segunda-feira, 12 de outubro de 2015

TRIPS e a grande barganha

TRIPs foi o resultado de uma longa e acirrada negociação, que abortou um processo de revisão da Convenção de Paris, que vinha se desenvolvendo desde os anos 60, promovido pelos países em desenvolvimento no sentido de se afrouxar as regras de propriedade intelectual para tais países. Na negociação do GATT as concessões na área de proteção à propriedade intelectual por parte dos países em desenvolvimento seriam feitas em troca da redução das tarifas dos produtos agrícolas e têxteis por parte dos países industrializados, o que não veio a acontecer [1]. Em seu relatório de 1991 sobre as negociações do Acordo TRIPs Arthur Dunkel observa que muitos dos impasses na redação do texto dependiam de compensações em outras áreas como agricultura e têxteis. Para Peter Drahos há uma ironia quanto a este aspecto uma vez que com TRIPs diante das tecnologias patenteadas em agricultura na área de biotecnologia os países em desenvolvimento acabarm também nesta área tendo de dispender mais recursos para o pagamento de royalties, ou seja, exatamente na área em que esperavam que seriam beneficiados. [2]
Segundo Michael Doane, da Georgetown University Law Center “Com o objetivo de fazer avançar as negociações em todas as áreas cobertas pela Rodada Uruguai, o diretor-geral do GATT apresentou o Texto Dunkel como uma declaração integral da situação das negociações. O diretor-geral apresentou esse documento como um acordo do tipo tudo ou nada, determinado a impedir que os membros dividissem as várias seções para adotá-las separadamente. Esta exigência comprovou-se útil para a obtenção do acordo TRIPs, pois os Estados Unidos e outros países industrializados podiam combinar concessões desejadas pelos países em desenvolvimento em áreas como agricultura e têxteis, para a obtenção de um adequado acordo TRIPs” [3]. Na Índia o texto ficou conhecido como DDT Dunkel Draft Text, sendo visto como excessivamente favorável aos titulares de patentes e prejudicial ás políticas de saúde. [4]
Esta lógica de troca comercial, que Joseph Stiglitz se refere como “a grande barganha” [5] permeou não somente TRIPs mas a criação da OMC. Segundo Ha Joon Chang os países ricos não satisfeitos com a Rodada do Uruguai do GATT continuaram pressionando por uma maior liberalização das economias em desenvolvimento. Em troca de cortes nas tarifas industriais dos países em desenvolvimento os países ricos se comprometiam a reduzir o subsídio agrícola de forma que os países pobres pudessem aumentar suas exportações, assim como abolir o Multi-Fibre Arragement que restringia as exportações de produtos têxteis dos países em desenvolvimento[6], uma estratégia de negócio em que, segundo os países ricos, todos sairiam ganhando [7]. Escrevendo em 1995 Michel Alaby, vice-presidente executivo da Associação de Empresas Brasileiras para Integração no Mercosul estimava que TRIPs traria um aumento do comércio mundial assim como uma redução das tarifas sobre produtos industrializados brasileiros que deveriam atingir 45% na Europa e 30% nos Estados Unidos, tendo como base a média do período 1986/1990 [8].
O Multi Fibre Arrangement (MFA) foi criado em 1974 e estabelecia aos países em desenvolvimento cotas de exportação para os países desenvolvidos, e foi utilizado com o intuito de proteger a indústria têxtil e de vestuário dos Estados Unidos. Com a adoção da OMC o Acordo foi gradualmente desmontado até que finalmente extinto em 2005. Segundo um estudo do FMI e Banco Mundial o Acordo teve um custo de 27 milhões de empregos nos países em desenvolvimento e 40 bilhões de dólares anuais em exportações perdidas. Com o fim do acordo previa-se que países como Bangladesh pudessem perder receitas, com a competição dos produtos chineses, no entanto, suas exportações aumentaram em 2006 em cerca de 500 milhões de dólares. [9] O acordo ao long de trinta anos sofreu quatro revisões. Uma vez que os acordos MFA eram estabelecidos de forma bilteral com tarifas diferenciadas poo país, de modo que os benfícios conferidos a um país não se estendiam aos demais, isto configurava uma clara violação ao princípio de nação mais favorecida conferido pel GATT. O membros do GATT contudo reconheciam que uma exceção a este princípio poderia ser estabelecido como forma de acomodar as necessidades dos países em desenvolvimento[10].
