segunda-feira, 20 de junho de 2022

Licenças compulsórias de patentes

 


A licença compulsória é a autorização dada por uma autoridade constituída, a pessoa outra que o titular da patente a praticar atos de que estaria excluído normalmente de realizar pela proteção da mesma patente, sem que haja autorização deste titular. O Artigo 68 da LPI estabelece que “O titular ficará sujeito a ter a patente licenciada compulsoriamente se exercer os direitos dela decorrentes de forma abusiva, ou por meio dela praticar abuso de poder econômico, comprovado nos termos da lei, por decisão administrativa ou judicial”. Na tramitação do PL 824/91 na Câmara dos Deputados, Sérgio Arouca apresentou em abril de 1993 emenda prevendo a possibilidade de licenças compulsórias ainda na fase de pedido depositado, porém esta redação não foi acolhida no texto final da LPI.


Configurada esta situação de abuso, ensejam, igualmente, licença compulsória: a não exploração do objeto da patente no território brasileiro por falta de fabricação ou fabricação incompleta do produto, ou, ainda, a falta de uso integral do processo patenteado, ressalvados os casos de inviabilidade econômica, quando será admitida a importação; ou a comercialização que não satisfizer às necessidades do mercado, conforme o parágrafo primeiro do mesmo Artigo 68 da LPI.


Segundo Pontes de Miranda, este instrumento tem sua origem no direito britânico: “a licença compulsória é a mais feliz medida legal para se conciliar, com o interesse público de exploração, o interesse particular do titular do direito de propriedade industrial. A propriedade fica, retira-se o uso para se atribuir a quem use a invenção”.[1]

Segundo Luiz Guilherme de Loureiro[2] “se observarmos a regra segundo a qual ao intérprete não é possível limitar o que a lei não limita, devemos entender que o não atendimento ao mercado internacional, sem justo motivo, pode dar ensejo a licença obrigatória. De qualquer forma, a lei, qualquer que seja ela, admite mais de uma interpretação no decurso do tempo”.

O Artigo 5o (2) da Revisão de Estocolmo da CUP (1967) estabelece que Cada país da União terá a faculdade de adotar medidas legislativas prevendo a concessão de licenças obrigatórias para prevenir os abusos que poderiam resultar do exercício do direito exclusivo conferido pela patente, como, por exemplo, a falta de exploração. Um período de carência é exigido pela Convenção de Paris, conforme o Artigo 5 (4) Não poderá ser pedida licença obrigatória, com o fundamento de falta ou insuficiência de exploração, antes de expirar o prazo de quatro anos a contar da apresentação do patente, ou de três anos a contar da concessão.

As normas no sistema da common law são suscetíveis de serem alteradas mais facilmente do que as no do direito romano germânico[3]. O common law provém do direito Inglês e ganhou maior impulso nos Estados Unidos, com contornos diferenciados. Neste a "jurisprudência" é a principal fonte do Direito. No direito romano germânico (civil law) a Lei é a principal fonte em consonância com a sua estrutura. Não a Lei como vontade determinada dos governantes, mas como resultado do consenso ou da maioria nos Parlamentos. Nos países de tradição romano-germânica da civil law há uma tendência de conferir maior poder de decisão aos juízes em detrimento da vinculação mais rígida à jurisprudência[4]. Segundo Tércio Sampaio Ferraz “a jurisprudência no sistema romanístico é, sem dúvida, fonte interpretativa da lei, mas não chega a ser fonte do direito”[5].


TRIPs prevê licenças compulsórias no intuito de:

•       remediar práticas anticompetitivas ou desleais (Artigo 31.k),

•       permitir explorar uma patente dependente (Artigo 31.l),

•       prevenir abusos no exercício do direito de patente (Artigo 31.b),

•       suprir falta ou insuficiência de exploração da invenção no mercado interno (Artigo 31.f),

•       atender ao interesse público ou em casos de emergência nacional (Artigo 31.b).

Lucas Rocha Furtado[6] entende que a presença de prática abusiva constitui uma das modalidades para concessão de licenças compulsórias, pois o parágrafo 1o do artigo 68 da LPI trata da possibilidade de concessão de licenças compulsórias em face a falta de exploração local. Para Lucas Rocha Furtado “impedir a expedição de licença compulsória a terceiro apto a fabricar objeto da patente no Brasil em razão da simples alegação de inviabilidade econômica, constitui conduta de constitucionalidade questionável”.

Denis Barbosa[7] da mesma forma também entende que o desuso dá margem a licença compulsória, ainda que não configurado abuso: “assim desaparece qualquer consideração quanto a existência ou não de abuso; ainda que a CUP classifique o desuso como tal, para a lei brasileira a simples não exploração deflagra a pretensão do licenciamento” e ainda “assim são causas que legitimam a licença compulsória: a falta de fabricação do produto; a fabricação incompleta do produto; a falta de uso integral do processo patenteado; a comercialização que não satisfizer as necessidades do mercado. Tais fatos dispensam qualquer constatação suplementar de abuso de poder econômico. São fato que por si só, fixando o abuso juris et jure, constituem a situação jurídica que propicia o requerimento de licença compulsória pelo interessado que foi legitimado para tanto”[8].

