Em 1906, Alcides Godoy, cientista do Instituto Oswaldo Cruz,
descobriu a primeira vacina veterinária do país para profilaxia de doenças
infecto-contagiosas: a vacina contra o carbúnculo sintomático, mais conhecido
como Peste da Manqueira. Em 1918 em conjunto com outro pesquisador da Fiocruz,
Astrogildo Machado, Godoy descobriu a vacina anticarbunculosa, contra o
carbúnculo hemático, também conhecida como carbúnculo verdadeiro (ou antraz).
Tem havido confusão entre o Carbunculo Sintomático (Manqueira, Mal do Ano) e o
Carbuculo Hemático ou verdadeiro (Carbunculo, Antraz). A primeira vacina foi a
"Vacina contra a Manqueira" ou seja contra o Carbunculo Sintomático.
A Vacina contra o Antraz,"Vacina Anticarbunculo, Manguinhos", foi
desenvolvida cerca de 10 anos depois por Alcides Godoy e Astrogildo Machado que
então trabalhava no Laboratório de Godoy no Instituto Oswaldo Cruz. As duas
vacinas foram patenteadas a primeira por A.Godoy em 1908 (patente no 5566) e a
segunda por A.Godoy e A.Machado em 1918 registro no 9981.
O desenvolvimento desta vacina da peste manqueira partiu de uma
solicitação dos pecuaristas de Minas Gerais, onde a peste da manqueira dizimava
aproximadamente 40%, às vezes até 80% dos bezerros. A epizootia era muito comum
também em outros estados do Brasil e em vários países da América do Sul. Em
Minas ela já fora estudada por J. Batista de Lacerda, que chegou a preparar uma
vacina contra a doença, com resultados insatisfatórios. Oswaldo Cruz, que
qualificou estes estudos como pouco sérios do ponto de vista bacteriológico,
entregou a incumbência primeiro a Ezequiel Dias e Rocha Lima, depois a Alcides
Godoy. A originalidade do processo de Godoy residia na utilização de um meio de
cultura especial para bactérias anaeróbicas, na qual a glicose tinha um papel
preponderante. Com esse meio de cultura, obteve uma raça diferenciada de
bactérias de virulência atenuada, o que permitiu o uso da vacina com o germe
vivo (Clastridium Chauvei). Basta uma injeção de dois centímetros cúbicos para
imunizar o animal durante toda a vida. Geralmente aplica-se a vacina em
bezerros, nos primeiros anos, pois o animal que atinge à idade adulta, num meio
infectado,está naturalmente imunizado. Logo que foram confirmadas as
propriedades vacinantes das culturas de Godoy, ele partiu para Juiz de Fora,
com Rocha Lima e Carlos Chagas, para executar as experiências finais, e só
então a vacina começou a ser fabricada em escala comercial.
Após a descoberta das vacinas em 1906 e os registros das
respectivas patentes em nome dos cientistas fundadores de Manguinhos, elas
passaram a ser fabricadas no Instituto Oswaldo Cruz - Manguinhos, atual
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e exploradas comercialmente pelos próprios
cientistas até que, em 1939, resolveram fundar a empresa Produtos Veterinários
Manguinhos Ltda, continuando a trabalhar no IOC até falecerem, respectivamente
em 1950 e 1945. A firma Produtos Veterinários Manguinhos foi criada e continuou
a produção das vacinas até então produzidas no IOC. A vacina contra a manqueira
começou a ser distribuída e vendida já em 1906. Ela imunizava o gado com uma só
aplicação. Na exposição de demografia e higiene realizada de Berlim, em junho
de 1907, na qual o Instituto obteve a medalha de ouro, a vacina da manqueira
foi um dos destaques selecionados, dentre os produtos fabricados para
representar as atividades do IOC. A premiação em Berlim foi determinante para
que o Ministério da Justiça e Negócios Interiores aprovasse um novo
regulamento, proposto por Oswaldo Cruz, visando expandir de modo expressivo as
atribuições do Instituto, que passaria a gozar de considerável autonomia
administrativa e financeira, sendo esta última garantida, principalmente, pela
renda advinda da venda da vacina na manqueira. Tais recursos, que permitiam ao
Instituto não depender apenas do orçamento governamental, foram fundamentais
para contratar novos pesquisadores e, assim, ampliar o quadro de pessoal da
instituição. O próprio Oswaldo Cruz, em função da repercussão e da
originalidade do processo desenvolvido por Godoy, aconselhou-o a patentear em
seu nome a invenção.
