sábado, 11 de junho de 2022

Fiocruz e a importância das patentes para sua existência

 

Em 1906, Alcides Godoy (figura), cientista do Instituto Oswaldo Cruz, descobriu a primeira vacina veterinária do país para profilaxia de doenças infecto-contagiosas: a vacina contra o carbúnculo sintomático, mais conhecido como Peste da Manqueira. Em 1918 em conjunto com outro pesquisador da Fiocruz, Astrogildo Machado, Godoy descobriu a vacina anticarbunculosa, contra o carbúnculo hemático, também conhecida como carbúnculo verdadeiro (ou antraz). Tem havido confusão entre o Carbunculo Sintomático (Manqueira, Mal do Ano) e o Carbuculo Hemático ou verdadeiro (Carbunculo, Antraz). A primeira vacina foi a "Vacina contra a Manqueira" ou seja contra o Carbunculo Sintomático. A Vacina contra o Antraz,"Vacina Anticarbunculo, Manguinhos", foi desenvolvida cerca de 10 anos depois por Alcides Godoy e Astrogildo Machado que então trabalhava no Laboratório de Godoy no Instituto Oswaldo Cruz. As duas vacinas foram patenteadas a primeira por A.Godoy em 1908 (patente no 5566) e a segunda por A.Godoy e A.Machado em 1918 registro no 9981.

O desenvolvimento desta vacina da peste manqueira partiu de uma solicitação dos pecuaristas de Minas Gerais, onde a peste da manqueira dizimava aproximadamente 40%, às vezes até 80% dos bezerros. A epizootia era muito comum também em outros estados do Brasil e em vários países da América do Sul. Em Minas ela já fora estudada por J. Batista de Lacerda, que chegou a preparar uma vacina contra a doença, com resultados insatisfatórios. Oswaldo Cruz, que qualificou estes estudos como pouco sérios do ponto de vista bacteriológico, entregou a incumbência primeiro a Ezequiel Dias e Rocha Lima, depois a Alcides Godoy. A novidade do processo de Godoy residia na utilização de um meio de cultura especial para bactérias anaeróbicas, na qual a glicose tinha um papel preponderante. Com esse meio de cultura, obteve uma raça diferenciada de bactérias de virulência atenuada, o que permitiu o uso da vacina com o germe vivo (Clastridium Chauvei). Basta uma injeção de dois centímetros cúbicos para imunizar o animal durante toda a vida. Geralmente aplica-se a vacina em bezerros, nos primeiros anos, pois o animal que atinge à idade adulta, num meio infectado, está naturalmente imunizado. Logo que foram confirmadas as propriedades vacinantes das culturas de Godoy, ele partiu para Juiz de Fora, com Rocha Lima e Carlos Chagas, para executar as experiências finais, e só então a vacina começou a ser fabricada em escala comercial.

Após a descoberta das vacinas em 1906 e os registros das respectivas patentes em nome dos cientistas fundadores de Manguinhos, elas passaram a ser fabricadas no Instituto Oswaldo Cruz - Manguinhos, atual Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e exploradas comercialmente pelos próprios cientistas Alcides Godoy. A carta patente nº 5.566 foi obtida em 24 de novembro de 1908 em nome de Alcides Godoy, publicada no Diário Oficial de 6 de dezembro daquele ano. A vacina contra a manqueira começou a ser distribuída e vendida já em 1906. Ela imunizava o gado com uma só aplicação. Na exposição de demografia e higiene realizada de Berlim, em junho de 1907, na qual o Instituto obteve a medalha de ouro, a vacina da manqueira foi um dos destaques selecionados, dentre os produtos fabricados para representar as atividades do IOC. A premiação em Berlim foi determinante para que o Ministério da Justiça e Negócios Interiores aprovasse um novo regulamento, proposto por Oswaldo Cruz, visando expandir de modo expressivo as atribuições do Instituto, que passaria a gozar de considerável autonomia administrativa e financeira, sendo esta última garantida, principalmente, pela renda advinda da venda da vacina na manqueira. Tais recursos, que permitiam ao Instituto não depender apenas do orçamento governamental, foram fundamentais para contratar novos pesquisadores e, assim, ampliar o quadro de pessoal da instituição. O próprio Oswaldo Cruz, em função da repercussão e da originalidade do processo desenvolvido por Godoy, aconselhou-o a patentear em seu nome a invenção.

