrial. Isto é possível quando a forma do objeto não está necessariamente vinculada ao seu efeito técnico. Neste caso, a proteção poderá ser conseguida ao produto cuja forma é consequência do resultado técnico obtido, como privilégio de invenção, e ao produto cuja forma é independente do efeito técnico obtido, como modelo industrial. O depósito dos pedidos deverá ser simultâneo a fim de evitar que publicações de um prejudique a privilegiabilidade do outro por falta de novidade. Proteção dupla poderá também ser conseguida ao produto cuja forma está ligada ao efeito obtido como privilégio de invenção, e ao desenho aplicado ao mesmo produto como desenho industrial”.[4]
Gama Cerqueira discute os problemas legais surgidos da dupla proteção de um mesmo aspecto de um objeto como modelo industrial (modelo de objeto em três dimensões hoje protegido como desenho industrial) e marca. As condições de concessão para os modelos industriais, sendo mais severas, com prazo mais restrito e improrrogável de vigência do direito, impedem a possibilidade de dupla proteção: “admitir-se que um desenho ou modelo industrial seja registrado como marca, seria fraudar a lei e, contra seus termos expressos, assegurar ao desenho ou modelo privilégio mais duradouro, que ultrapassaria o prazo legal de proteção. Além disso, sendo o critério da novidade das marcas mais brando que o da novidade dos desenhos e modelos, poderá dar-se o caso de se registrarem, como marcas, desenhos ou modelos que não poderiam ser protegidos pela lei especial respectiva por se acharem no domínio público, ou por não satisfazerem ao requisito da novidade. O interessado adquiriria, assim, por meio do registro da marca, a propriedade do desenho ou modelo, que de outro modo não lhe seria lícito obter, com o agravante já apontado de poder prolongar indefinidamente o seu monopólio, quando a lei quer que a proteção seja temporária e improrrogável além de certo tempo”.[5]
Ainda que rejeitando a tese de dupla proteção Gama Cerqueira observa que em alguns casos a decisão da forma de proteção é uma escolha do titular do direito. Ao discorrer sobre a proteção de invólucros como marcas tridimensionais, Gama Cerqueira, já sob o Código de 1945 admite a possibilidade de opção de proteção ao titular do direito seja como marca ou modelo industrial “Tratando-se, porém, de invólucro original, é preferível depositá-lo como modelo industrial, o que confere ao seu criador a exclusividade absoluta do seu uso, em vez de registrá-lo como marca, caso em que, como acabamos de ver, o direito exclusivo é relativo a certa classe de produtos”.[6] Da mesma forma, Gama Cerqueira admite a possibilidade de proteção de um mesmo objeto seja por modelo industrial ou como modelo de utilidade: “nesses casos, sendo difícil, muitas vezes separar o valor estético do objeto e o seu valor de utilidade prática, a melhor solução seria deixar ao interessado a faculdade de reivindicar a proteção das duas leis ou de optar por uma delas, como lhe conviesse, observando que a cumulação da proteção legal era vedada pelo decreto n.24507 de 1934, então em vigor, o qual em seu artigo 2º parágrafo 1º dava preeminência ao modelo de utilidade não permitindo a concessão do modelo industrial quando o objeto se caracterizasse também como modelo de utilidade”.[7]
Em ação julgada pela 35ª Vara Federal do Rio de Janeiro concluiu como não passível de proteção por marca tridimensional o acessório de barbeador elétrico Philishave da Phillips consistindo de um alojamento com cabeçotes de barbear. A forma registrada na marca tridimensional da agravante foi objeto de depósito de patente de modelo industrial MI3800892 em 1978 sendo deferido o seu registro em 1983, com prazo de vigência de dez anos, contados da data do depósito, consoante os termos da então vigente Lei 5.772/71 (artigo 24). Dessa forma, o objeto da referida patente caiu em domínio público em 1988, extinguindo-se os direitos de propriedade e exclusividade a ela relacionados.
Segundo julgamento do TRF2[8] em Philips Electronics e INPI v. Spectrum Brands Inc.: “não é registrável como marca tridimensional, por violação aos incisos VI e XXI do artigo 124 da LPI a forma descritiva de modelo de utilidade (sic) cuja exploração já caiu em domínio público em razão da expiração do prazo de   exclusividade do privilégio”.[9] E ainda: “A inovação tecnológica agregada ao corpus mechanicus do barbeador elétrico PHILISHAVE, consistente em um privilégio clausulado com prazo de validade por força de lei, não pode se transmudar em benefício perpétuo, sob a forma de proteção de marca tridimensional válida e regularmente obtida. O registro de marca tridimensional é ato em si válido, que se outorga ao titular para a exclusiva finalidade de distinguir os produtos de uma fábrica e os objetos de um comércio, ou para garantir sua procedência ou origem industrial ou comercial, e que por esse motivo recebe o seu beneficiário a termo, o poder de evitar a sua indevida utilização por qualquer um que dela queira se aproveitar. O equilíbrio entre a contribuição inventiva incorporada pela sociedade e o privilégio outorgado ao inventor é sempre determinado pelo tempo e nenhuma técnica protetiva conjugada, sustentada em um ilusório hibridismo jurídico entre a tutela marcária e modelo de utilidade (sic), pode resultar na perpetuação da novidade. Vencido o prazo de proteção, o desenho se torna res communi omnium, e isso ocorre mesmo que signifique o esvaziamento da tutela da marca, que se tornará, sob esse único efeito, um mero título jurídico, por conta da equivalência entre o modelo de utilidade e a marca tridimensional, que continuará a manter-se sob o registro e protegida nos demais efeitos".


