sábado, 11 de junho de 2022

Sham litigation em patentes

No debate que tem convergido para não extensão da vigência das patentes alguns autores tem levantado a aplicação de medidas punitivas contra tais empresas que teriam pleiteado de má fé tais ações de extensão de prazo de suas patentes no intuito de limitar ou impedir o acesso de novas empresas ao mercado, criando dificuldades à livre concorrência, nos termos da Lei nº 8.884, de 11 de junho de 1994. Marcos Lobo e Gabriel Tannus questionam a aplicação de “sham litigation” ou abuso do direito de ação, contra as empresas farmacêuticas que pleiteiam na justiça a extensão de suas patentes de 15 anos para 20 anos por conta da entrada em vigor da LPI, uma vez que tal prática não poderia ser considerada uma conduta anti-concorrencial no sentido técnico da Lei nº 8884/94: “a busca da preservação de direitos patentários, tão necessários às empresas de investimentos vultosos em pesquisa, não se enquadra neste uso indevido que se tenta impingir à indústria farmacêutica de inovação”.

A Aventis ajuizou uma ação na Justiça buscando estender o prazo de vigência de uma de suas patentes. Na ação o juiz considerou que a conduta da empresa não poderia ser enquadrada como litigância de má fé e qualquer efeito competitivo desta conduta seria indireto e intermediado por uma decisão de negócios por parte dos competidores. [1] Em contraponto, Pedro Barbosa observa que o Judiciário brasileiro tem se manifestado favorável ao enquadramento de tal comportamento como má-fé passível de punição. Pela primeira vez a Seção Judiciária Federal do Rio de Janeiro, em decisão de inédito conteúdo, multou tal prática pelo exercício da litigância de má-fé, nos termos do artigo 17, III, do Código de Processo Civil, pela utilização da medida processual como forma de se alcançar objetivo ilegal: “forçoso é reconhecer que, ao ajuizar a presente ação no último dia de vigência da patente, a parte autora obteve, de fato, a extensão do prazo de seu monopólio por um ano, eis que dificilmente alguma outra empresa lançará o mesmo produto no mercado, sob a ameaça de infringir indevidamente a patente da autora. Considero, assim, que a empresa autora agiu como litigante de má-fé”.[2] O juiz do TRF2 relator Paulo do Espírito Santo contudo conclui: “Para a aplicação da multa prevista no art. 18 do CPC, deve ser comprovada a incidência de um dos comportamentos descritos no art. 17 do CPC, de forma a configurar a litigância de má-fé. - Embora proposta a ação no último dia do prazo de vigência da pipeline brasileira, não há elementos concretos que nos permitam concluir que com isso pretendesse criar uma situação de modo a prorrogar o monopólio por mais um ano”. Sobre o tema, em outra época, manifestou-se Gama Cerqueira: “Não receamos errar afirmando que os interesses nacionais e os interesses da coletividade não se conciliam nunca com a prorrogação do prazo dos privilégios, exigindo, ao contrário, a sua extinção no prazo normal”.[3]

Segundo Ana Maria Melo Netto, no Brasil a “sham litigation” é passível de punição nos termos da Lei nº 8.884/94 de Defesa da Concorrência “Art. 21, inc. XVI -açambarcar ou impedir a exploração de direitos de propriedade industrial ou intelectual ou de tecnologia”. Entre as denúncias recebidas pela SDE encontram-se o caso ANFAPE: denúncia contra as montadoras de automóveis por uso abusivo do direito de ação na tentativa de proteger direito de propriedade sobre desenho industrial conferidos a autopeças. O caso Tacógrafos: Siemens VDO, detentora de 85% do mercado nacional de tacógrafos, adotou série de medidas judiciais para impedir / retardar entrada de novo tacógrafo pela concorrente SEVA, com 2% do mercado (recomendação de condenação por prática de cartel, mas não por sham litigation)[4]. O Caso Perfis de Alumínio: suposto abuso de posição dominante da Alcoa por meio da requisição, junto ao INPI, de direitos de propriedade industrial de perfis de alumínio já existentes no mercado também foi além alegada conduta de sham litigation embora não acolhida pelo Cade. O caso Shop Tour pode ser definido como o primeiro caso explicitamente de sham litigation envolvendo DPI no Brasil. O CADE utilizou o padrão de processo civil de litigância de má-fé, identificando efeito anticompetitivo do uso de liminares[5].

