quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Licença compulsória e exploração integral da patente


Basta que algumas das reivindicações independentes não estejam sendo exploradas e disto decorra abuso de poder econômico para se configurar a previsão de uma licença compulsória. Segundo Denis Barbosa [1]:Note-se que não se pode usar, para o propósito de apurar uso efetivo, o critério de contrafação. Para se verificar se um uso de uma tecnologia infringe uma patente, se levará em conta qualquer dos pontos reivindicados; para se determinar uso efetivo, no entanto, é preciso determinar se a solução técnica, como reivindicada, está sendo usada, em sua integralidade. Assim se uma patente reivindica processo, produto e aparelho, a simples fabricação do produto não atende à obrigação de uso efetivo, muito embora o fizesse, se fosse esta a única matéria reivindicada. Já se apontou que, no caso de soluções alternativas, a utilização de apenas uma delas satisfará o requisito de uso efetivo e, portanto, não estará sujeita a patente à licença compulsória”.

A título ilustrativo, pode-se mencionar o parecer de deferimento do pedido de caducidade da patente PI6677387, (RPI 1693, de 13/01/1984), pela não exploração de apenas uma dentre várias reivindicações independentes. No parecer, a então chefe da DIQUOR mencionou que a “invenção deve ser usada conforme descrita no relatório e reivindicações e a exploração deve recair sobre o próprio objeto da patente [...] a titular estava obrigada a utilizar a patente em toda a sua extensão” [2], decretando a caducidade pela falta de exploração apenas da reivindicação 5 relativa ao processo de obtenção da composição, ao passo que a reivindicação 1 que descrevia a composição propriamente dita vinha sendo produzida localmente.

Neste entendimento, o TRF2 afirma que “ante a sua indivisibilidade não se pode declarar a caducidade parcial da patente. Se uma das reivindicações já estivesse dentro do estado da técnica, seria caso de nulidade por ausência de requisito de novidade, não de caducidade” [3]. Em outro caso na patente PI82808 de maio de 1970 a FMC Corp. tratava em uma de suas reivindicações de uma composição ao passo que outra reivindicação tratava do processo para obtenção de certa composição. O titular conseguiu comprovar o uso efetivo apenas do produto, mas não do processo e assim não se configurou o uso efetivo da patente.

A patente da Monsanto PI7107076 referente a Composição fitotóxica ou herbicida teve licença compulsória concedida a Nortox sob a alegação que apenas parte da patente era explorada. A Nortox S.A. (Nortox) é uma sociedade brasileira, não pertencente a nenhum grupo econômico, que atua na indústria química e petroquímica por meio da fabricação e comercialização de defensivos agrícolas e sementes, tais como algodão, milho, soja e sorgo. A Nortox poderia ter requerido a caducidade da patente por não exploração, no entanto, preferiu a licença compulsória não exclusiva mesmo tendo de pagar royalies de 5% à titular, pois desta forma poderia entrar no mercado se anunciando-se como licenciada da Monsanto e desta forma conquistar mercado pois estaria garantindo a seus clientes que seu produto mantinha a mesma qualidade que o produto original da Monsanto. O glifosato (US3799758) é um herbicida sistêmico não seletivo (mata qualquer tipo de planta) desenvolvido para matar ervas, principalmente perenes. É o ingrediente principal do Roundup, herbicida da Monsanto. A titular Monsanto tentou evitar a licença compulsória renunciando em 1984 as reivindicações que não explorava (no caso, ao processo de fabricação de um defensivo agrícola “Roundup”), no entanto, a tentativa foi rejeitada pelo INPI [4], pois uma vez concedida a patente não havia como modificar seu conteúdo, sob pena de cisão da unidade inventiva [5]. Segundo o parecer da então assessora da Presidência Nelida Jessen “uma patente será sempre una e indivisa, no sentido legal sem que haja necessidade de unidade do processo produtivo [...] como claramente estipulado no Código da Propriedade Industrial, uso parcial não é em hipótese nenhuma uso efetivo, nem para efeito de caducidade nem para efeito de licença” [6].

O entendimento do INPI em pouco mais de quatrocentas decisões de caducidade, anteriores a TRIPs foi o de que a exploração efetiva do objeto da patente prevista no artigo 33 da Lei nº 5772/71 exigia a exploração de todas as reivindicações independentes de uma patente. A patente PI6677387, por exemplo, teve deferido o pedido de caducidade (RPI 1693 de 13/01/1984) pela não exploração de apenas uma dentre várias reivindicações independentes.

O argumento da titular de que a exploração de todas as reivindicações não era possível face a dificuldade na exploração local do processo devido à necessidade de instalações altamente complexas, que exigem vultosos investimentos e tempo de execução incapazes de serem resolvidos no curto espaço de tempo fixado pelo artigo 49 da Lei nº 5772/71 (Salvo motivo de força maior comprovado, caducará o privilégio, “ex officio” ou mediante requerimento de qualquer interessado, quando: a) não tenha sido iniciada a sua exploração no país, de modo efetivo, dentro de quatro anos ou dentro de cinco anos, se concedida licença para sua exploração, sempre contados da data da expedição da patente; b) a sua exploração for interrompida por mais de dois anos consecutivos), não foi suficiente para que o INPI mudasse sua opinião e assim a caducidade foi deferida. O extinto TFR por mais de uma ocasião manteve tais decisões de caducidade, confirmando o entendimento do INPI [7].