O lobby da indústria norte americana se concentrava em grupos como o American Cotton Manufactures Institute (ACMI), American Textile Manufacturers Institute (ATMI), American Apparel Manufacturers Association, American Yarn Spinners Association, entre outras,bem como sindicatos de trabalhadores como Amalgamated Clothing Workers of America e o International Ladies Garment Workers Union. As controvérsias comerciais em torno da aplicação do MFA eram dirimidas no âmbito do GATT Textile Committee (TC) e do Textiles Surveillance Body (TSB). A primeira reforma no MFA ocorreu em 1977 por pressão da indústria européia, ineressad em se defender da pressão contínua dos produtos importados, principalmente dos países asiáticos Hong Kong, Coreia e Taiwan. Com a globalização produtos chineses eram embarcados utilizando-se das quotas de países da América do Sul e Central numa tática conhecdia como “quota hopping”. Produtos de Taiwan eram embarcados a partir das Filipinas e Panamá em direção ao mercado norte americano, tornando inócuas as medidas restritivas do Acordo. Nos Estados Unidos os oficiaiis do U.S. Customs and Border Patrol (CBP) confiscaram cerca de 20 bilhões de dólares de produtos ilegais obtido a parti do uso indevido das quotas de Indonesia, Panamá, Columbia, Argentina, Malásia, Peru, Portugal, Sri Lanka, Singapura, Tailândia e Turquia. Diante da ineficiência do MFA, com a entrada em vigor da OMC, os psíses membros iniciaram um processo gradual de desmonte do Acordo com a eliminação das quotas até 2005. [11]
O embaixador Miguel Ozorio de Almeida mostra que barganha similar, igualmente não cumprida esteve presente quando da redefinição das regras econômicas do pós Segunda Guerra: "De acordo com a combinação, todos os países se uniriam para organizar o mundo do após-guerra de uma forma justa e equilibrada. Justa e equilibrada queria dizer: com os países desenvolvidos podendo consumir, à vontade, toda a matéria prima dos países subdesenvolvidos. A realidade que nós estamos vivendo [depoimento de 1987 em plena crise da dívida....] hoje, do mundo subdesenvolvido totalmente endividado, é o resultado de Bretton Woods, que aliás está deixando saudades não sei bem a quem. certamente não deveria deixar a nós ! Porque não houve a menor tentativa, nem na Carta do Atlântico[12], nem depois em Bretton Woods[13], de dar uma compensação aos países subdesenvolvidos. Todas as tentativas nesse sentido, que foram feitas na Conferência de Comércio e Emprego de Havana foram abandonadas. É engraçado ! Porque os capítulos correspondentes foram rejeitados pelas duas potências, Inglaterra e Estados Unidos. Foram rejeitados. E a parte correspondente à necessidade de fornecimento de matérias-primas, ao comércio de matérias primas, etc, etc, foi resumido num capítulo especial e esse capítulo foi posto para funcionar, provisoriamente, sob o título de Interim Agreement of Commerce and Employment. Então o Interim Agreement foi posto para funcionar. Os países desenvolvidos nunca ratificaram a parte correspondente a recursos para industrialização dos países subdesenvolvidos. E nós, bestamente, deixamos que o Interim Agreement funcionasse. E ele ficou funcionando, ficou para sempre. Foi aquele provisório que eternizou e que hoje se chama GATT. O GATT é descendente do Interim Agreement, que era o capítulo correspondente, compensatório, dentro de Bretton Woods e da Carta do Atlântico, para a negligência em relação aos países subdesenvolvidos"[14]
Roberto Simonsen embora reconheça que o Plano Marshall abra oportunidades de negócios para o Brasil observa que “Na adoção de um plano dessa natureza e de tal magnitude, deve-se evitar a criação de um ambiente artificial de trabalho, para a América Latina, que redunde em seu enfraquecimento econômico futuro e na manutenção de seu atual estado de pauperismo. A América Latina deve pleitear, na elaboração final e execução desse Plano, que seus países sejam colocados em igualdade de condições com os países europeus, na obtenção, por parte dos Estados Unidos e do Canadá, de bens de produção de que necessitam para o seu reequipamento econômico [...] As nações latino-americanas devem pleitear a organização de uma Comissão de Cooperação Econômica que estude os meios para tornar mais eficiente uma efetiva cooperação dessa natureza entre os países americanos e a obtenção de auxílio norte-americano, para os seus planos de desenvolvimento econômico”. Na tese apresentada por Roberto Simonsen em 1943 como contribuição da Fiesp à Conferência Internacional de Rye, acentua: “Delineia-se um grande movimento de caráter internacional para auxiliar a rápida reconstrução das zonas devastadas pela guerra. Não existe, porém, o mesmo anseio em socorrer muitos povos, em imensas regiões do globo, onde também milhões dc indivíduos perecem anual e precocemente, vitimados pela miséria, pela ignorância, pela subnutrição e pelas enfermidades daí decorrentes. Por que não colocar no mesmo plano de atenção a recuperação da prosperidade dos países destroçados pela guerra e a outorga às nações pobres de um grau mínimo de conforto, a que devem fazer jus? Se, nos congressos políticos internacionais, se reconhece para o estudo e aplicação de medidas fundamentais, a diferenciação existente quanto à capacidade bélica entre os vários povos, por que não diferenciar as medidas e providências de que cada nação necessita, de acordo com o grau de desenvolvimento da sua estrutura econômica?”.[15]
 