Para Lucia Salgado, Graziela Zucoloto e Denis Barbosa[6] a litigância predatória consiste em um litígio anticompetitivo sem fundamento legítimo e pode ocorrer por exemplo nas ações entre concorrentes envolvendo práticas colusivas; ações frívolas iniciadas pela firma dominante com o objetivo de limitar a atuação de concorrentes potenciais; e ações frívolas movidas contra agências governamentais com o objetivo de ganhar tempo e manter, artificialmente, direitos de propriedade intelectual em curso. Segundo os autores: “O predador não espera lucrar a partir do resultado do processo em seus méritos, mas, sim, devido a um maior preço de mercado causado pela limitação na atuação do concorrente, gerando, em consequência, ganhos monopolistas ao litigante”.

Para Karina Pinhão o sham litigation cuida do “exercício abusivo do direito de ação e não mera conduta de má fé no curso do processo. Nesse sentido, pode-se observar que a ação demanda pode ser abusiva sem que nenhuma das partes, no curso do porcesso, incorra em nenhuma das condutas de má fé dispostas no artigo 17 do CPC [...] Desta froma qualquer infração à Ordem Econômica (de que cuida o artigo 170 e seguintes da Constituiççao) ensejará uma responsabilidade objetiva na lei antitruste à qual não está imune o direito de ação”. Esta posição se opõe à prática nos Estados Unidos que vincula o sham litigation à prática de má fé.

Segundo o advogado Daniel Lemos dentre outros aspectos, para a configuração do “sham litigation” no Brasil é necessário que haja a existência de uma lide temerária. Desta forma “em razão do princípio da possibilidade de revisão dos atos da administração pública pelo Poder Judiciário, não se pode falar em lide temerária, e, portanto, em “sham litigation” – a menos que o Judiciário se pronuncie acerca da temeridade da ação”.[7] O advogado Renato Dolabella Melo questiona a aplicação do Artigo 21 Defesa da Concorrência, uma vez que os direitos de PI não geram necessariamente poder de mercado. O advogado Marcos Lobo Levy e o presidente-executivo da Interfarma-Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa Gabriel Tannus destacam que “a legislação brasileira, especialmente o Código de Processo Civil – Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – possibilita a aplicação de sanções a quem se utiliza do Judiciário para fins escusos, ilegais ou protelatórios (artigo 17) ou propõe ações sem base legal nem mérito. Para isso, entretanto, é preciso demonstrar que, de fato, determinado litigante está agindo de má-fé no uso do Poder Judiciário.”

Em agosto de 2015 o CADE condenou a Eli Lilly por abuso do direito de peticionar, usando ações judiciais em diferentes localidades contra dois órgãos públicos como estratégia anticompetitiva contra seus concorrentes. A companhia recebeu multa de R$ 36 milhões do Cade. Dessa forma, a empresa visava manter a exclusividade na produção do medicamento Gemzar, voltado para o tratamento de câncer, enquanto acionava tanto a ANVISA como o INPI no Rio de Janeiro e Distrito Federal.[8] Segundo parecer do CADE o pedido inicial de patente PI9302434 da Eli Lilly tratava do processo de produção do composto cloridrato de gencitabina, pedido este que foi denegado pelo INPI, com base na inaplicabilidade do Acordo TRIPs. Posteriormente, foram adicionados dois novos itens ao quadro reivindicatório. Os dois novos itens (reivindicações 15 e 16) versavam não mais sobre patente de processo, mas de produto, de maneira que o escopo do pedido teria sido alterado substancialmente. Assim, omissão de dados relevantes em determinadas demandas estaria relacionada ao aumento do escopo do pedido de patente, tendo em vista que, mesmo sabendo que o pedido somente poderia versar sobre processo, a Representada ajuizou ação em face da ANVISA para a obtenção de registro de exclusividade de comercialização do produto GEMZAR. Segundo a Superintendência Geral do CADE: “Assim, de forma abusiva e tumultuada, por meio de enganosidades e omissões severas ao Judiciário e utilizando-se de artifício doloso e ardiloso – consistente em pedir e obter a suspensão da análise do INPI junto a um Juízo, ao mesmo tempo que se pedia o monopólio temporário do produto em outro Juízo, sob o argumento de demora na análise pelo INPI (demora essa demandada e obtida pela própria empresa) –, as Representadas conseguiram o monopólio sobre um medicamento que estava em domínio público, (Gencitabina), para o uso de câncer de mama”.[9]

