segunda-feira, 20 de junho de 2022

Abuso do poder econômico e as licenças compulsórias

 

No Brasil a Secretaria de Direito Econômico e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), que é vinculado ao Ministério da Justiça, são órgãos que tem como objetivo a prevenção e a repressão às infrações contra ordem econômica, garantindo a concorrência. A chamada Lei de Repressão ao Abuso do Poder Dominante, Lei nº 8884 de 11 de junho de 1994 dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica.[1] A Lei estabelece entre as penas que poderão ser impostas, isolada ou cumulativamente, a aplicação de licença compulsória de patentes de titularidade do infrator.

Segundo Lucas Rocha Furtado:[2] “não será o INPI que irá comprovar eventual prática abusiva relacionada ao objeto da patente; caso alguém manifeste interesse em obter licença compulsória com fundamento em abuso de poder econômico cometido pelo titular da patente, já deverá estar munido da necessária decisão administrativa prolatada pelo CADE ou de sentença judicial, condenando o titular da patente”.

A Constituição do Brasil é muito clara ao definir a livre concorrência como um meio, um instrumento voltado ao alcance de um bem maior, o de “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”. Assim dispõe o seu Artigo 170: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: ( [...] ) IV – livre concorrência;”. Segundo o Art 173 § 4º da Constituição Federal “A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”.

Buscando a implementação desses preceitos constitucionais, o Artigo 1º da Lei nº 8884, de 11 de junho de 1994, “dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico”. A Lei nº 12.529/2011 (Nova Lei Antitruste) no Artigo 36 § 3º estabelece “As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem hipótese prevista no caput deste artigo e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica: XIX - exercer ou explorar abusivamente direitos de propriedade industrial, intelectual, tecnologia ou marca”. Esta previsão consta do Artigo 40(1) da TRIPS: “Os Membros concordam que algumas práticas ou condições de licenciamento relativas a direitos de propriedade intelectual que restringem a concorrência podem afetar adversamente o comércio e impedir a transferência e disseminação de tecnologia”.

Da mesma forma, a Lei nº 9021, de 30 de março de 1995, em seu artigo 10, regula a matéria, assim dispondo: “Art. 10. A Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda – SEAE, quando verificar a existência de indícios da ocorrência de infração prevista nos incisos III ou IV do art. 20 da Lei nº 8.884, de 1994, mediante aumento injustificado de preços ou imposição de preços excessivos, convocará os responsáveis para, no prazo máximo de dez dias úteis, justificarem a respectiva conduta. Parágrafo único. Não justificado o aumento, ou preço cobrado, presumir-se-á abusiva a conduta, devendo a SEAE representar fundamentadamente à Secretaria de Direito Econômico – SDE, do Ministério da Justiça, que determinará a instauração de processo administrativo.

Para que o exercício dos direitos de patentes violem os termos da legislação antitruste é necessário em primeiro lugar que se comprove o poder de mercado da empresa, o que não necessariamente acontece pelo fato da empresa ser titular de uma patente. O artigo 36 § 1º da lei antitruste nº 12.529/2011 estabelece que a conquista de mercado resultante de processo natural fundado na maior eficiência de agente econômico em relação a seus competidores não caracteriza o ilícito de infração contra ordem econômica.

Segundo Denis Barbosa[3] cabe ao SDE e ao CADE (e secundariamente ao Judiciário) não ao INPI, a determinação do abuso de poder econômico. No mesmo entendimento Caros Carvalho argumenta que as provisões dos artigos 36 incisos XIV e XIX e artigo 38 da Lei nº 12.529/2011 tratam das “decisões administrativas” a que se refere o artigo 68 da LPI. Neste sentido os usos abusivos da propriedade intelectual que prejudicam as estruturas de mercado caberia ao CADE a aplicação de licenças compulsórias.[4] Nessa mesma linha, a Lei nº 9.782, de 26 de janeiro de 1999, em seu artigo 7º, inciso XXV, atribuiu à Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA competência para monitorar a evolução dos preços de medicamentos, equipamentos, componentes, insumos e serviços de saúde.

Por fim, ao Plenário do CADE, nos termos do artigo 7º, da Lei nº 8884 de 11 de junho de 1994, cabe, dentre outras atribuições, decidir sobre a existência de infração à ordem econômica e aplicar as penalidades cabíveis; decidir sobre os processos instaurados pela SDE; decidir sobre os recursos de ofício do Secretário da SDE, assim como apreciar em grau de recurso as medidas preventivas adotadas pela SDE ou pelo Conselheiro-Relator do CADE[5]

Alguns autores propõe uma ação mais integrada entre CADE e INPI. Segundo o professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e ex-presidente do CADE, Gesner Oliveira[6] o INPI deveria fazer análises sobre o impacto da proteção de patentes nas fusões e aquisições antes desses negócios serem submetidos ao CADE para julgamento. E o CADE poderia ser convocado para julgar problemas de competição criados pela proteção às patentes concedidas pelo INPI.

Nos casos de licença compulsória, portanto, a forma abusiva dos direitos da patente deve já ter sido reconhecida anteriormente ao requerimento de licença compulsória, em decisão administrativa do CADE ou em decisão judicial.[7]Segundo Denis Barbosa, nos casos de licença compulsória por abuso de poder econômico pelo titular da patente não é necessário que o abuso de poder econômico de que trata o artigo 68 da LPI tenha sido reconhecido anteriormente em decisão administrativa pelo CADE.[8] Pelo artigo 73 parágrafo 7o da LPI “Instruído o processo, o INPI decidirá sobre a concessão e condições da licença compulsória”.

Gama Cerqueira ao criticar o Código de 1945 dizia: “não nos parece também adequado o processo administrativo estabelecido pelo Código para a concessão da licença, porque não podemos conceber que o direito do inventor, assegurado pela patente, possa ser objeto de simples decisão administrativa, tomada em processo destituído das necessárias garantias. Só ao Poder Judiciário compete decidir sobre direitos privados patrimoniais, como são os decorrentes do privilégio”.[9]



[1] http: //www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L8884.htm.

[2] FURTADO, Lucas Rocha, Sistema de Propriedade Industrial no Direito brasileiro, Brasília: Ed. Brasília Jurídica, 1996. p. 67.

[3] BARBOSA, Denis. Uma Introdução à propriedade intelectual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 515.

[4] CARVALHO, Carlos Eduardo Neves. Uma breve análise sobre a interface entre a propriedade intelectul e direito da concorrência. Revista da ABPI maio/junho 2013, n.124, p.43

[5] Brasil. Relatório da CPI-Medicamentos: relatório final da comissão parlamentar de inquérito destinada a investigar os reajustes de preços e a falsificação dos medicamentos, materiais hospitalares e insumos de laboratórios. Brasília: Câmara dos Deputados; 2000 http: //www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=38164.

[6] BRASILE, Juliano. Estudo sugere trabalho conjunto entre INPI e Cade para estimular a inovação, Valor Econômico 03/11/2006.

[7] DANNEMANN, SIEMSEN, BIGLER & IPANEMA MOREIRA, Comentários à Lei de Propriedade Industrial e correlatos. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 155.

[8] BARBOSA, Denis. Uma Introdução à propriedade intelectual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 504.

[9]  DOMINGUES, Douglas Gabriel. Direito Industrial – patentes, Rio de Janeiro: Forense, 1980. p. 256.

 

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