 
Miguel Ozorio de Almeida
 



[1] GANDELMAN, Marisa Gandelman. Poder e conhecimento na economia global. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2004, p. 246, BRINDEIRO, Otávio. Direitos de Propriedade Intelectual, Boletim da Diplomacia Econômica, n.18, 1994, p. 81-84.
 
[2] DRAHOS, Peter; BRAITHWAITE, John. Information feudalism: who owns the knowledge economy ? The New Press: New York, 2002, p.11, 143
[3] GONTIJO, Cícero. As transformações do sistema de patentes: da Convenção de Paris ao Acordo de Trips, a posição brasileira, Fundação Heinrich Boll, 2007, p. 22 http: //www.fdcl-berlin.de/fileadmin/fdcl/Publikationen/C_cero-FDCL.pdf. GONTIJO, Cícero. Propriedade intelectual no GATT traz implicações para o Brasil.  http://fmauriciograbois.org.br/portal/cdm/revista.int.php?id_sessao=50&id_publicacao=135&id_indice=683.
[4] DRAHOS, Peter; BRAITHWAITE, John. Information feudalism: who owns the knowledge economy ? The New Press: New York, 2002, p.146; DHAR, Biswajit, RAO, Niranjan, Dunkel Draft on TRIPS: Complete Denial of Developing Countries' Interests, Economic and Political Weekly v. 27, n 6 (Feb. 8, 1992), p. 275-278
[5] STIGLITZ, Joseph. Globalização como dar certo. São Paulo: Cia das Letras, 2007. p. 159, 463.
 
[6] MAY, Christopher; SELL, Susan. Intellectual Property Rights: a critical history. Lynne Rjenner Publishers: London, 2006, p.155
[7] CHANG, Ha Joon. O mito do livre-comércio e o maus samaritanos: a história secreta do capitalismo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. p. 75.
 
[8] ALABY, Michael. Acordo do GATT promoverá aumento do comércio mundial. Panorama de Tecnologia, n.13, fev. 1995, p. 16.
 
[9] http://en.wikipedia.org/wiki/Multi_Fibre_Arrangement
[10] http://en.wikipedia.org/wiki/Most_favoured_nation
[11] MATT, Svetlana, The Evolution and Demise of the Multi-Fibre Arrangement: Examining the Path of Institutional Change in the Textile and Apparel Quota Regime, 2006 htttp://www.pugetsound.edu/files/resources/1359_TheEvolutionAndDemise.doc
[12] http://pt.wikipedia.org/wiki/Carta_do_Atl%C3%A2ntico
[13] http://en.wikipedia.org/wiki/Bretton_Woods_system
[14] Miguel Ozorio de Almeida: um depoimento, Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, p.20, 28
[15] SIMONSEN, Roberto. Evolução industrial do Brasil e outros estudos. Brasiliana, n.349, São Paulo: Cia Editora Nacional, 1973, p.342, 246 http://www.brasiliana.com.br/obras/evolucao-industrial-do-brasil-e-outros-ensaios/pagina/347/texto

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