O conceito de sham litigation pode ser definido como um litígio predatório ou fraudulento com efeito anticoncorrencial, ou o uso impróprio de tribunais e outros processos governamentais contra rivais para alcançar fins anticompetitivos. [10] Nos Estados Unidos a Primeira Emenda da Constituição garante o direito de petição a todo cidadão. Pela doutrina conhecida como Noerr Pennington[11], baseada em decisões da Suprema Corte[12] dos anos 1960, entidades privadas não podem ser punidas pela legislação antitruste por utilizar-se de ações judiciais contra os rivais ainda que seus motivos possam ser anticoncorrenciais. Em Eastern R. Presidents Conferences v. Noerr Motor Freight uma associação de presidentes ferroviários lançaram uma campanha oublicitária de conteúdo depreciativo contra caminhoneiros com vistas a obter a aprovação de leis estaduais que gerariam efeitos anticompetitivos no mercado de serviço de frete a longa distância. A Suprema Corte reconheceu como legítima a tentativa dos ferroviários em tentar convencer o legislativo a votarem leis em seu favor ainda que as mesmas possam ter efeitos anticompetitivos. Em United Mine Workers of America v. Pennington um sindicato de grandes mineradoras buscou influenciar o órgão administrativo federal a adotar um alto salário mínimo uniforma para os mineiros, significativamente superior ao de outras indústrias, o qual não seria suportado pelas pequenas mineradoras, trazendo portanto enfeitos anticoncorrenciais. A Suprema Corte conclui que a prática é legítima, não se constitui violação da legilação antitruste, ainda quetenha por finalidade a eliminação da concorrência. Entretanto em California Motor Transport v. Trucking Unlimited a Suprema Corte embora reconheça que práticas de lobbying anti éticas para se atingir um resultado anticoncorrencial estejam geralmente imunes da legislação antitruste as ações que corromem a adminstração ou autoridades judiciais podem resultar em ações antitruste.[13]

A Suprema Corte enquadra como sham litigation apenas aquelas práticas que representam por si só uma farsa, empregada como meio de impor custo e demora à decisão judicial. Segundo Professional real Estate Investors e Kenneth Irwin (PRE) v. Columbia Pictures Industriais é necessário haver um cunho objetivo em que se verifique que a ação é desprovida de qualquer fundamento, no sentido de que nenhum litigante razoável poderia esperar obter provimento em seu mérito, e em segundo lugar um cunho subjetivo na medida em que se configure uma intenção direta anticorrencial, sem uma preocupação com o resultado final do processo.[14]

No entanto, se o intuito da petição não é o se obter uma resposta favorável ao peticionador, mas ao invés disso o de prejudicar ou suprimir o concorrente, então este litígio é considerado abusivo como sham litigation. [15] Em CSU v. Xerox[16] o Federal Circuit entendeu que a doutrina antitruste preserva os direitos do titular desde que a patente não tenha sido obtido por meio de fraude, ou o motivo que leva o titular a litigar contra a concorrência é considerado frívolo (sham litigation) cujo único intuito é o de prejudicar os negócios do competidor.

Nos Estados Unidos segundo o 35 USC 284 as Cortes estão autorizadas a aumentar as indenizações em até três vezes no caso de contrafação de patentes, como punitive damages, no caso de constada a má fé do contrafator. Assim a solicitação de uma opinião sobre eventual contrafação pode caracterizar por parte de terceiros sua boa fé e diligência em evitar uma possível contrafação.[17] Mark Lemley destaca que as Cortes tem consolidado o conceito de abuso de patentes (patent misuse) especialmente quando o titular busca estender sua patente além do escopo tendo produzidno efeitos anticompetitivos.[18] Mark Lemley argumenta que a doutrina de patent misuse dificilmente seria aplicada para tecnologia empregada em padrões técnicos apenas pelo fato do titular se recusar a licenciar sua patentes, ademais a aplicação de licenças compulsórias neste caso pareceria abusiva caso a patente abrangesse outras tecnologias que não a diretamente objeto da disputa.[19]



[1] Tribunal Regional Federal 2a Região – Segunda Câmara Especializada em PI, Apelação Civel nº 200851018171597. Sanofi Aventis v. INPI. Decisão: 31/10/2010 cf. SILVA, Lucia Helena salgado; ZUCOLOTO, Graziela Ferrero; BARBOSA, Denis Borges. Study on the anti-competitive enforcement on intellectual property rights: sham litigation , IPEA/WIPO, 2011 http://www.wipo.int/export/sites/www/meetings/en/2011/wipo_ip_ge_11/docs/study.pdf

[2]  Processo nº 2008.51.01.817159-7, em trâmite perante a 37ª Vara Federal do Rio de Janeiro.