Depois de registrar a patente da vacina, em 24 de novembro de
1908, (Carta patente n 5.566, publicada no Diário Oficial de 6 de dezembro de
1908), Godoy lavrou em cartório uma escritura de cessão, lavrada no Tabelião
Evaristo Vale de Barros, em 11 de dezembro de 1908, transferindo sua invenção
para o Instituto Oswaldo Cruz, na condição de reverter em favor de suas
atividades científicas a exploração industrial do produto, sob pena de ficar
sem efeito a concessão. Por entendimento verbal entre Oswaldo Cruz e Godoy,
ficou estabelecido que o descobridor teria direito a 5% da renda bruta da
vacina até 1917, e daí em diante, 8%. Esse artifício hábil consolidou a
autonomia de Manguinhos, permitindo-lhe gerir esses recursos, que seriam
consideráveis, sem ter de se submeter à burocracia do Ministério da Justiça ou
às rígidas determinações que presidiam a aplicação das verbas votadas pelo
Congresso. Por outro lado, o estratagema criava, jurisprudência para um tipo de
relação privatista entre a instituição e seus pesquisadores, estimulados a
inventar e patentear outros produtos biológicos. Segundo depoimento de Arthur
Neiva: “dos milhares e milhares de contos
de réis que as vacinas preparadas em Manguinhos renderam os descobridores
preservaram para si módica percentagem, abrindo mão da quase totalidade em
favor de Manguinhos”.[1]
Carlos Chagas retrucava aos críticos que consideravam imoral facultar a seus
técnicos o direto de solicitar patentes e auferir parte da renda gerada: “A descoberta de produtos novos representa a
resultante do esforço ou da capacidade profissional e merece ser recompensada.
Alegam os contraditores dessa prática que os tais descobrimentos são realizados
com material do estado, e que os descobridores são pagos para realizar
descobertas. À primeira objeção cabe a resposta de que não é o microscópio e
nem o tubo de cultura que fazem as descobertas E quanto á outra alegação, eu
devo afirmar que entre as atribuições dos funcionários deste Instituto não
figura a obrigação de fazer descobertas. Seja como for, o certo é que devemos a
tais normas uma grande parte do desenvolvimento científico do Instituto”.[2]
Entre estes críticos se encontrava o próprio Arthur Neiva que alegava que
´modelo de partição de lucros da patente da manqueira fomentou uma ambição nos
demais pesquisadores em detrimento da pesquisa básica: “Esta foi a origem principal
da decadência de Manguinhos. Vários técnicos do Instituo atualmente empregam
toda sua atividade no preparo de vacinas, soros, produtos quimioterápiocos,
que, revestidos no nome prestigioso do Instituo onde foram preparados, possam
dar uma fonte de renda avultada a seus manipuladores. Todos o ideal de pesquisa
científica desinteressada já despareceu quase que pela totalidade dos
assistentes, e os que não se sentem com pertinácia para preparar soros e
vacinas procuram fundar na cidade laboratórios de pesquisas onde possam
encontrar uma condição material melhor do que a que lhes é oferecida pelos
pequenos honorários que recebem”.[3]
Segundo Simon Schwartzman: "Os recursos para financiar boa
parte dessas pesquisas vinham não do custeio do Instituto pelo governo federal,
mas do que ficou conhecido como a “verba da manqueira”. Em 1908 Alcides Godói e
