segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

A necessária recalibração da atividade inventiva diante da IA segundo Caroline Tauk

 A inteligência artificial, o aumento da potência humana e os impactos sobre a atividade inventiva,  Caroline Somesom Tauk, Revista ABPI, n. 170 jan fev 2021


No artigo “A inteligência artificial, o aumento da potência humana e os impactos sobre a atividade inventiva”, Caroline Somesom Tauk analisa como a crescente utilização de sistemas de inteligência artificial (IA) no processo criativo-tecnológico afeta o conceito jurídico de atividade inventiva no direito de patentes. A autora parte da constatação de que a IA funciona como um instrumento de ampliação das capacidades humanas, elevando o nível técnico médio do chamado técnico no assunto.

A indústria farmacêutica gera diversos exemplos de como os sistemas de IA têm sido usados para acelerar e trazer eficiência ao processo de descoberta de medicamentos, identificando alvos de doenças, fazendo a seleção dos compostos, prevendo a potência e toxicidade dos fármacos, dentre tantos outros usos.A maior inserção das tecnologias de IA no processo de pesquisa, auxiliando a intelctualidade humana, pode vir a alterar o parâmetro do que seja óbvio. Se houver aumento das habilidades do inventor-médio e o parâmetro de técnico no assunto continuar o mesmo, a consequência será a sensação de um padrão muito brando de patenteabilidade, com os custos sociais daí decorrentes.

Indo além da função de ferramenta, é possível falar em “criações não regidas sob o controle expressivo humano” segundo expressão do professor BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. Autoria de bens intelectuais e as criações de inteligência artificial. In: TEPEDINO, Gustavo; SILVA, Rodrigo da Guia (Orgs). O Direito Civil na era da Inteligência Artificial. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 2020.

Tanto na EPO quanto nos Estados Unidos, Stephen Thaler sustentou que a imprevisibilidade do resultado seria um indício de que a invenção foi gerada autonomamente pela IA (DABUS). O raciocínio dele, em linhas gerais, foi o seguinte: O resultado inventivo não era antecipável nem pelo programador; Logo, não teria sido diretamente concebido por um humano; Portanto, a IA deveria ser reconhecida como inventora, ainda que os direitos patrimoniais fossem atribuídos ao seu proprietário. Esse argumento aparece reiteradamente nas petições e recursos do caso DABUS, associado à ideia de “criatividade emergente” ou “autonomia funcional” da máquina. O que é importante é que: Esse foi um argumento do requerente, mas não foi aceito nem pela EPO nem pelas cortes norte-americanas.

O texto afirma que a imprevisibilidade do resultado não comprova a autonomia de um sistema de IA, argumento usado pelo requerente no caso DABUS na EPO e Estados Unidos. Primeiro, porque a imprevisibilidade não é exclusiva de máquinas: mesmo em invenções puramente humanas, sobretudo aquelas obtidas por experimentação, tentativa e erro, o resultado final muitas vezes não é conhecido de antemão. Exigir previsibilidade como critério para reconhecer a autoria humana seria, portanto, incoerente e incompatível com a prática histórica da atividade inventiva. Segundo, porque, ainda que os sistemas de IA sejam altamente sofisticados, o elemento juridicamente relevante não é a surpresa do resultado, mas o fato de que o método de resolução do problema (o algoritmo) foi concebido por um ser humano. Assim, a IA opera dentro de uma arquitetura, objetivos e limites definidos previamente por pessoas, o que impede que ela seja considerada verdadeiramente autônoma para fins de atribuição de direitos de propriedade intelectual. Em termos conceituais, o argumento desloca o foco: não da imprevisibilidade do resultado mas da origem humana do método inventivo. Esse raciocínio das Cortes EPO e US está alinhado com a posição de Caroline Tauk: a IA aumenta a potência humana, mas não substitui o papel humano como sujeito jurídico da invenção, reforçando que o debate sobre patentes deve recair sobre os critérios de atividade inventiva e autoria, e não sobre uma suposta “criatividade independente” da máquina.