[3]  CERQUEIRA, Gama. Tratado de Propriedade Industrial. São Paulo: Ed.Revista dos Tribunais, 1982. v. II.

[4]  BATISTA, Eurico. Cade pode aplicar multa por abuso do direito de ação http: //www.conjur.com.br/2010-mar-16/cade-julga-primeiro-sham-litigation-ordem-economica-pais. http://www.cade.gov.br/temp/D_D000000551601990.pdf

[5] SILVA, Lucia Helena salgado; ZUCOLOTO, Graziela Ferrero; BARBOSA, Denis Borges. Litigância predatória no Brasil. IPEA Radar Nº 22: tecnologia, produção e comércio exterior, 10/2012, p.25 http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/radar/121114_radar22.pdf

[6] SILVA, Lucia Helena salgado; ZUCOLOTO, Graziela Ferrero; BARBOSA, Denis Borges. Litigância predatória no Brasil. IPEA Radar Nº 22: tecnologia, produção e comércio exterior, 10/2012, p.25 http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/radar/121114_radar22.pdf

[7]  http: //br.groups.yahoo.com/group/pibrasil/ mensagem de 05/07/2010.

[8] http://jota.info/cade-condena-eli-lily-a-pagar-r-36-milhoes-por-sham-litigation#.Vdvj67pr11Q.facebook

[9] http://jota.info/cade-condena-eli-lily-a-pagar-r-36-milhoes-por-sham-litigation#.Vdvj67pr11Q.facebook

[10] SALGADO, Lucia Helena; ZUCOLOTO, Graziela; BARBOSA, Denis Borges. Litigância Predatória no Brasil, http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/radar/121114_radar22_litigncia_predatria.pdf

[11] http://en.wikipedia.org/wiki/Noerr-Pennington_doctrine

[12] Eastern Railroad Presidents Conference v. Noerr Motor Freight, Inc., 365 U.S. 127, 135 (1961); United Mine Workers v. Pennington, 381 U.S. 657, 670 (1965).

[13] CHIAPPETTA, Vincent. Patenting industry standards. In: TAKENAKA, Toshiko. Patent law and theory: a handbook of contemporary research,Cheltenham:Edward Elgar, 2008, p.753

[14] PINHÃO, Karina Almeida Guimarães. O uso disfuncional e anticoncorrencial do direito de ação. Revista da EMARF, Rio de Janeiro, v.20, n.1, p.145-200 http://www.trf2.gov.br/emarf/revistaemarf.html

[15] HOVENKAMP, Herbert. Antitrust enterprise: principle and execution, Cambridge:Harvard University Press, 2005, p.1985/4769

[16] CSU. LLC. V. Xerox. 203 F.3d 1322, 1326 (Fed. Cir. 2000) cf. LIM, Daryl. Misconduct in standard setting: the case for patent misuse. A: The Journal of Law and Technology, v.51, n.4, p.573, 2011 http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1871449

[17] BOUCHOUX, Deborah. Intellectual Property for Paralegals: the Law of trademark, copyrights, patents and trade secrets. Canada: Thomson, West Law Studies, 2005. p. 365.

[18] B.Braun Med. Co. v. Abbott Labs, 124 F.3d, 1419, 1426 (Fed. Cir. 1997) cf. BURK, Dan L.; LEMLEY, Mark, A. The patent crisis and how the Courts can solve it. The University of Chicago Press, 2009, p.135; LIM, Daryl. Misconduct in standard setting: the case for patent misuse. A: The Journal of Law and Technology, v.51, n.4, p.557-604, 2011 http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1871449

[19] LEMLEY, Mark. Intellectual Property Rights and Standard-Setting Organizations, Stanford Law School, April 1, 2002, California Law Review (online), Vol. 90, 2002 UC Berkeley Public Law Research Paper No. 84, p. 1936 http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=310122

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