Segundo Denis Barbosa[9] há que se preservar o equilíbrio entre os interesses da coletividade e os interesses do inventor: “a licença compulsória, segundo os parâmetros constitucionais, não pode exceder a extensão, a duração e a forma indispensável para suprir o interesse público relevante, ou para reprimir o abuso da patente ou do poder econômico”. Quanto as licenças compulsórias motivadas por emergência nacional ou interesse público Denis Barbosa[10] observa que “existindo ou não uma situação de lesão à concorrência, poderá haver os elementos do fato gerador da licença por interesse público quando o produto patenteado não for capaz de atender à necessidade pública ou a emergência em razão do preço excessivo”.

Denis Barbosa, baseado na abalizada posição de Bodenhausen, alega que o Artigo 5 da CUP impede a caducidade de uma patente pelo simples fato de estar sendo explorada através de importação ao invés de fabricação local, porém não impede que outras restrições possam ser aplicadas neste caso, como o de regular tal importação[11], por exemplo, ao permitir que terceiros também importem o produto patenteado. Para se configurar uso efetivo da patente basta comprovar a utilização no território pertinente, seja por importação seja por fabricação local[12]. Segundo Denis Barbosa: “igualmente não infringe tal princípio [não discriminação] a lei nacional que definir como uso efetivo o suprimento do seu mercado por qualquer meio [seja por importação ou fabricação local]”.

Cícero Gontijo observa que diplomatas do Ministério de Relações Exteriores confirmaram no Senado, durante os debates para a aprovação de TRIPs no Congresso Nacional, que a ausência de exploração de patentes constitui abuso do titular, e este seria o entendimento do parágrafo 1º do Artigo 68 da LPI. O entendimento é de que TRIPs no artigo 2.1 se remete ao texto da CUP Revisão de Estocolomo que em seu artigo 5 parágrafo 2º afirma que “cada país da União terá a faculdade de adotar medidas legislativas prevendo a concessão de licenças obrigatórias para prevenir os abusos que poderiam resultar do exercício do direito exclusivo conferido pela patente, como, por exemplo, a falta de exploração”. Segundo Cícero Gontijo “Está claro que sem a possibilidade de exigência de exploração local, o sistema de patentes não interessa aos países em desenvolvimento. Está claro que, sem flexibilidade, o sistema atua em prejuízo dos países em desenvolvimento. Conceder monopólio por vinte anos sem qualquer contraprestação, apenas para atender o princípio de recompensar os inventores e estimular a promoção da atividade inventiva não é razoável. Conceder reserva de mercado para produtos que só vêm para o país por meio de importações, sem nenhum benefício específico, atenta contra a razoabilidade.”[13]

Bodenhausen destaca que o Artigo 5A4 da CUP prevê que: “a licença será recusada se o titular da patente justificar a sua inação por razões legítimas”. Para Bodenhausen “estas escusas podem se basear na existência de obstáculos legais, econômicos ou técnicos que entorpeçam a exploração ou uma exploração mais intensa da patente no país. As autoridades competentes do país deverão tratar desta questão”. Bodenhausen destaca também que os países tem autonomia para definir o que seja “falta de exploração” e que normalmente a importação de produto patenteado não é considerado como exploração da patente, no entanto, os países poderão definir que a exploração ocorra em um território maior englobando mais de um país, tais como acordos mantidos entre Alemanha e Suíça.

De toda a forma o parágrafo 2º do Artigo 5º da CUP se refere a prevenir abusos que possam resultar do exercício dos direitos exclusivos conferidos pelas patentes: “Os Estados membros tem assim liberdade para estabelecer medidas análogas ou diferentes, por exemplo, licenças obrigatórias em condições distintas das indicadas no parágrafo 4, entre outros casos naqueles em que o interesse público pareça requerer essa medida. Podem apresentar-se casos deste tipo quando as patentes se refiram a interesses vitais ao país em matéria de segurança militar, ou de saúde pública ou quando se trata das chamadas patentes dependentes”[14].

