Denis
Barbosa em sua tese de doutorado[1]
defende argumento de que a duplicidade de proteções é um sério problema
constitucional: “a lógica repele a
coexistência de duas exclusividades excludentes sobre o mesmo objeto”. A
proteção dupla de um mesmo aspecto de um objeto por diferentes títulos legais
poderia constituir um mecanismo para se alcançar direitos adicionais por uma
via alternativa, ferindo os interesses da sociedade.
Um estudo
de Patrícia Porto sobre os limites à sobreposição de direitos de direitos de
propriedade intelectual defende a tese de que não se pode prejudicar os
direitos dos usuários do regime B e a expectativa de direito da sociedade (de
um dia vir a utilizar o bem criado de forma livre), utilizando os direitos e a
proteção concedidos de um outro regime A para um objeto, que não obstante ser
protegido por A, está sendo usado como B. Por exemplo, um objeto protegido por
patente de modelo de utilidade não pode ser protegido como marca tridimensional
sob risco de penalizar a sociedade que possuía a expectativa de direito de
utilizar livremente do objeto de proteção do modelo de utilidade após sua
extinção. [2]
Por
outro lado, a cumulação num só sujeito da titularidade do Regime A e do Regime
B pode somar os efeitos dos regimes sempre que não haja incompatibilidade
extrínseca ou funcional, nos exatos limites dessa compatibilidade. Desta forma,
um mesmo escopo de proteção não pode ser jamais protegido por dois regimes diferentes
simultaneamente. Por exemplo, se o criador tem um objeto tridimensional e
quiser proteger por marca (se atendidos os critérios de marca) poderá fazê-lo,
no entanto, ao fazê-lo ele abre mão se depositar uma patente de modelo de
utilidade (se atendidos os critérios de modelo de utilidade). Ou seja, o
criador pode até se deparar com uma situação em que pode escolher um regime ou
outro, mas tendo optado por um deles, automaticamente está desistindo da
segunda opção.
Não
pode um mesmo objeto ser protegido simultaneamente por modelo de utilidade e
desenho industrial porque em ambos os casos, a proteção incide sobre a forma de
que o objeto se reveste. Se a nova forma dada ao objeto tendo em vista sua
melhor utilização, conferir-lhe ao mesmo tempo um aspecto ornamental próprio,
prevalece a natureza de modelo de utilidade[3].
Segundo
Paulina Ben-Ami “A função específica dos
modelos e desenhos industriais, portanto, é dar aos produtos um aspecto
ornamental que os torne mais atraentes ao consumidor. Este aspecto ornamental
não pode estar relacionado com a função do objeto. Esta é a finalidade do
Modelo de Utilidade. No caso da nova configuração dada ao objeto resultar em
sua melhor utilização, a natureza do privilégio que prevalece é a de modelo de
utilidade, mesmo que esta nova forma tenha um aspecto ornamental próprio.
Portanto, não pode o mesmo objeto ser protegido como modelo de utilidade e
modelo industrial. Já os produtos industriais resultantes de uma invenção podem
constituir, ao mesmo tempo modelo industrial. Isto é possível quando a forma do
objeto não está necessariamente vinculada ao seu efeito técnico. Neste caso, a
proteção poderá ser conseguida ao produto cuja forma é consequência do
resultado técnico obtido, como privilégio de invenção, e ao produto cuja forma
é independente do efeito técnico obtido, como modelo industrial. O depósito dos
pedidos deverá ser simultâneo a fim de evitar que publicações de um prejudique
a privilegiabilidade do outro por falta de novidade. Proteção dupla poderá
também ser conseguida ao produto cuja forma está ligada ao efeito obtido como
privilégio de invenção, e ao desenho aplicado ao mesmo produto como desenho
industrial”.[4]
Gama
Cerqueira discute os problemas legais surgidos da dupla proteção de um mesmo
aspecto de um objeto como modelo industrial (modelo de objeto em três dimensões
hoje protegido como desenho industrial) e marca. As condições de concessão para
os modelos industriais, sendo mais severas, com prazo mais restrito e
improrrogável de vigência do direito, impedem a possibilidade de dupla
proteção: “admitir-se que um desenho ou
modelo industrial seja registrado como marca, seria fraudar a lei e, contra
seus termos expressos, assegurar ao desenho ou modelo privilégio mais
duradouro, que ultrapassaria o prazo legal de proteção. Além disso, sendo o