O ponto central do texto é a hipótese de que, à medida que o uso de ferramentas de IA se torne rotineiro em determinados setores, o parâmetro de obviedade poderá sofrer uma revisão: invenções que hoje seriam consideradas não óbvias podem, no futuro, ser vistas como resultado esperado do uso normal dessas tecnologias. Com isso, o critério de atividade inventiva tenderia a se tornar mais rigoroso, elevando o “patamar” de patenteabilidade. Ainda que o nível de participação humana e do sistema de IA no resultado inovador possa variar consideravelmente, uma conclusão parece clara: estas máquinas estão presentes no processo inventivo em diversos setores da indústria, em alguma medida. Tal situação pode, a médio prazo, ocasionar um aumento da capacidade humana auxiliada por tecnologias de IA e impactar no parâmetro objetivo-normativo do que seja óbvio. É oportuno, portanto, revisitá-lo à luz do desenvolvimento tecnológico.

O nível de formação do técnico médio varia conforme o setor industrial: “num setor mecânico tradicional, poderá ser o torneiro experiente; nos extremos da produção biotecnológica, poderá ser um Ph.D., ainda que não o expoente internacional”. Pedro Marcos Nunes Barbosa chama atenção para o risco de uma “hipertrofia da capacidade do autor-inventor médio”, isto é, para o fato de que o uso disseminado de ferramentas tecnológicas avançadas — como sistemas de IA — eleva o nível médio de competência técnica de quem inventa. Quando isso ocorre, há uma consequência jurídica inevitável: o patamar do que conta como atividade inventiva também deve subir. Em outras palavras, se o inventor médio passa a dispor de recursos muito mais potentes, o simples uso desses recursos não pode, por si só, justificar a concessão de um monopólio patentário. Será necessário demonstrar um contributo qualitativamente superior, algo que vá além do resultado esperado da aplicação normal dessas ferramentas. O argumento reforça que: o critério da atividade inventiva é relativo, não absoluto; ele depende do estado da técnica e das capacidades médias disponíveis em determinado momento histórico; a função do exame de patentes é filtrar a qualidade da inovação, evitando a banalização de títulos de exclusividade.

Elevar o padrão atual implicaria em aumentar a dificuldade para a obtenção de patentes. Para superar o novo padrão, seria preciso que pesquisadores de um determinado setor em que há o uso rotineiro de tecnologias de IA tivessem um insight incomum, que excedesse o parâmetro, ou usassem computadores mais sofisticados que os comumente usados. seria preciso a alteração legal para a exigência de maior rigor na avaliação da atividade inventiva? Acreditamos não ser esta a melhor solução, já que a legislação correria o risco de ficar desatualizada muito rapidamente por não acompanhar o ritmo intenso do desenvolvimento tecnológico.

Sob a ótica da teoria econômica, os direitos de exclusividade não são um fim em si mesmos: eles funcionam como incentivos à inovação, compensando o inventor pela externalidade positiva que sua invenção gera para a sociedade (difusão de conhecimento, ganhos de eficiência, novos mercados etc.). A patente existe justamente para equilibrar esse benefício coletivo com uma retribuição privada temporária.  O ponto crucial do texto é que, com o uso rotineiro de tecnologias de IA, especialmente como ferramentas de apoio significativo à pesquisa e ao desenvolvimento, ocorre uma elevação das habilidades do inventor médio. Nesse cenário, resultados que antes exigiam engenhosidade passam a ser mais facilmente alcançáveis, aumentando a probabilidade de que certas soluções sejam consideradas óbvias para esse novo “inventor médio aumentado”.

A autora não defende, porém, a exclusão automática de invenções assistidas por IA do sistema de patentes. Em vez disso, propõe uma reflexão crítica sobre a adequação dinâmica dos critérios jurídicos tradicionais, especialmente o da atividade inventiva, diante de um novo contexto tecnológico. O artigo conclui que o desafio não está em negar proteção às invenções relacionadas à IA, mas em recalibrar os parâmetros jurídicos para preservar o equilíbrio entre incentivo à inovação e prevenção da concessão de monopólios indevidos

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