Segundo Otto Licks e Marcos Levy esta situação produzia um resultado paradoxal: “Em resumo, se o titular de uma patente que possui dez reivindicações independentes produzir em território brasileiro apenas nove delas, a patente está sujeita à licença compulsória por falta de fabricação local de apenas uma das reivindicações. Pelas práticas adotadas pelo INPI, todas as 10 reivindicações seriam licenciadas, as nove que estão sendo produzidas, mais a única que não estava, pois o INPI não concede licenças parciais”. Gabriel Di Blasi da mesma forma entende que o INPI não autoriza uma licença compulsória de forma parcial, ou seja, para a reivindicação não produzida localmente [8]. Gabriel Leonardos destaca que a patente pode descrever várias invenções unidas pelo mesmo conceito inventivo segundo o artigo 23 da LPI: “ora, por vários motivos pode ser impossível a fabricação de todos os elementos das reivindicações no Brasil e a consequência inexorável será a possibilidade de concessão de uma licença compulsória sobre a totalidade das reivindicações, apenas para que em seguida, o licenciado venha a utilizar exatamente as mesmas reivindicações que já estavam sendo exploradas [pelo titular] no Brasil ! essa hipótese é inclusive provável de ocorrer, pois o licenciado não tem a obrigação de explorar integralmente a patente, uma vez que este encargo recai apenas sobre ii titular da patente ! Assim, percebe-se que – considerações de ordem jurídica à parte – a lei brasileira é tecnicamente inadequada nesse aspecto, e pode acarretar enormes injustiças para os interesses legítimos do titular de uma patente”.[9]

Mesmo o número de solicitações de licenças compulsórias tem sido bastante reduzido. A patente PI8704197 referente a processo de ensilagem a vácuo, cuja titular é empresa belga Interprise teve licença compulsória solicitada pela Vacuum Pack Services Limited conforme RPI 1460 de dezembro de 1998 com base no Artigo 68 da LPI. Outras solicitações de licenças compulsórias (código de despacho 22.4) incluem: PI7407113 referente a prótese cirurgicamente implantável e junta protética flexível da Dow Corning (US) (RPI 892 de 24/11/1987), PI7410538 referente a processo para fabricar selo de óleo da Federal Mogul Corp. (RPI 808, de 15/04/1986), PI7902779 referente a dispositivo amortecedor, nivelador e suspensor aplicável em veículos automotores de Baby Valentin Rocha (RPI 859 de 07/04/1987), e PI8700357 referente a composição herbicida e processo para eliminar ervas daninhas em um campo de milho da Ishihara Sangyo Kaisha (JP) (requerido pela Nortox conforme RPI 1714 de 11/11/2003).

Segundo Douglas Gabriel DominguesGama Cerqueira, ao analisar a exploração parcial do invento, destaca acertadamente que, na eventualidade de a invenção apresentar diversas modalidades ou variantes, a caducidade é afastada pelo uso parcial da patente, desde que mencionado uso tenha por objeto a parte característica e essencial do objeto patenteado”, ou seja se o titular explora uma das variantes em suas partes características essenciais não há caducidade. Prossegue Douglas Gabriel Domingues: “De forma igual, sendo a invenção suscetível de diversas aplicações, não se exige que o titular explore o invento e todos os fins previstos. Entretanto, na eventualidade de a invenção comportar diversos elementos distintos e suscetíveis de serem explorados independentemente uns dos outros, poder-se-á decretar a caducidade parcial da patente, exatamente na parte relativa aos elementos inexplorados ou com exploração interrompida” [10].

 
Douglas Gabriel Domingues [11]


[1] BARBOSA.op. cit. p. 526.
 
[2]  LICKS, Otto; LEVY, Marcos. O requisito de fabricação completa do objeto de uma patente no território nacional. Interfarma, 2003.
 
[3] TRF2, Apelação Cível processo 97.02.43308-8 Terceira Turma. Data da Decisão: 15/08/2000, DJU: 19/12/2000, Relator: Juíza Tania Heine, apud BARBOSA, Denis. Uma Introdução à propriedade intelectual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 552.
 
[4] FREIRRE, Augusto. The need to exploit the subject matter of all independent claims of brazilian patents to avoid cancellation, in. DANIEL, Denis Allan. Patents in Brazil, Rio de Janeiro: Daniel & Companhia 1984, p. 53 http: //denisbarbosa.addr.com/daniel.doc.
 
[5] BARBOSA.op. cit. p. 561.
 
[6] Apelação em mandado de segurança n.106155-RJ, acórdão relator Ministro Ilmar Galvão, DJ de 21.08.96 apud BARBOSA.op. cit. p. 562.
 
[7] LICKS.op. cit.
 
[8] Di BLASI, Gabriel. A propriedade Industrial: os sistemas de marcas, patentes, desenhos industriais e transferência de tecnologia, Rio de Janeiro: Ed. Forense: 2010, p. 224.
 
      [9] LEONARDOS, Gabriel. Licenças compulsórias patentes no cenário mundial, Seminário promovido pela AmCham RJ em 31 de maio de 2001
[10] DOMINGUES, Douglas Gabriel. Direito Industrial – patentes, Rio de Janeiro: Forense, 1980. p. 313.
 
 

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