Segundo Celso Lafer[1]: “O sistema de solução de controvérsias da OMC representa não só codificação, mas um desenvolvimento progressivo do direito e da prática do GATT.” Para Pedro Paranaguá, no âmbito da OMC, o mecanismo de solução de controvérsias é considerado um dos grandes resultados da Rodada do Uruguai, pois representa o “pilar do sistema multilateral de comércio”.[2]
Como os países em desenvolvimento muitas vezes não possuem um mercado significativo para os países ricos, as ameaças de retaliações comerciais por parte destes países como penalização ao descumprimento de algum Acordo de Comércio pode não ser eficaz. E nesse sentido a retaliação cruzada pode ser uma opção de compensação. O Brasil exigiu em março de 2009, US$ 2,5 bilhões aos Estados Unidos em compensação pela perda dos produtores brasileiros por causa dos subsídios ao setor do algodão concedidas por Washington a seus próprios agricultores, consideradas ilegais em várias ocasiões pela OMC[3]. Segundo Joseph Stiglitz os subsídios ao algodão beneficiam 25 mil fazendeiros ricos dos Estados Unidos à custa de mais de 10 milhões de agricultores pobres do mundo em desenvolvimento.[4]
A OMC anunciou (Painel DS267) em setembro de 2009 que o Brasil poderia aplicar sanções contra os Estados Unidos por causa dos subsídios que o governo americano concede a seus produtores de algodão. Os árbitros da disputa avaliam que as retaliações podem alcançar US$ 294,7 milhões, quantia calculada com base nas exportações americanas de 2006. A OMC autorizou o Brasil a aplicar retaliação cruzada, tais como licenciamento compulsório de patentes de empresas norte-americanas, se o valor ultrapassar os US$ 409,7 milhões.[5]
As medidas de retaliação poderiam ter como alvo, por exemplo, a suspensão da aceitação de depósitos de pedidos de patentes ou de modelos de utilidade das empresas e nacionais do país alvo da medida, durante o tempo da não implementação das regras comerciais objeto do litígio, ou ainda da “concessão de licenciamento compulsório de modo, digamos, mais “generoso”, ou seja, menos burocrático”.
A Medida Provisória 482 de 10/02/2010, Seção 1 página 1 e 2, Diário Oficial, 11/02/2009, dispõe sobre medidas de suspensão de concessões ou outras obrigações do País relativas aos direitos de propriedade intelectual e outros nos casos de descumprimento de obrigações do Acordo Constitutivo da OMC. O Senado Federal aprovou em 10/06/2010, o Projeto de Lei de Conversão nº 6, relativo à Medida Provisória nº 482 de 2010.[6]
Entre as medidas de retaliação encontram-se bloqueio temporário de remessas de royalties, majoração dos valores praticados pelos órgãos de registro de direitos de propriedade intelectual, suspensão do direito do titular de impedir a importação do produto protegido, licenças compulsórias, redução do prazo de proteção para pedidos de patente em andamento, entre outras medidas (Artigo 6). A aplicação das medidas previstas nesta Medida Provisória não implica qualquer tipo de remuneração ou compensação relativa ao exercício de direitos por terceiros, ressalvados os casos de licenciamento ou uso público não comercial remunerados sem autorização do titular. A Resolução CAMEX nº 15/2010 estabelece a lista de bens cuja importação dos Estados Unidos pode ser onerada tendo em vista a retaliação do caso algodão.[7] A Resolução CAMEX nº 16/2010 disponibiliza as informações sobre a consulta pública da retaliação aos EUA em serviços e propriedade intelectual.[8]
A retaliação cruzada em propriedade industrial encontra críticas de analistas que entendem que a medida poderia iniciar uma guerra comercial entre os dois países com práticas retaliatórias. Segundo tais críticos, no âmbito das regras da OMC, a adoção de medidas contra retaliatórias não encontra respaldo. Caso eventuais medidas contra retaliatórias sejam adotadas, as mesmas poderiam ser questionadas no âmbito da OMC.
O Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) informou em abril de 2010 que cancelaria todas as garantias de crédito à exportação agrícola que não foram utilizadas pelo programa GSM-102, para reintroduzi-las depois com taxas de juros diferentes, ou seja, menos generosas para os exportadores americanos. A medida atende ao compromisso que Washington assumiu com o Brasil para evitar retaliação de US$ 820 milhões no contencioso do algodão.[9] Em 2012 a percepção brasileira foi a de que os subsídios seguiram acima dos limites tolerados no acordo e não houve progresso em relação à compra de carne suína brasileira pelos Estados Unidos. O único progresso foi o repasse anual pelo Tesouro dos Estados Unidos de US$ 147 milhões para o fundo de desenvolvimento da cotonicultura nacional.[10] O acordo estabeleceu a Corporação de Conservação da Commodity (CCC), órgão sediado nos EUA que deveria realizar pagamentos anuais de US$ 147 milhões ao Instituto Brasileiro do Algodão. Este valor seria repassado aos cotonicultores brasileiros, na forma de um fundo de assistência técnica. Na prática, Washington passaria a subsidiar os agricultores brasileiros, a fim de manter o apoio aos próprios produtores. Os pagamentos seriam feitos até a revisão da Lei Agrícola dos EUA, diploma legal que define os subsídios concedidos à agricultura no país. [11] No entanto em janeiro de 2014 o Brasil voltou a ameaçar os Estados Unidos com aplicação de retaliação cruzada incluindo uma ampla variedade de produtos importados norte americanos e bens de propriedade intelectual. A indenização autorizada pela OMC foi de US$ 820 milhões, porém os Estados Unidos suspenderam tais pagamentos em outubro de 2013 alegando dificuldades orçamentárias.[12] Em outubro de 2014 foi anunciado pelos ministros das Relações Exteriores, Luiz Alberto Figueiredo, e da Agricultura, Neri Geller a assinatura de um memorando de entendimento entre Brasil e Estados Unidos que prevê a alteração dos critérios de concessão de garantias na política de crédito à exportação norte-americana, beneficiando desta forma além da cotonicultura, a produção brasileira de outros grãos, como soja e milho. O acordo prevê ainda o pagamento de US$ 300 milhões ao Instituto Brasileiro do Algodão (IBA), que já recebeu cerca de US$ 505 milhões dos americanos a título de compensação por subsídios indevidos segundo a OMC. Em contrapartida, o Brasil não vai questionar mais a política de subsídios ao algodão pelos EUA até 2018, prazo de vigência da atual Lei Agrícola americana, que alterou os programas de subsídios excessivos. [13] Um estudo do ICTSD estima que os preços do algodão teriam subido sobre a média de preços entre 1998 e 2007 caso os Estados Unidos tivessem cortado os subsídios a seus agricultores condenados pela OMC na disputa contra o Brasil.[14]
A questão da retaliação cruzada foi discutida em alguns Painéis na OMC[15]. No painel da OMC do Equador contra a União Europeia DS27 em 1996, sobre o comércio de bananas, o Equador pleiteou retaliação com propriedade intelectual (direito de autor, marcas e desenho industrial) e obteve aprovação ao comprovar perante ao OSC (Organismo de Solução de Controvérsias) da OMC as perdas que teria sofrido com o tratamento discriminatório da Comunidade Europeia contra o comércio de bananas.[16] O Equador tinha ameaçado retaliar com PI, mas desistiu após acordo com a Comunidade Europeia em 2001. Os Estados Unidos chegou a anunciar que suspenderia a aplicação de concessões tarifarias e outras obrigações conexas no âmbito do GATT de 1994 contra a Comunidade Europeia totalizando 520 milhões de dólares. Petersmann observa que “ao longo de seis anos de sucessivos procedimentos, inumeráveis reuniões no GATT e OMC intentaram em vão incitar a Comunidade Europeia em adequar suas restrição à importação de banana às suas obrigações em ambos os regimes”.[17] Segundo Nuno Carvalho, o painel no entanto, teve o efeito de demonstrar que a propriedade industrial é uma ferramenta de retaliação permitida pela OMC.