Depois de registrar a patente da vacina, em 24 de novembro de 1908, (Carta patente n 5.566, publicada no Diário Oficial de 6 de dezembro de 1908), Godoy lavrou em cartório uma escritura de cessão, em 11 de dezembro de 1908, transferindo sua invenção para o Instituto Oswaldo Cruz, na condição de reverter em favor de suas atividades científicas a exploração industrial do produto, sob pena de ficar sem efeito a concessão. Por entendimento verbal entre Oswaldo Cruz e Godoy, ficou estabelecido que o descobridor teria direito a 5% da renda bruta da vacina até 1917, e daí em diante, 8%. Esse artifício hábil consolidou a autonomia de Manguinhos, permitindo-lhe gerir esses recursos, que seriam consideráveis, sem ter de se submeter à burocracia do Ministério da Justiça ou às rígidas determinações que presidiam a aplicação das verbas votadas pelo Congresso. Por outro lado, o estratagema criava, jurisprudência para um tipo de relação privativista entre a instituição e seus pesquisadores, estimulados a inventar e patentear outros produtos biológicos. Segundo depoimento de Arthur Neiva: “dos milhares e milhares de contos de réis que as vacinas preparadas em Manguinhos renderam os descobridores preservaram para si módica percentagem, abrindo mão da quase totalidade em favor de Manguinhos”.[1]

Carlos Chagas retrucava aos críticos que consideravam imoral facultar a seus técnicos o direto de solicitar patentes e auferir parte da renda gerada: “A descoberta de produtos novos representa a resultante do esforço ou da capacidade profissional e merece ser recompensada. Alegam os contraditores dessa prática que os tais descobrimentos são realizados com material do estado, e que os descobridores são pagos para realizar descobertas. À primeira objeção cabe a resposta de que não é o microscópio e nem o tubo de cultura que fazem as descobertas E quanto á outra alegação, eu devo afirmar que entre as atribuições dos funcionários deste Instituto não figura a obrigação de fazer descobertas. Seja como for, o certo é que devemos a tais normas uma grande parte do desenvolvimento científico do Instituto”.[2] Entre estes críticos se encontrava o próprio Arthur Neiva que alegava que ´modelo de partição de lucros da patente da manquiera fomentou uma ambição nos demais pesquisadores em detrimento da pesquisa básica: “Esta foi a origem principal da decadência de Manguinhos. Vários técnicos do Instituo atualmente empregam toda sua atividade no preparo de vacinas, soros, produtos quimioterápiocos, que, revestidos no nome prestigioso do Instituto onde foram preparados, possam dar uma fonte de renda avultada a seus manipuladores. Todo o ideal de pesquisa científica desinteressada já despareceu quase que pela totalidade dos assistentes, e os que não se sentem com pertinácia para preparar soros e vacinas procuram fundar na cidade laboratórios de pesquisas onde possam encontrar uma condição material melhor do que a que lhes é oferecida pelos pequenos honorários que recebem”.[3]

A experiência da vacina da peste manqueira que garantiu a autonomia financeira de Manguinhos por três décadas foi pontuada por conflitos políticos e gerenciais. Nara Britto, a partir de depoimento oral de Lobato Paraense, esclarece que as discussões em torno desta vacina originaram divergências, gerando três posições sobre a aplicação dos lucros auferidos com a comercialização do produto. Oswaldo Cruz decidiu destinar os royalties da vacina aos inventores. Uma vertente apoiou a medida tomada por Oswaldo Cruz. Outro grupo pensava em aplicar as verbas em compra de materiais laboratoriais. Um terceiro grupo defendeu a distribuição eqüitativa dos lucros entre os pesquisadores, como forma de acréscimo salarial. Questionou-se também a “legitimidade de propriedade de um produto desenvolvido numa instituição pública”. Em relatório do Instituto Oswaldo Cruz, de 14 de fevereiro de 1912, Oswaldo Cruz tece comentários generosos em relação à atitude de desprendimento de Godoy, posto que este havia cedido a titularidade da vacina ao Instituto. Godoy condicionou a cessão à aplicação das verbas em atividades de aquisição de livros e de publicação da revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, conforme Relatório do Instituto Oswaldo Cruz, de 1911. Entendimento verbal entre Oswaldo Cruz e Alcides Godoy possibilitou o remanejamento, em favor do inventor, de 5% da renda bruta da vacina até 1917, e daí em diante, 8% (Benchimol, 1990). Para Henrique Cukierman: “o hábil artifício da cessão da patente permitiu consiolidar a autonomia de Manguinhos, assegurando-lhe recursos consideráveis e absolutamente estratégicos, uma vez que estavam  colocados fora do alcance da inconstância da burocracia pública e das rígidas determinação que acompanhavam as aplicações de verbas orçamentárias aprovadas pelo Congresso”.[4]