critério da novidade das marcas mais brando que o da novidade dos desenhos e
modelos, poderá dar-se o caso de se registrarem, como marcas, desenhos ou
modelos que não poderiam ser protegidos pela lei especial respectiva por se
acharem no domínio público, ou por não satisfazerem ao requisito da novidade. O
interessado adquiriria, assim, por meio do registro da marca, a propriedade do
desenho ou modelo, que de outro modo não lhe seria lícito obter, com o
agravante já apontado de poder prolongar indefinidamente o seu monopólio,
quando a lei quer que a proteção seja temporária e improrrogável além de certo
tempo”.[5]
Ainda
que rejeitando a tese de dupla proteção Gama Cerqueira observa que em alguns
casos a decisão da forma de proteção é uma escolha do titular do direito. Ao
discorrer sobre a proteção de invólucros como marcas tridimensionais, Gama
Cerqueira, já sob o Código de 1945 admite a possibilidade de opção de proteção
ao titular do direito seja como marca ou modelo industrial “Tratando-se, porém, de invólucro original, é
preferível depositá-lo como modelo industrial, o que confere ao seu criador a
exclusividade absoluta do seu uso, em vez de registrá-lo como marca, caso em
que, como acabamos de ver, o direito exclusivo é relativo a certa classe de
produtos”.[6] Da mesma
forma, Gama Cerqueira admite a possibilidade de proteção de um mesmo objeto
seja por modelo industrial ou como modelo de utilidade: “nesses casos, sendo difícil, muitas vezes separar o valor estético do
objeto e o seu valor de utilidade prática, a melhor solução seria deixar ao
interessado a faculdade de reivindicar a proteção das duas leis ou de optar por
uma delas, como lhe conviesse, observando que a cumulação da proteção legal era
vedada pelo decreto n.24507 de 1934, então em vigor, o qual em seu artigo 2º
parágrafo 1º dava preeminência ao modelo de utilidade não permitindo a
concessão do modelo industrial quando o objeto se caracterizasse também como
modelo de utilidade”.[7]
Em
ação julgada pela 35ª Vara Federal do Rio de Janeiro concluiu como não passível
de proteção por marca tridimensional o acessório de barbeador elétrico
Philishave da Phillips consistindo de um alojamento com cabeçotes de barbear. A
forma registrada na marca tridimensional da agravante foi objeto de depósito de
patente de modelo industrial MI3800892 em 1978 sendo deferido o seu registro em
1983, com prazo de vigência de dez anos, contados da data do depósito,
consoante os termos da então vigente Lei 5.772/71 (artigo 24). Dessa forma, o
objeto da referida patente caiu em domínio público em 1988, extinguindo-se os
direitos de propriedade e exclusividade a ela relacionados.
Segundo julgamento do TRF2[8] em Philips Electronics e INPI v. Spectrum Brands Inc.: “não é registrável como marca tridimensional, por violação aos incisos VI e XXI do artigo 124 da LPI a forma descritiva de modelo de utilidade (sic) cuja exploração já caiu em domínio público em razão da expiração do prazo de exclusividade do privilégio”.[9] E ainda: “A inovação tecnológica agregada ao corpus mechanicus do barbeador elétrico PHILISHAVE, consistente em um privilégio clausulado com prazo de validade por força de lei, não pode se transmudar em benefício perpétuo, sob a forma de proteção de marca tridimensional válida e regularmente obtida. O registro de marca tridimensional é ato em si válido, que se outorga ao titular para a exclusiva finalidade de distinguir os produtos de uma fábrica e os objetos de um comércio, ou para garantir sua procedência ou origem industrial ou comercial, e que por esse motivo recebe o seu beneficiário a termo, o poder de evitar a sua indevida utilização por qualquer um que dela queira se aproveitar. O equilíbrio entre a contribuição inventiva incorporada pela sociedade e o privilégio outorgado ao inventor é sempre determinado pelo tempo e nenhuma técnica protetiva conjugada, sustentada em um ilusório hibridismo jurídico entre a tutela marcária e modelo de utilidade (sic), pode resultar na perpetuação da novidade. Vencido o prazo de proteção, o desenho se torna res communi omnium, e isso ocorre mesmo que signifique o esvaziamento da tutela da marca, que se tornará, sob esse único efeito, um mero título jurídico, por conta da equivalência entre o modelo de utilidade e a marca tridimensional, que continuará a manter-se sob o registro e protegida nos demais efeitos".