Marca nº 819955019

O artigo 124 da LPI estabelece no inciso XXI que não são registráveis como marca a forma necessária, comum ou vulgar do produto ou de acondicionamento, ou, ainda, aquela que não possa ser dissociada de efeito técnico. Assim, não são registráveis como marca a forma esférica de uma bola de futebol, a forma elíptica de uma bola de futebol americano, a forma circular de um pneu, a forma cilíndrica de botijões gás, a forma cilíndrica das garrafas, a forma de paralelepípedo de caixas de leite, os pinos de blocos de construção de brinquedo usados como encaixes para outros blocos similares, saliências de solado de sapatos antiderrapantes ou um bico borrifador. Por outro lado, foram considerados pelo INPI como marcas registradas válidas: garrafa da Coca Cola para acondicionamento de bebidas não alcoólicas (821367749), canetas para desenho da Bic do Brasil (820160288), frasco de perfume Chanel (824586875), carroceria de Kombi da Volkswagen (828824428).[10]

Marca nº 824586875

Marca nº 828824428

Em 2010 o Tribunal de Justiça da União Europeia ratificou uma sentença emitida por uma Corte de primeira instância em novembro de 2008 negando o direito do fabricante dinamarquês Lego[11] a marca comunitária solicitada em 2006 para registrar as peças de plástico que servem de base para seus jogos. A marca foi contestada pela canadense Ritvik, atual Mega Blocks. [12] Pela Diretiva Europeia de Design de 1998 a proteção por design não será concedida nos casos de características de interconexão, ou seja, características relativas à aparência de um produto que necessariamente devem ser reproduzidas em suas formas e dimensões exatas de modo a permitir que o produto a que se deseja proteção possa ser conectado ou disposto em relação a um outro produto de modo a que possa executar sua função. No entanto, no caso de designs que servem ao propósito de conexão de múltiplas partes, sendo estas intercambiáveis, como os blocos LEGO, estas poderão ser protegidos por design como uma exceção à regra geral [13]. A Suprema Corte canadense, por outro lado, estabeleceu a impossibilidade de se proteger a figura ou o formato dos blocos de montar, uma vez que a funcionalidade não configura um sinal distintivo como marca, uma identificação do fabricante aos consumidores. A Suprema Corte canadense não aceitou a proteção por marca considerando o formato pertencente ao domínio público.[14]



[1] BARBOSA, Denis. O fator semiológico na construção do signo marcário, tese de doutorado em Direito Internacional apresentada à UERJ em 2006, p.241
[2] PORTO, Patrícia. Limites à Sobreposição de Direitos de Propriedade Intelectual, Revista da ABPI, n.109, setembro 2009
[3] PINESCHI, Eliane. Estudo sobre modelos de utilidade, modelos industriais e desenhos industriais, DIRPA, p.29, julho 1982.
[4] BEN-AMI, Paulina. Manual de Propriedade Industrial, São Paulo: Secretaria da Ind. Com. e Tecnologia, SEDAI, 1983, p.75
[5] CERQUEIRA, Gama. Tratado da Propriedade Industrial, V. I, Ed. Lumen Juris:Rio de Janeiro, 2010, p.225
[6] CERQUEIRA, Gama. op.cit., p.308
[7] CERQUEIRA, Gama. Tratado da Propriedade Industrial, V. II, Ed. Lumen Juris:Rio de Janeiro, 2010, p.331
[8] TRF2, AGV 2005.02.01.011707-0 RJ Philips Electronics e INPI v. Spectrum Brands Inc, Relator: André Fontes, Orgão Julgador: Segunda Turma Especializada, Data Decisão: 27/02/2007 DJU 13/03/2007 p.276
[9] TRF2, AGV 2005.02.01.011707-0 RJ Philips Electronics e INPI v. Spectrum Brands Inc, Relator: André Fontes, Orgão Julgador: Segunda Turma Especializada, Data Decisão: 27/02/2007 DJU 13/03/2007 p.276, cf. CERQUEIRA, João da Gama. Tratado da Propriedade Industrial, v. I, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p.226
[10] Propriedade industrial aplicada: reflexões para o magistrado. – Brasília : CNI, 2013, p.102 http://arquivos.portaldaindustria.com.br/app/conteudo_24/2013/05/24/404/20130524150112242823i.pdf
[11] PHILLIPS,Jeremy. An empire built of bricks; a brief appraisal o Lego. European Intellectual Property Review, 1987, p.363-366. https://sites.google.com/site/ipkatreaders/history/lego.pdf?attredirects=0&d=1
[12] Lego não tem exclusividade sobre venda de jogo de armar, diz Europa, 14/09/2010
 http://g1.globo.com/mundo/noticia/2010/09/lego-nao-tem-exclusividade-sobre-venda-de-jogo-de-armar-diz-europa.html
[13] European Parliament and Council Directive 98/71/EC de 13 de outubro de 1998 cf. SUTHERSANEN, Uma; DUTFIELD, Graham; CHOW, Kit Boey. Innovation without patents: harnessing the creative spirit in a diverse world. Edward Elgar, 2007, p.46
[14] Kirkbi AG v. Ritvik Holding Inc. 2005 SCC, 65 [2005] 3 SCR 302, 17/11/2005 cf. BARBOSA, Cláudio. Propriedade Intelectual: introdução à propriedade intelectual como informação. Rio de Janeiro:Elsevier, 2009, p.199

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