José Gomes de Faria desenvolveram uma vacina muito eficaz contra a “manqueira”,
uma doença que afetava o gado brasileiro. Doaram ao Instituto a patente dessa
vacina, e os lucros com a venda da vacina serviam agora para equipar
laboratórios, pagar novos pesquisadores e financiar as viagens dos técnicos
pelo Brasil ou aos países vizinhos, em busca de novos problemas e novas
soluções”. A famosa verba da manqueira, contabilizada à parte, teve importância
vital na sustentação do Instituto Oswaldo Cruz, sobretudo nas conjunturas
recessivas do país, com ela foram pagos os salários de muitos pesquisadores e
funcionários, parte das despesas com as novas construções, a impressão das
Memórias e uma infinidade de outros itens. Devido à importância dessa fonte de
recursos, o Instituto empenhou-se a fundo em disseminar o uso da vacina nas
zonas pastoris do Brasil. Grande parte dos fornecimentos fazia-se por
intermédio do Ministério da Agricultura e outros órgãos públicos estaduais ou
municipais. Basta salientar, que, entre outras rendas arrecadadas pelo
Instituto, predominava a da manqueira, pela qual foi custeada a maioria das
despesas do pessoal contratado e de material até 1930, além da despesa total do
Instituto nos anos de 1931 e 1932, na importância média de Cr$ 880 mil anuais,
em virtude de ter havido corte orçamentário nos ditos anos. Tendo o governo
concedido apenas Cr$ 30 mil para material em 1933 e Cr$ 30 mil para 1934, foi a
citada renda um fator preponderante para a manutenção dos encargos do
Instituto.
A experiência da vacina da peste manqueira que garantiu a
autonomia financeira de Manguinhos por três décadas foi pontuada por conflitos
políticos e gerenciais. Nara Britto, a partir de depoimento oral de Lobato
Paraense, esclarece que as discussões em torno desta vacina originaram
divergências, gerando três posições sobre a aplicação dos lucros auferidos com
a comercialização do produto. Oswaldo Cruz decidiu destinar os royalties da
vacina aos inventores. Uma vertente apoiou a medida tomada por Oswaldo Cruz.
Outro grupo pensava em aplicar as verbas em compra de materiais laboratoriais.
Um terceiro grupo defendeu a distribuição equitativa dos lucros entre os
pesquisadores, como forma de acréscimo salarial. Questionou-se também a
“legitimidade de propriedade de um produto desenvolvido numa instituição
pública”. Em relatório do Instituto Oswaldo Cruz, de 14 de fevereiro de 1912,
Oswaldo Cruz tece comentários generosos em relação à atitude de desprendimento
de Godoy, posto que este havia cedido a titularidade da vacina ao Instituto.
Godoy condicionou a cessão à aplicação das verbas em atividades de aquisição de
livros e de publicação da revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, conforme
Relatório do Instituto Oswaldo Cruz, de 1911 (Britto, 1995). A patente da
vacina foi registrada em 24 de novembro de 1908 (carta patente no 5.566,
publicada no Diário Oficial, de 6 de dezembro de 1908), e lavrada pelo tabelião
Evaristo Vale de Barros, em 11 de dezembro de 1908. O termo de cessão foi
registrado em 24 de março de 1909, no livro 5, fl.132, do registro geral de
privilégios, da Diretoria Geral de Indústria (Ministério da Viação e Obras
Públicas). O não cumprimento das condições supracitadas invalidaria a cessão.
