segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Escravidão e Inovação

        Caio Prado Júnior adverte que os atos oficiais expedidos pela Coroa Portuguesa constituem apenas um dos aspectos, e dos menos profundos, que marcaram uma política de desincentivo à industrialização no país. O regime econômico baseado no latifúndio e na exploração da mão de obra escrava e em recursos naturais abundantes com vistas à exportação para metrópole constituem fatores muito mais importantes, uma vez que não demandam inovações tecnológicas.[1] Nas palavras de Fernando de Azevedo: “a escravatura desonrou o trabalho nas suas formas rudes. Enobreceu o ócio e estimulou o parasitismo, contribuiu para acentuar entre nós a repulsa pelas atividades manuais e mecânicas, e fazer-nos considerar como profissões vis as artes e os ofícios. Segundo a opinião corrente, trabalhar, submeter-se a uma regra qualquer, era coisa de escravo”[2].

Nos Estados Unidos Charles Dew mostra que o sul escravocrata, embora com seu entusiasmo pela manufatura manteve-se atrasado em relação ao norte do país até a Guerra de Secessão em 1867: “ao contrário dos artesãos livres do Norte, os escravos do sul tinham poucas oportunidades para viajar, visitar outros estabelecimentos industriais, aprender novas técnicas, testemunhar avanços tecnológicos e adquirir conhecimento científico”.  Sem a necessária mobilidade e trabalho a economia escravocrata do sul tinha poucos incentivos para inovar.[3]

Luis Antônio Cunha ao analisar a origem do ensino de ofícios artesanais e manufatureiros no Brasil mostra que a escravidão determinou o desprezo pelos “ofícios mecânicos” considerados “coisa de escravo” no Brasil Colônia e Império. Com isso a aprendizagem de ofícios acabou sendo imposta a quem não tinha meios de resistir – órfãos, abandonados, miseráveis – atitude que por sua vez reforçou o sentido de desvalor para tais atividades[4]. Entres estas instituições pode-se destacar a Casa Pia de São José na Bahia, Companhia de Aprendizes Menores do Arsenal de Guerra do Rio de Janeiro e Casa de Educandos Artífices do Pará. Celso Sukow em sua história sobre o ensino industrial no Brasil destaca que no Brasil, o ensino de ofícios nasceu dissociado dos processos de educação: “de um lado o encargo dos trabalhos pesados dado inicialmente aos índios e, depois, aos escravos, e de outro, a espécie de educação que os padres da Companhia de Jesus ofereciam aos colonizadores, criaram uma mentalidade que levou à filosofia do desprezo pelo ensino de ofícios. Nossas populações habituaram-se a ver naquele ramo da instrução qualquer coisa de degradante, de humilhante, de desprezível”. Em 1819, o ensino de ofícios passou a ser destinado, também, aos órfãos, aos pobres, aos deserdados da fortuna com a criação do Seminário dos órfãos na cidade de Salvador: “A filosofia que vinha presidindo àquele ramo de instrução voltava-se, assim, também, para outros desgraçados. Já não o encarava mais como aplicável somente aos índios e escravos, destinava-o, também, daí por diante, aos miseráveis, aos infelizes, aos que não tinham arrimo nos pais”.

Não há, portanto, como não reconhecer as marcas na cultura e na sociedade brasileira de um longo período de escravidão. Desta forma, no Brasil escravocrata qualquer tentativa de inovação tecnológica tinha de enfrentar resistências de um sistema hostil a tais inovações. Em 1816 Manuel Jacinto de Sampaio procurava aplicar em sua propriedade na Bahia técnicas modernas para o aumento de produtividade, algumas por ele patenteadas,[5] e era ridicularizado pelos demais engenhos de açúcar recebendo a alcunha de “Engenho da Filosofia”. Nos engenhos de açúcar as primeiras experiências com uso de motores a vapor seriam tentadas em 1810 porém sem sucesso pela falta de técnicos que as soubessem operar.

Segundo Clóvis Rodriguesde modo geral, porém, pode-se afirmar que o uso do vapor não teve entre os proprietários de engenhos brasileiros, acolhida alvissareira. Sente-se que presos à velhas rotinas do passado, os senhores rurais persistiram em mantê-las, talvez por idiossincrasia às inovações do progresso. Por essa razão o emprego industrial do vapor não teve a disseminação que era de esperar, tal como teve na Inglaterra e nos Estados Unidos, e que serviu de fator decisivo ao desenvolvimento tecnológico desses países”. Na produção de algodão, as máquinas de descaroçamento de algodão inventadas por Eli Whitney em 1792 e em pleno uso nos Estados Unidos no início do século XIX eram desconhecidas no Brasil [6] Em torno de 1860 cerca de 70% dos engenhos cubanos usavam máquinas a vapor ao passo que este percentual era de apenas 2% em Pernambuco[7] Leandro Malavota identifica uma pressão pela modernização, contudo sem efeitos notam-se de forma muito gradual: “na cultura açucareira nordestina, por exemplo, um número significativo de senhores de engenho é levado a investir na modernização da produção a partir dos anos setenta, sob o imperativo de fazer frente á queda dos preços internacionais e à superioridade da concorrência estrangeira (principalmente cubana) [...] Enfim é possível afirmar que a tecnologia ganha espaço e importância dentro de diferentes espaços que compunham o cenário econômico nacional na segunda metade do Oitocentos, da mesma forma como em outras partes do mundo. Reiteramos, contudo, o caráter gradual dessa valorização, cuja maturação é lenta e somente se consuma no último quartel do século”.[8]

