quarta-feira, 12 de março de 2014

Patentes de Software: uma resposta a Pedro Resende

Historicamente a noção de algoritmo teve origem com o matemático árabe Abu Adullah Mohammad Ibn Musa Al-Khwarizmi (cerca de 780-850). Sua obra, que inclui tabelas de funções trogonométricas,[1] chegou ao Ocidente por um texto latino do século XII, em que seu nome aparece na forma latinizada Algorismus. O cálculo algorítimo se contrapunha aos cálculos realizados com ábaco, então em voga. Por demandar muito papel, objeto de luxo na idade Média, e por ter origem de um infiel, o uso dos algoritmos somente viria a ter maior disseminação na Europa no século XVI[2]. Donald Knuth revela a presença de procedimentos para a determinação do comprimento e largura de cisternas presentes em tabuletas da antiga Babilônia: “Podemos elogiar os babilônios por terem desenvolvido uma boa maneira de explicar um algoritmo por meio do exemplo enquanto o próprio algoritmo começava a ser definido”.[3]
Claude Shannon desenvolveu trabalhos em teoria da comunicação em que a medida da informação como uma medida da incerteza da mensagem em termos de entropia como uma função de probabilidades. Shannon identifica informação com entropia, um conceito originalmente presente nos estudos de termodinâmica. Os físicos por sua vez identificam a entropia como a medida da incerteza em relação ao estado de um sistema físico, um dentre todos os estados que o sistema pode apresentar. Do ponto de vista estatístico tudo tende a máxima entropia, ou seja uma tendência do universo de fluir de macroestados menos prováveis (organizados) para os mais prováveis (desodenados). Maxwell ilustrou este conceito com um experimento de raciocínio. Numa caixa com gás interior as moléculas se agitam aleatoriamente de modo a manter a temperatura constante. Maxwell especulou que se esta caixa fosse dividida em duas (A e B) e interligada por uma válvula controlada por um ser que permitisse a passagem das moléculas rápidas para um dos lados da caixa, seria possível separar o ar quente e frio da caixa. Thomson rotulou este ser como “o demônio inteligente de Maxwell”. Este demônio de Maxwell ao organizar as moléculas, com base na informação sobre suas velocidades, conseguiria estabelecer uma ligação entre informação e energia. [4] Nas palavras de Maxwell: “esse ser, sem realizar trabalho algum, aumentará a temperatura de B e diminuirá a de A, em contradição com a segunda lei da termodinâmica”.
Este ser usa a informação para reduzir a entropia e aumentar o grau de organização do gás. Mas este ser ao conseguir separar o gás e permitir a formação de dois compartimentos a temperaturas diferentes nos cria um paradoxo de permitir a criação de um gerador de energia a partir do nada, um moto contínuo. O físico Leo Szilard demonstrou que o paradoxo é aparente uma vez que existe um custo nesta informação. Para reduzirmos a entropia numa caixa de gás, para realizar trabalho útil, é preciso pagar um preço em termos de informação. Leo Szilárd observou que o demônio de Maxwell, na vida real, precisaria ter algum meio de medir a velocidade molecular, e que o ato de aquisição de informações exigiria um gasto de energia. Charles H. Bennett mostrou que é o apagamento de informação que dissipa energia no demônio, e não a mera realização de uma medição.[5] De qualquer forma, a informação, portanto é na verdade física, ela não está dissociada do universo da matéria e da energia, das partículas e forças, mas é possível desta forma converter a informação de trajetória e velocidade de cada partícula de gás com a entropia. Esta associação foi sintetizada por Claude Shannon que estabeleceu que a entropia poderia estar associada com a medida de incerteza de uma mensagem de dados[6]
Allan Turing mostrou que uma máquina computacional pode ser reduzida a uma tabela finita de estados e a um conjunto finito de possibilidades de entrada, podendo ser tais máquinas representadas por números, da mesma forma que Godel tinha codificado a linguagem da lógica simbólica. Isto desfez a distinção entre dados e instruções: no fim, todos não passam de números. Sua máquina universal (denominada U) associa cada número a um algoritmo computável. Assim, por exemplo, o número irracional PI, ao invés de ser gravado em memória com uma quantidade infinita de memória (por ser irracional) poderia ser armazenada por uma sequência de instruções que quando executassem gerassem o número pi. Estas instruções do algoritmo estão associados a um número. O sistema formal em lógica matemática conhecido como cálculo lambda baseado em funções foi usado por Alan Turing para construção de sua máquina universal U. Dado um número, representado na forma de uma sequência de qualquer tamanho, indagamos: qual é o comprimento do menor programa capaz de gerá-lo ? Usando a linguagem de uma máquina de Turing, essa pergunta pode ter uma resposta definida, medida em bits.
Claude Shannon demostrou que o computador universal de Turing poderia ser construído com apenas dois estados internos e poderia simular qualquer outro computador digital. Gregory Chaitin demonstrou que um número que pudesse ser obtido por um algoritmo em que um programa de computador fosse capaz de gerá-lo, garantia a computabilidade deste número que não poderia ser desta forma considerado como aleatório. Este programa que implementaria o algoritmo seria medido em bits em uma maquina de Turing Universal. O tamanho do algoritmo mede a quantidade de informação presente neste número dito computável. Kolmogorov determinou a complexidade de algoritmos como o menor tamanho de computador necessário para gerar este número. Solomonoff também desenvolveu trabalhos similares estabelecendo assim uma conexão entre informação e algoritmos. [7]
Ben Klemens argumenta que qualquer software pode ser entendido como método matemático uma vez que pode ser reduzido a equações cálculo lambda de Turing, de modo que não há como traçar um limiar de patenteabilidade entre aquilo que poderia ser considerado método matemático e um método patenteável implementado por software. Para Klemens a máquina de Turing como um dispositivo físico teórico conhecido como máquina de estados poderia ser objeto de patente desde que inventivo, mas não quanto aos estados da máquina. [8] Na mesma linha de argumentação Pedro Rezende e Hudson Lacerda entendem que “a obra de Turing e Church [...] fornece a base para uma divisão clara entre, de um lado, objetos e processos físicos que implementam máquinas de estados – invenções que podem ser patenteáveis – e de outro, as informações (programas e dados) que essas máquinas processam, e que deveriam permanecer não patenteáveis".[9]
Ben Klemens, Pedro Rezende e Hudson Lacerda ignoram, contudo, o fato de que processos tem sido protegidos por patentes antes da existência dos primeiros computadores. Não é o fatio de ser abstrato que impede a possibilidade de apropriação por patentes. Os estudos de Maxwell mostram uma associação entre informação e o mundo físico, de modo que este não pode ser um critério de diferenciação. Um método matemático pode ser entendido como um processo escrito numa linguagem simbólica própria. O que define sua patenteabilidade será o fato de estar resolvendo um problema prático, técnico do mundo real e não unicamente alguma abstração do universo matemático. Aqui está o ponto de diferenciação entre as matérias passíveis de proteção patentária. A argumentação de associar o software como uma abstração matemática perde assim seu sentido como critério diferenciador para patenteabilidade. Atendido o critério de solução técnica, este processo já não seria visto como um método matemático, mas como uma solução de um problema de natureza técnica[10]. Por exemplo, um filtro eletrônico pode ser implementado em termos de seus componentes físicos: resistores, capacitores e indutores para alcançar uma determinada característica de frequência e fase, e tal circuito eletrônico não se questiona a possibilidade de patenteabilidade. Este mesmo circuito possui uma resposta de frequência alcançável da mesma forma pelo equivalente lógica da forma digital deste filtro, implementado como uma rotina executada por um computador. Dada as equações que regem este circuito eletrônico, é possível se obter de forma direta, aplicando-se conceitos matemáticos conhecidos (como Transformada Z), o equivalente lógico na forma digital deste mesmo circuito. A equivalência lógica entre os dois circuitos ocorre tanto no resultado final (Função de transferência entre sinal de saída e sinal de entrada) como para cada elemento do circuito físico eletrônico, ou seja, os meios usados para se alcançados os efeitos técnicos. No caso de uma associação direta como esta, para um método considerado não patenteado (um método para se determinar a raiz quadrada de um número por exemplo), tanto a forma matemática desta função não seria patenteada como o equivalente lógico matemático (tanto em termos de resultados como de meios alcançados) em sua forma mecânica. No caso em que esta implementação mecânica envolvesse alguma associação inventiva para substituição dos elementos lógicos matemáticos em elementos físicos mecânicos, poderia haver patente para esta implementação mecânica mas não para a implementação matemática que continuaria fora da proteção patentária e livre para ser utilizada em outras implementações mecânicas alternativas. O que garante a patenteabilidade da versão mecânica neste caso é a possibilidade de alternatividade de implementações, o que não se observa no caso em que esta associação fosse direta.


