sexta-feira, 17 de junho de 2016

CADE e o uso abusivo da propriedade industrial

CADE Processo Administrativo Nº 08012.002673/2007-51
Representante: Associação Nacional dos Fabricantes de Autopeças – Anfape  
Representadas: Volkswagen,  Fiat e Ford
Diário Oficial da União 16 de junho de 2016

327.  Com efeito, o art. 5°, inciso XXIX da Constituição Federal estabelece: “a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País”. (grifo nosso)

328.  Portanto,  segundo  a  Constituição  brasileira,  um  título  de  propriedade intelectual apenas pode assegurar privilégio temporário se sua imposição não for contrária aos objetivos claramente estabelecidos pela mesma.

331.  Portanto, não há como pensar um título de propriedade intelectual apenas sob  o  aspecto  formal,  descontextualizando  qual  será  o  impacto  econômico  de  sua imposição no âmbito social. No presente caso, o impacto social da imposição do título faz parte  do  próprio  título.  Se  os  desenhos  industriais  forem  aplicados  de  forma  irrestrita  aos FIAPs, da forma e na extensão pretendida pelas Representadas, como se verá adiante, ter-se-á um resultado social extremamente negativo por diversos motivos. 

341.  A  propriedade  intelectual,  sob  a  perspectiva  econômica,  tem  como  objetivo aumentar  o  progresso  técnico  para  beneficiar  a  sociedade  e  beneficiar  consumidores  que ganham com o lançamento de novos produtos, processos de produção mais eficientes e maior diferenciação de produtos.  Desse modo, aos inventores é dada a oportunidade de gozar de exclusividade  de  venda  do  seu  invento  por  determinado  período.  Isso  não  significa  que  o inventor  será  necessariamente  um  monopolista. 

342.  Portanto,  o  domínio  público  é,  a  princípio,  o  pagamento  que  a  sociedade recebe  em  troca  da  exclusividade  outorgada  ao  invento  em  seu  título  de  propriedade intelectual.

357.  Ou  seja,  não  se  está  sendo  contra  a  possibilidade  de  uma  empresa  registrar, como  título  de  propriedade,  inovações  marginais.  Pelo  contrário,  em  situações  e  mercados normais, tal fato, por si só, é inofensivo e até mesmo benéfico. Ocorre que, no âmbito dos desenhos industriais aplicados aos FIAPs, em um mercado que possui inovações marginais conjugadas  com  um  pagamento  de  domínio  público  inútil,  tais  modificações  marginais assumem  a  característica  de  defesa  de  monopólios  perpétuos  sob  o  desenho  industrial  no aftermarket.

358.  Assim,  tem-se  que  inovações  marginais  contínuas  conjugadas  com  domínio público  inútil  acabam  por  criar  uma  barreira  intransponível  de  poder  de  mercado.  Tem-se, assim, uma verdadeira estratégia de evergreening, ou seja, modificações marginais contínuas dos registros de desenho industrial com o objetivo e com o escopo específico para proteção indevida de poder de mercado, sem possibilidade de que os donos de automóveis possam se beneficiar,  na  prática,  das  benesses  do  domínio  público,  em  virtude  da  elevada  taxa  de depreciação deste tipo de bem e da existência de gaps intergeracionais entre automóveis.

362.  Por  outro  lado,  pela  lei  brasileira,  um  registro  de  DI  sequer  precisa  ter  seu mérito analisado pelo INPI para ter validade e ser utilizado no Judiciário. 

367.  O  quadro  acima  demonstra  que  há  grande  probabilidade  dos  registros  de desenho  industrial  depositados  no  Brasil  possuírem  baixa  qualidade.  Mesmo  assim,  a quantidade de registros que passam pela análise do INPI é mínima – dos quase 200 ou 300 registros da VW. 