[18] Outro caso envolvendo a aplicação de retaliação cruzada ocorreu em Antigua e Barbuda vs. Estados Unidos (DS285) a respeito de serviços de apostas transfronteiras.[19] A Zâmbia propôs que para os países em desenvolvimento e menos adiantados, que tem menor capacidade de retaliação comercial, o que equivale a uma privação de direitos, advogam a possibilidade, nesses casos de compensação monetária. Para Cretela Neto: “A suspensão de concessões geralmente não tem o condão de beneficiar o segmento de mercado do membro reclamante afetado pelas medidas adotados pelo outro membro inconsistentes com as regras da OMC. As únicas medidas realmente eficazes, na prática, são a revogação da medida ilegal pelo membro em controvérsia considerado culpado e a compensação monetária, de rara concessão pela OSC e de difícil implementação pelo reclamado, especialmente quando seu poderio econômico é inferior ao do reclamante”. Entre 1995 e 2002 cerca de metade das reclamações que utilizaram os mecanismos de soluções de controvérsias da OMC foram de países em desenvolvimento e menos desenvolvidos. O Brasil utilizou-se do mecanismo em 34 paineis[20]. O funcionamento do Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) tem sido apontado como de “notável êxito”, trata-se de uma proporção consideravelmente superior à era GATT. Apesar disso o mecanismo apresenta dificuldades de utilização para países em desenvolvimento como (i) a falta de recursos destes estados para atuar em pé de igualdade e em defender seus interesses; (ii) a dificuldade em se fazer cumprir as recomendações nos casos em que o estado em litígio de baixa capacidade de retaliação comercial como mostrou o painel do Equador com o comércio de bananas, (iii) o receio por parte destes países menos desenvolvidos em sofrerem represálias dos países mais desenvolvidos, (iv) a falta de transparência em muitas das reuniões. O número de novos painéis tem declinado com o tempo. Em 1997 foram 50 paineis enquanto que nos últimos anos o número chegou de 5 paineis em 2020 e 9 paineis em 2021.[21] Ronado Fiani se refere a uma paralisia da OMC nos tempos atuais, com uma crise dos organismos multilaterais de comércio.[22]
Joseph Stiglitz apresenta uma proposta para tornar este mecanismo de solução de controvérsias eficaz, especialmente para países com pouco poder de retaliação. Pela proposta os países em desenvolvimento poderiam vender seus direitos de execução: “A Europa, por exemplo, poderia ter alguma queixa contra os Estados Unidos em um caso pendente: em vez de esperar pelo resultado desse caso, poderia usar a ameaça de execução no caso já decidido para induzir uma solução mais rápida”.[23] A noção se aproxima do sistema de créditos de carbono, aprovados no Protocolo de Kyoto para gestão das questões ambientais.
Os Estados Unidos utilizaram-se do recurso de retaliação cruzada contra o Brasil em outubro de 1988 como forma de pressão para que o país modificasse sua Lei de patentes permitindo a patenteabilidade de produtos farmacêuticos. As sanções unilaterais impostas pelos EUA contra o Brasil chegaram a representar US$250 milhões para a indústria de papel brasileira[24].
Nuno Carvalho[25] adverte que retaliações cruzadas embora permitidas por TRIPs não poderão infringir outros Tratados Internacionais. No caso de se rejeitar patentes a cidadãos norte-americanos em determinados setores tecnológicos haveria uma clara violação ao princípio de tratamento nacional da CUP. A CUP não obriga os países a concederem patentes, porém se o fizerem não poderão estabelecer discriminações entre nacionais e estrangeiros. Caso a lei nacional dê mais direitos aos estrangeiros que ao nacional, isto não contrariaria nem a CUP, tampouco a TRIPs que estabelece padrões mínimos de proteção[26]. Para que não ocorresse a violação da CUP seria necessário que neste mesmo setor tecnológico fossem rejeitadas patentes de nacionais e norte-americanos, quando então o tratamento nacional de CUP estaria preservado.