Entendimento verbal entre Oswaldo Cruz e Alcides Godoy possibilitou o
remanejamento, em favor do inventor, de 5% da renda bruta da vacina até 1917, e
daí em diante, 8% (Benchimol, 1990). Para Henrique Cukierman: “o hábil artifício da cessão da patente
permitiu consolidar a autonomia de Manguinhos, assegurando-lhe recursos
consideráveis e absolutamente estratégicos, uma vez que estavam colocados fora do alcance da inconstância da
burocracia pública e das rígidas determinação que acompanhavam as aplicações de
verbas orçamentárias aprovadas pelo Congresso”.[4]
A vacina contra a peste manqueira, que atingia o gado, foi o
segundo produto que obteve no Brasil a renovação da Patente, fato só obtido
anteriormente pelo Formicida Matarazzo. A patente da vacina manqueira foi
prorrogada pelo Decreto nº 16.200 de 31 de outubro de 1923 que prorrogou por 15
anos o prazo do privilégio de que trata a Carta de Patente de invenção, nº
5.566 de 24 de novembro 1908, que em seu artigo primeiro estabelece: “Fica
prorrogado por 15 anos o prazo do privilégio a que se refere a Carta Patente n.
5.566, de 24 de novembro de 1908, concedida ao Dr. Alcides Godoy e transferida ao Instituto de Patologia
Experimental de Manguinhos (Instituto Oswaldo Cruz), em 24 de março de 1909,
para invenção de uma nova vacina contra o carbúnculo sintomático (peste da
manqueira)”. Os
rendimentos obtidos com a venda da vacina foram fonte de verbas controladas
pelo Instituto para contratar pessoal, comprar material, formar a biblioteca
etc.
Em 1937, como consequência da reforma implementada por Gustavo
Capanema no Ministério da Educação e Saúde (criado em 1930, no âmbito da
Revolução de 1930), foi vedada ao IOC a fabricação e comercialização desse e
outros produtos veterinários. Segundo Henrique Cukierman: “A festa da autonomia de Manguinhos terminaria em 13 de dezembro de 1937
quando foi aprovada a incorporação de sua renda à receita geral da União,
passando todos os seus serviços a serem custeados por dotações do orçamento
ministerial”.[5] Em 26 de junho de 1938,
Godoy e Machado pediram o registro da marca genérica para produtos veterinários
Manguinhos. Suas famílias fundaram em 25 de janeiro de 1939, uma firma que se
chamou Produtos Veterinários Manguinhos Ltda, para fabricar e comercializar a
vacina da manqueira, do carbúnculo hemático, e posteriormente a vacina contra a
pneumoenterite dos porcos. O primeiro lugar em que estabeleceram o laboratório
foi em prédio nos fundos do Hospital Gaffrée Guinle, na Rua Silva Ramos 20.
Tiveram por muitos anos escritório na Rua Uruguaiana 33. Na década de 40
construíram um laboratório na Rua Licinio Cardoso 91 (hoje Rua Francisco
Manuel), em Benfica. Godoy casou-se com Dulce Leite de Castro em 5 setembro de
1923 e tiveram dois filhos: Oswaldo Tarcisio, que veio a se formar em Química
Industrial e Engenharia Química e Margarida Maria, que estudou musica, tocava
piano e estudou na Europa. Faleceu em 30 de janeiro de 1950, aos 70 anos. Na
década de 1960 a família Godoy saiu da sociedade, que ficou com a família de
Machado. A firma, que continua a fabricar a vacina da manqueira, foi vendida
recentemente pelos seus descendentes e pertence hoje à empresa Bravet.
[1] BENCHIMOL, Jaime; TEIXEIRA, Luiz
Antonio. Cobras, lagartos & outros bichos, UFRJ, 1993, p.209
[2] BENCHIMOL, Jaime; TEIXEIRA, Luiz
Antonio. Cobras, lagartos & outros bichos, UFRJ, 1993, p.189; CUKIERMAN,
Henrique. Yes, nós temos Pasteur. Rio de Janeiro: Faperj,2007, p. 339
[3] BENCHIMOL, Jaime; TEIXEIRA, Luiz
Antonio. Cobras, lagartos & outros bichos, UFRJ, 1993, p.145
[4]
CUKIERMAN, Henrique. Yes, nós temos Pasteur. Rio de Janeiro: Faperj,2007, p.
338
[5]
CUKIERMAN, Henrique. Yes, nós temos Pasteur. Rio de Janeiro: Faperj,2007, p.
341
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