373.  A  análise  precária  do  registro  pode  repercutir  sobre  direitos  legítimos  de terceiros.    Isso  ocorre  quando  as  montadoras  ingressam  com  cautelares  contra  fabricantes independentes de peças requerendo a busca e apreensão de todas as peças que tenham registro de desenho industrial. Dessa forma, pode ocorrer do juiz conceder a cautelar, inaudita altera parte,  e  posteriormente,  com  a  devida  analise  de  mérito  do  INPI,  ser  descoberto  que determinada peça não cumpre os requisitos de originalidade e novidade. A consequência disso é o possível tolhimento de direito legítimo de terceiro para a produção e comercialização de peças  que  não  atendam  aos  requisitos  de  novidade  e  originalidade  e,  portanto,  não  sejam passíveis de proteção por meio de desenho industrial.

446.  A mera obtenção do registro de desenho industrial pelas Representadas, ainda que  obtido  sem  fraude  e  dentro  do  procedimento  estabelecido  pela  Lei  de  Propriedade Industrial,  mesmo  com  o  aval  do  Instituto  Nacional  de  Propriedade  Industrial  (INPI),  não afasta a possibilidade de que esse direito seja exercido de modo abusivo e, portanto, ilícito.

566.  Acentua-se  que  a  mera  vigência  dos  registros  de  desenho  industrial  em questão, exercidos diante de outras montadoras no mercado primário de venda de veículos, parece ser suficiente para garantir a recuperação dos custos de P&D  e conferir margens de lucro às montadoras, não sendo esse, especificamente, um argumento que sirva para justificar a imposição dos registros também diante dos FIAPs, no mercado secundário de reposição -aftermarket. 

600. Não é objeto do presente caso questionar a validade da  obtenção  do  registro  dos  desenhos  industriais  junto  ao  INPI.  Ao contrário,  por  ausência  de  evidências  em  contrário,  a  presente  análise presumiu que a obtenção dos registros ocorreu conforme os procedimentos específicos previstos na Lei de Propriedade Industrial, como atestou o INPI (essa  competência  do  INPI  será  abordada  na  próxima  seção),  de  forma regular. Mais até do que isso, ante à ausência de evidências ou argumentos em sentido contrário, a presente análise presumiu a legítima detenção do
direito  de  propriedade  industrial  das  Representadas,  e  o  seu  legítimo exercício diante de outras montadoras no mercado fim desse direito – o de venda  de  veículos.  Em  suma,  não  está  se  questionando  a  validade  do registro, a detenção do direito, nem tampouco se aventando a sua nulidade ou expropriação. 

O que o presente processo aventa, sim, é que, a partir do momento em que esse direito legítimo e validamente obtido passa a ser exercido diante dos FIAPs, sendo imposto no mercado de reposição, ele, por tudo quanto aqui exposto, passa a extrapolar os fins sócio-econômicos pré-estabelecidos pela
própria norma que o institui e, por isso, passa a ser exercido abusiva e, portanto, ilicitamente.

603.  Sabe-se  que  o  fim  precípuo  da  Lei  de  Propriedade  Industrial  é  incentivar  à inovação  e,  consequentemente,  o  desenvolvimento  socioeconômico  do  País.  Entretanto,  no caso  concreto,  diferentemente  do  alegado  pelas  Representadas,  demonstrou-se  nesta  Nota Técnica que, de forma alguma, afastar a imposição dos desenhos industriais das montadoras face  aos  FIAPs  prejudicaria  esse  incentivo,  haja  vista  que  as  montadoras  continuariam exercendo tal direito de forma legítima no foremarket, perdurando, portanto, o estímulo legal à inovação. 

607.  Observa-se  que  a  providência  necessária  para  eliminar  os  efeitos  nocivos  à ordem  econômica  é,  além  de  aplicar  eventual  multa  cabível,  determinar  às  montadoras Representadas a não imposição dos desenhos industriais em questão em face dos fabricantes independentes de autopeças (FIAPs), nos termos dos artigos 37 e 38, inciso VII, da Lei n° 12.529/11,  eliminando, assim,  os efeitos nocivos à ordem  econômica derivados da conduta anticompetitiva por elas perpetrada. 

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