Demônio de Maxwell




[1] GLEICK, James. A informação: uma história, uma teoria, uma enxurrada, São Paulo:Cia das Letras, 2013, p. 91
[2] O nascimento da álgebra, Peter Schreiber, In: A Ciência na Idade Média, Scientific American do Brasil, agosto 2008, p. 16
[3] GLEICK, James. A informação: uma história, uma teoria, uma enxurrada, São Paulo:Cia das Letras, 2013, p. 54
[4] GLEICK, James. A informação: uma história, uma teoria, uma enxurrada, São Paulo:Cia das Letras, 2013, p. 288
[5] http://www.fflch.usp.br/df/opessoa/FiFi-12-Cap13.pdf
[6] GLEICK, op.cit.p.376
[7] GLEICK, op.cit.p.358
[8] KLEMENS, Ben. Math you can´t use, Brookings Institution Press: Washington,2006, p.36
[9] REIS, Renata; JÚNIOR, Veriano Terto; PIMENTA, Cristina; MELLO, Fátima. Propriedade Intelectual: interfaces e desafios, Rio de Janeiro, Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids ABIA, 2007, p.158 http://www.abiaids.org.br/_img/media/Anais_Rebrip_web.pdf
[10] Biotecnologia(s) e propriedade intelectual. v.II, João Paulo Fernandes Remédio Marques. Doutorado em Ciências Jurídico-Empresariais da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Coimbra:Ed.Almedina, 2007, p. 710

Nenhum comentário:

Postar um comentário