Clóvis Rodrigues aponta que neste cenário adverso ainda que surgissem algumas inovações, estas algumas vezes acabariam exploradas no estrangeiro. O autor cita a invenção dos engenheiros ingleses de origem francesa Alfredo e Eduardo Mornay, radicados em Pernambuco, construtores de uma moenda para engenhos de açúcar a qual José Maria da Silva Paranhos nas suas “Cartas ao Amigo Ausente” de 1836 esclarece ter sido concedida patente aos citados inventores. A moenda a vapor foi instalada no engenho Caraúna em Joboatão e fabricada pela Fundição Aurora dos ingleses Harrington&Star do Recife [9] O invento foi utilizado em moenda em Liverpool, Inglaterra utilizando cana da ilha da Madeira, o que atraiu o interesse de ricos proprietários de engenhos nas Antilhas a se associarem aos dois inventores [10]

O português Henry Koster que veio ao Brasil em 1809 e se tornou senhor de engenho e plantador de cana-de-açúcar relata em seu livro “Travels in Brazil” o invento do brasileiro Leandro Guimarães que aperfeiçoou um engenho aplicando nas moendas cilindros horizontais ao invés de verticais, como antes se usava e ao mesmo tempo introduziu modificações nas rodas hidráulicas [11] Domingos do Loreto Couto em obra escrita em 1757 relata a invenção do alferes Antonio Carvalho Guimarães para uma máquina de lavrar açúcar utilizada nos engenhos de Pernambuco, para a qual foi apresentado descrição dirigida aos senhores do Senado da Câmara em 1697, e que chegou a ser licenciada para alguns senhores de engenho ao custo de quatrocentos mil réis, ou por meio de uma pensão anual de quatro por cento do rendimento total do engenho [12] Nuno Carvalho aponta este exemplo como um dos precursores no licenciamento de invenções no mundo [13]

Também Visconde de Cairu argumentava que em um país escravocrata os escravos raramente eram inventores e que todos os melhoramentos eram obras de homens livres e caso um escravo propusesse ao senhor uma invenção que facilitasse e agilizasse a produção este seria tachado como preguiçoso e indolente e provavelmente seria castigado pelo senhor [14] Em 1808 o inglês John Luccock ao visitar o Brasil comentou que os brancos se sentiam “fidalgos demais para trabalhar em público”. Meio século depois Thomas Ewbank dizia que “um jovem preferiria morrer de fome a abraçar uma profissão manual”. Segundo ele a escravidão tornara “o trabalho desonroso – resultado superlativamente mau, pois inverte a ordem natural de destrói a harmonia da civilização”.

Pelourinho, Debret




[1] PRADO JÚNIOR, Caio. História Econômica do Brasil, Rio de Janeiro: Brasiliense, 1979, p. 109.
[2] AZEVEDO, Fernando. A transmissão da cultura, Rio de Janeiro: INL, 1976, p. 81.
[3] SMITH, Merritt Roe; MARTELLO, Robert. Taking stock of the industrial revolution in America. In: HORN, Jeff; ROSENBAND, Leonard; SMITH, Merritt Roe. Reconceptualizing the Industrial Revolution, London:MT Press, 2010, p.180
[4] CUNHA, Luis Antonio. O ensino dos ofícios artesanais e manufatureiros no Brasil escravocrata. São Paulo: Unesp, 2005.
[5] MALAVOTA,Leandro Miranda. A construção do sistema de patentes no Brasil: um olhar histórico, Rio de Janeiro:Lumen Juris, 2011, p. 93
[6] MOTOYAMA, Shozo. Prelúdio para uma história: Ciência e Tecnologia no Brasil, São Paulo: Edusp, 2004, p. 143, RODRIGUES, Clóvis. A inventiva brasileira. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1973, p. 183.
[7] FAUSTO, Boris. História do Brasil, São Paulo:Edusp, 1994, p. 239.
[8] MALAVOTA,op.cit.p.190
[9] TELLES, Pedro. História de Engenharia no Brasil. Rio de Janeiro: Clube de Engenharia, 1994, p. 185.
[10] RODRIGUES, Clóvis da Costa. A inventiva brasileira. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1973.p.137.
[11] RODRIGUES.op. cit. p. 141.
[12] FERRAZ, Socorro. Documentos manuscritos avulsos da Capitania de Pernambuco, Volume 1. Arquivo Histórico Ultramarino Lisboa, Portugal, Projeto Resgate de Documentação Histórica “Barão do Rio Branco”. Editora Universitária UFPE, 2006.
[13] CARVALHO, Nuno. A estrutura dos sistemas de patentes e de marcas: passado, presente e futuro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 313.
[14] MARTINS, Mônica de Souza Nunes. Entre a cruz e o capital: mestres, aprendizes e corporações de ofícios no Rio de Janeiro (1808-1824). Tese de Doutorado Curso de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Orientador: Prof° Dr. José Murilo de Carvalho, Rio de Janeiro, 2007, p. 175.
  

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