Segundo os integrantes do escritório Dannemann, Siemsen, Bigler & Ipanema Moreira a aplicação do § 1o do artigo 68 está condicionada ao atendimento do caput do artigo 68 e, portanto, a falta de fabricação local apenas enseja licença compulsória se comprovado o abuso[15]. Otto Licks e Marcos Levy[16] baseando-se em fundamentação de Friedrich Karl Beier do Instituto Max Plank defendem a tese de que em uma era de crescente globalização a exigência de fabricação local como uso efetivo de uma patente não faz sentido, salvo de o titular atuar de forma não razoável e abusiva. Os autores concluem: “Resta claro que não existe relação de subordinação entre as duas possibilidades de concessão de licença compulsória listadas no caput do artigo 68 (exercício abusivo dos direitos e abuso de poder econômico) e as demais previstas no parágrafo 1o do mesmo artigo, como a licença compulsória por falta de fabricação completa do objeto de uma patente”, ou seja, somente se configurado o abuso de poder econômico, justifica-se uma licença compulsória por falta de exploração local. Gabriel Leonardos observa que existe a possibilidade de uma patente que explore apenas uma reivindicação de um total de dez reivindicações ser alvo de licenciamento compulsório por não configurar exploração integral da patente e o licenciado vir a explorar comercialmente exatamente aquela mesma reivindicação original somente.[17]

Herbert Hovenkamp entende que uma empresa deve ser livre em utilizar ou não suas patentes, no entanto, uma alternativa para desestimular a não exploração seria que no caso de uma patente não explorada por cinco anos, o titular já não disporia do direito de excluir terceiros (injunção) mas estaria limitado apenas a indenizações pela exploração indevida. [18]

Um representante de um grupo de países em desenvolvimento durante as negociações da Rodada do Uruguai em 1990 reafirmou “o Artigo 30 sobre as condições e obrigações dos titulares de patentes, deve em conformidade com o texto, claramente especificar que a exploração local da invenção patenteada no país de concessão é uma das obrigações do titular. Tal exploração era um elemento essencial sobre o qual o sistema de patentes era baseado, e constituía parte do equilíbrio de interesses dos titulares de patentes e os do país que concede tais patentes”. Segundo Daniel Gervais a contrapartida para concessão de patentes é a revelação da tecnologia patenteada em detalhes técnicos suficientes para que um técnico no assunto possa implementar a invenção. Uma obrigação ao titular para que este produza localmente a patente constituiria uma condição adicional e portanto desequilibraria a balança contra os interesses dos titulares.[19]



[1] MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1956. Tomo XVI, p. 361 apud GNOCCHI, Alexandre. Propriedade Industrial: licenças & roialtes no Brasil, São Paulo: Rev. dos Tribunais, 1960, p. 32.

[2]  LOUREIRO, Luiz Guilherme de. A Lei de propriedade industrial comentada, 1999, São Paulo: Lejus, p. 154.

[3] Pedro da Paranaguá Moniz, Patenteabilidade de métodos de fazer negócio implementados por software da perspectiva externa ao ordenamento jurídico pátrio, in. Aspectos polêmicos da propriedade intelectual, Rio de Janeiro:Lumen Juris Juris

[4] A indução e a analogia no campo do direito, Vânia Aieta e cols. Rio de Janeiro:Lumen Juris Juris, p.57

[5] Vânia Aieta e cols., op.cit., p.43

[6]  FURTADO, Lucas Rocha, Sistema de Propriedade Industrial no Direito brasileiro, Brasília: Ed. Brasília Jurídica, 1996. p. 67.

[7]  BARBOSA, Denis. Uma Introdução à propriedade intelectual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 520.

[8]  BARBOSA, Denis. op. cit., p. 525.

[9]  BARBOSA, Denis. op. cit., p. 500.

[10]  BARBOSA, Denis. op. cit., p. 537.

[11]  BARBOSA, Denis. op. cit. p. 261.

[12]  BARBOSA, Denis. Usucapião de patentes e outros estudos de propriedade industrial . Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.p. 350.

[13] GONTIJO, Cícero. As transformações do sistema de patentes: da Convenção de Paris ao Acordo de Trips, a posição brasileira, Fundação Heinrich Boll, 2007, p. 47 http: //www.fdcl-berlin.de/fileadmin/fdcl/Publikationen/C_cero-FDCL.pdf.

[14] BODENHAUSEN. Guia para La aplicacion Del Convenio de Paris para La proteccion de La propriedad Industrial, revisado em Estocolmo em 1967. BIRPI: Genebra, 1969. p. 77.

[15] DANNEMANN, SIEMSEN, BIGLER & IPANEMA MOREIRA, Comentários à Lei de Propriedade Industrial e correlatos, Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 156.

[16] LICKS, Otto; LEVY, Marcos. O requisito de fabricação completa do objeto de uma patente no território nacional. Interfarma, 2003.

[17] MORRIS, Julian, Ideal Matter: a globalização e o debate sobre a propriedade intelectual. Rio de Janeiro:instituto Liberal, 2003 p.104

[18] HOVENKAMP, Herbert. Antitrust enterprise: principle and execution, Cambridge:Harvard University Press, 2005, p.3494/4769

[19]  GERVAIS.op. cit. p. 66.


 

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