Marca nº 819955019
|
O artigo
124 da LPI estabelece no inciso XXI que não são registráveis como marca a forma
necessária, comum ou vulgar do produto ou de acondicionamento, ou, ainda,
aquela que não possa ser dissociada de efeito técnico. Assim, não são
registráveis como marca a forma esférica de uma bola de futebol, a forma
elíptica de uma bola de futebol americano, a forma circular de um pneu, a forma
cilíndrica de botijões gás, a forma cilíndrica das garrafas, a forma de
paralelepípedo de caixas de leite, os pinos de blocos de construção de
brinquedo usados como encaixes para outros blocos similares, saliências de
solado de sapatos antiderrapantes ou um bico borrifador. Por outro lado, foram
considerados pelo INPI como marcas registradas válidas: garrafa da Coca Cola
para acondicionamento de bebidas não alcoólicas (821367749), canetas para
desenho da Bic do Brasil (820160288), frasco de perfume Chanel (824586875),
carroceria de Kombi da Volkswagen (828824428).[10]
Marca nº 824586875
|
Marca nº 828824428
|
Em
2010 o Tribunal de Justiça da União Europeia ratificou uma sentença emitida por
uma Corte de primeira instância em novembro de 2008 negando o direito do
fabricante dinamarquês Lego[11] a
marca comunitária solicitada em 2006 para registrar as peças de plástico que
servem de base para seus jogos. A marca foi contestada pela canadense Ritvik,
atual Mega Blocks. [12]
Pela Diretiva Europeia de Design de 1998 a proteção por design não será
concedida nos casos de características de interconexão, ou seja, características
relativas à aparência de um produto que necessariamente devem ser reproduzidas
em suas formas e dimensões exatas de modo a permitir que o produto a que se deseja
proteção possa ser conectado ou disposto em relação a um outro produto de modo
a que possa executar sua função. No entanto, no caso de designs que servem ao propósito de conexão de múltiplas partes,
sendo estas intercambiáveis, como os blocos LEGO, estas poderão ser protegidos
por design como uma exceção à regra
geral [13].
A Suprema Corte canadense, por outro lado, estabeleceu a impossibilidade de se
proteger a figura ou o formato dos blocos de montar, uma vez que a
funcionalidade não configura um sinal distintivo como marca, uma identificação
do fabricante aos consumidores. A Suprema Corte canadense não aceitou a
proteção por marca considerando o formato pertencente ao domínio público.[14]
[1]
BARBOSA, Denis. O fator semiológico na
construção do signo marcário, tese de doutorado em Direito Internacional
apresentada à UERJ em 2006, p.241
[2]
PORTO, Patrícia. Limites à Sobreposição
de Direitos de Propriedade Intelectual, Revista da ABPI, n.109, setembro
2009
[3]
PINESCHI, Eliane. Estudo sobre modelos de
utilidade, modelos industriais e desenhos industriais, DIRPA, p.29, julho
1982.
[4]
BEN-AMI, Paulina. Manual de Propriedade
Industrial, São Paulo: Secretaria da Ind. Com. e Tecnologia, SEDAI, 1983,
p.75
[5]
CERQUEIRA, Gama. Tratado da Propriedade
Industrial, V. I, Ed. Lumen Juris:Rio de Janeiro, 2010, p.225
[6]
CERQUEIRA, Gama. op.cit., p.308
[7]
CERQUEIRA, Gama. Tratado da Propriedade
Industrial, V. II, Ed. Lumen Juris:Rio de Janeiro, 2010, p.331
[8]
TRF2, AGV 2005.02.01.011707-0 RJ Philips Electronics e INPI v. Spectrum Brands
Inc, Relator: André Fontes, Orgão Julgador: Segunda Turma Especializada, Data
Decisão: 27/02/2007 DJU 13/03/2007 p.276
[9] TRF2, AGV 2005.02.01.011707-0 RJ Philips Electronics e
INPI v. Spectrum Brands Inc, Relator: André Fontes, Orgão Julgador: Segunda
Turma Especializada, Data Decisão: 27/02/2007 DJU 13/03/2007 p.276, cf.
CERQUEIRA, João da Gama. Tratado da
Propriedade Industrial, v. I, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p.226
[10] Propriedade
industrial aplicada: reflexões para o magistrado.
– Brasília : CNI, 2013, p.102
http://arquivos.portaldaindustria.com.br/app/conteudo_24/2013/05/24/404/20130524150112242823i.pdf
[11]
PHILLIPS,Jeremy. An empire built of
bricks; a brief appraisal o Lego. European Intellectual Property Review,
1987, p.363-366. https://sites.google.com/site/ipkatreaders/history/lego.pdf?attredirects=0&d=1
[12] Lego
não tem exclusividade sobre venda de jogo
de armar, diz Europa, 14/09/2010
http://g1.globo.com/mundo/noticia/2010/09/lego-nao-tem-exclusividade-sobre-venda-de-jogo-de-armar-diz-europa.html
[13] European
Parliament and Council Directive 98/71/EC de 13 de outubro de 1998 cf.
SUTHERSANEN, Uma; DUTFIELD, Graham; CHOW, Kit Boey. Innovation without patents: harnessing the creative spirit in a
diverse world. Edward Elgar, 2007, p.46
[14] Kirkbi AG
v. Ritvik Holding Inc. 2005 SCC, 65 [2005] 3 SCR 302, 17/11/2005 cf. BARBOSA,
Cláudio. Propriedade
Intelectual: introdução à propriedade intelectual como informação. Rio
de Janeiro:Elsevier, 2009, p.199
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