Como as decisões da OMC não são autoaplicáveis nos países membros, o Brasil precisa de uma lei para fazer cumprir essas decisões e possivelmente suspender direitos de PI, se necessário. Carlos Cozendey explica que para aplicar a modalidade de retaliação cruzada – quando o governo poderia, por exemplo, retaliar em propriedade intelectual no lugar de bens – há a necessidade de criação de lei específica[27].
[1] LAFER.op. cit.
[2] PARANAGUÁ, Pedro; REIS, Renata. Patentes e Criações Industriais. Rio de Janeiro: FGV Jurídica, 2009. p. 39.
[3] OMC adia decisão para autorizar sanção do Brasil aos EUA por algodão,
http: //economia.uol.com.br/ultnot/efe/2009/06/30/ult1767u148070.jhtm.
[4] STIGLITZ, Joseph. Globalização como dar certo. São Paulo: Cia das Letras, 2007. p. 33, 170.
[5] NAPI, Karina. Brasil deve pedir quebra de patentes para retaliar os EUA.
http: //www.alanac.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3825&catid=: clipping.
[6] http: //www.senado.gov.br/sf/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=97228.
[7] http: //www.mdic.gov.br/arquivos/dwnl_1268063292.pdf.
[8] http: //www.mdic. gov.br/sitio/ interna/noticia. php?area= 1¬icia=9655.
[9] EUA cancelam créditos à exportação para cumprir etapa de acordo.
http: //www.brasilagro.com.br/index.php?noticias/detalhes/9/26457.
[10] ARDISSONE, Carlos Maurício. Propriedade intelectual e relações internacionais nos governos Lula e FHC. Curitiba:Appris, 2013, p.284
[11] http://ictsd.org/i/news/pontesquinzenal/101660/
[12] FOX, ARENT. Brazil threatens trade retaliation against US exports and IP rights in long-standing Cotton Case16/01/2014 http://www.lexology.com
[13] http://oglobo.globo.com/economia/acordo-vai-beneficiar-tambem-soja-milho-brasileiros-14106301
[14] http://en.wikipedia.org/wiki/Brazil%E2%80%93United_States_cotton_dispute
[15] https://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/dispu_status_e.htm
[16] http: //www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/cases_e/ds27_e.htm.
[17] CERVINO, Jose Luis Lopez. El sistema de solucción de diferenciais de la OMC y algunas dificultades que aún deben enfrentar los países em desarollo y los menos adelantados. In: BARRAL, Welber; CORREA, Carlos. Derecho, desarrollo y sistema multilateral del comercio, Florianópolis:Boiteux, 2007, p. 299
[18] CARVALHO, Nuno. Encontro de Propriedade Intelectual: questões constitucionais e legais. Palestra TRF2, Rio de Janeiro, set. 2007.
[19] http: //www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/cases_e/ds285_e.htm.
[20] https://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/dispu_by_country_e.htm
[21] https://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/dispu_status_e.htm
[22] https://www.diariodepetropolis.com.br/integra/ronaldo-fiani-213836
[23] STIGLITZ, Joseph. Globalização como dar certo. São Paulo: Cia das Letras, 2007. p. 188.
[24] TACHINARDI, Maria Helena. A guerra das patentes: o conflito BrasilxEUA sobre propriedade intelectual. São Paulo: Paz e Terra, 1993, p. 111.
[25] CARVALHO.op. cit.
[26] BARBOSA, Denis. Usucapião de patentes e outros estudos de propriedade industrial . Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.p. 326.
[27] Algodão: Camex cria grupo para estudar possibilidade de retaliação aos EUA.
http: //www.desenvolvimento.gov.br/sitio/interna/noticia.php?area=1¬icia=9430.
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