Segundo Simon Schwartzman: "Os recursos para financiar boa parte dessas pesquisas vinham não do custeio do Instituto pelo governo federal, mas do que ficou conhecido como a “verba da manqueira”. A famosa verba da manqueira, contabilizada à parte, teve importância vital na sustentação do Instituto Oswaldo Cruz, sobretudo nas conjunturas recessivas do país, com ela foram pagos os salários de muitos pesquisadores e funcionários, parte das despesas com as novas construções, a impressão das Memórias e uma infinidade de outros itens. Devido à importância dessa fonte de recursos, o Instituto empenhou-se a fundo em disseminar o uso da vacina nas zonas pastoris do Brasil. Grande parte dos fornecimentos fazia-se por intermédio do Ministério da Agricultura e outros órgãos públicos estaduais ou municipais. Basta salientar, que, entre outras rendas arrecadadas pelo Instituto, predominava a da manqueira, pela qual foi custeada a maioria das despesas do pessoal contratado e de material até 1930, além da despesa total do Instituto nos anos de 1931 e 1932, na importância média de Cr$ 880 mil anuais, em virtude de ter havido corte orçamentário nos ditos anos. Tendo o governo concedido apenas Cr$ 30 mil para material em 1933 e Cr$ 30 mil para 1934, foi a citada renda um fator preponderante para a manutenção dos encargos do Instituto.

A vacina contra a peste manqueira, que atingia o gado, foi o segundo produto que obteve no Brasil a renovação da Patente, fato só obtido anteriormente pelo Formicida Matarazzo. A patente da vacina manqueira foi prorrogada pelo Decreto nº 16.200 de 31 de outubro de 1923 que prorrogou por 15 anos o prazo do privilégio de que trata a Carta de Patente de invenção, nº 5.566 de 24 de novembro 1908, que em seu artigo primeiro estabelece: “Fica prorrogado por 15 anos o prazo do privilégio a que se refere a Carta Patente n. 5.566, de 24 de novembro de 1908, concedida ao Dr. Alcides Godoy e transferida ao Instituto de Patologia Experimental de Manguinhos (Instituto Oswaldo Cruz), em 24 de março de 1909, para invenção de uma nova vacina contra o carbúnculo sintomático (peste da manqueira)”.

Em 1937, como conseqüência da reforma implementada por Gustavo Capanema no Ministério da Educação e Saúde (criado em 1930, no âmbito da Revolução de 1930), foi vedada ao IOC a fabricação e comercialização desse e outros produtos veterinários. Segundo Henrique Cukierman: “A festa da autonomia de Manguinhos terminaria em 13 de dezembro de 1937 quando foi aprovada a incorporação de sua renda à receita geral da União, passando todos os seus serviços a serem custeados por dotações do orçamento ministerial”.[5] Em 26 de junho de 1938, Alcides Godoy e Astrogildo Machado pediram o registro da marca genérica para produtos veterinários Manguinhos e fundaram em 25 de janeiro de 1939, a empresa Produtos Veterinários Manguinhos Ltda, para fabricar e comercializar a vacina da manqueira, do carbúnculo hemático, e posteriormente a vacina contra a pneumoenterite dos porcos, continuando a trabalhar no IOC até falecerem, respectivamente em 1950 e 1945. O  laboratório foi montado em prédio nos fundos do Hospital Gaffrée Guinle.



[1] BENCHIMOL, Jaime; TEIXEIRA, Luiz Antonio. Cobras, lagartos & outros bichos, UFRJ, 1993, p.209

[2] BENCHIMOL, Jaime; TEIXEIRA, Luiz Antonio. Cobras, lagartos & outros bichos, UFRJ, 1993, p.189; CUKIERMAN, Henrique. Yes, nós temos Pasteur. Rio de Janeiro: Faperj,2007, p. 339

[3] BENCHIMOL, Jaime; TEIXEIRA, Luiz Antonio. Cobras, lagartos & outros bichos, UFRJ, 1993, p.145

[4] CUKIERMAN, Henrique. Yes, nós temos Pasteur. Rio de Janeiro: Faperj,2007, p. 338

[5] CUKIERMAN, Henrique. Yes, nós temos Pasteur. Rio de Janeiro: Faperj,2007, p. 341




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