quinta-feira, 15 de maio de 2014

Funcionalidade de desenhos industriais

Iván Poli observa que a distinção entre uma forma útil e outra estética em que apenas a primeira seria passível de proteção por modelo de utilidade tem sido criticada por não envolver dois conceitos mutuamente excludentes. Iván Poli reelabora esta distinção da seguinte maneira: “a forma a que se refere o modelo ou desenho industrial deve ser arbitrária e individualizante e não pode ser necessária (no sentido de imprescindível para a função do produto que a incorpore)” conforme decisão na Itália da Corte di Cassazione, em sentença de 27 de maio de 1960.[1]
Nos Estados Unidos a proteção fornecida pelo desenho industrial (design patent) se restringe às características ornamentais do desenho e não inclui as características essencialmente funcionais, pelo qual a natureza do desenho contribui para a operação ou desempenho do artigo. Em Avia Group Int v. L.A.Gear Cal. Inc[2] o Federal Circuit conclui que a sola de um tênis possuía características funcionais, contudo, diversos outros desenhos poderiam proporcionar as mesmas funções, logo, é possível se dissociar a funcionalidade do artigo (sola de tênis) com a funcionalidade de seu desenho. Neste caso, a patente de desenho industrial (USD287301) foi concedida. Segundo Janice Mueller a patente de desenho industrial adota um critério de não funcionalidade análogo a doutrina de artigos úteis (useful article doctrine) presente na legislação de copyright (17 USC § 101) pelo qual o desenho de um artigo útil pode ser objeto de copyright na medida em que incorpora características gráficas que podem ser identificadas de forma separada de sua funcionalidade, ou seja, que possam existir independente do aspecto utilitário do artigo.[3]
O Manual de Exame do USPTO refere-se à decisão L. A. Gear Inc. v. Thom McAn Shoe Co[4] que estabelece que para ser patenteável como design patent um desenho deve ser principalmente ornamental (primarily ornamental): “na determinação se um desenho é principalmente funcional ou principalmente ornamental o desenho reivindicado é visto como um todo, pois a questão principal não é o aspecto funcional ou decorativo de cada elemento característico separado, mas o resultado geral do artigo, para se determinar se o desenho reivindicado é ditado por um propósito utilitário do artigo”.
Em decisão de 1954 a Suprema Corte em Mazer v. Stein[5] analisou a possibilidade de registro de um abajur em forma de uma escultura de uma dançarina e entendeu que obras de arte, mesmo destinadas ao uso industrial, poderiam receber proteção de direito de autor uma vez que o conceito de arte não deve se restringir às formas tradicionais de arte pura.[6] A Corte entendeu que nem a lei de patentes ou a de direitos autorais se refere a que tais tipos de proteção são mutuamente exclusivos e, portanto, a patenteabilidade de um objeto não impede que este mesmo objeto receba proteção de direito de autor como obra de arte.[7] A decisão seguiu a dicotomia ideia/expressão na qual a funcionalidade do abajur foi separada de seu formato estético. Segundo Cláudio Barbosa: “se a função não está protegida, e a única forma de acesso àquela função (informação) passa pelo uso daquela forma, o uso da forma passa a ser permitido, independentemente da proteção conferida pelo instituto jurídico. Esta é a dicotomia ideia-expressão”.[8]

Em Esquire v. Ringer o US District Court do Distrito de Columbia [9] decidiu em 1976 que o desenho artístico de luminárias destinadas ao uso em áreas de estacionamento e outras áreas externas poderia ser objeto de um registro de direito de autor, apesar do propósito obviamente utilitário do artigo. As luminárias da autora tanto serviam para decorar como para iluminar, sendo durante o dia, exclusivamente decorativas.[10] Vinte anos após a decisão Mazer v. Stein a CCPA analisou questão similar em In re Yardley[11] que tratou de relógio dotado de uma figura em caricatura cujos braços e pernas serviam de ponteiros para minutos e horas. O USPTO havia rejeitado a design patent com base em anterioridade que apresentava figura distinta em que braços e ponteiros serviam à mesma função como ponteiros do relógio. A Corte, contudo, reafirmou o entendimento de Mazer v. Stein de que podem haver áreas de proteção superpostas entre o copyright e a patente de design quando ao aspecto ornamental do desenho.[12]
Nos Estados Unidos, patentes de utilidade (utility patents) e patentes de desenho (design patents) podem coexistir uma vez que protegem objetos distintos, enquanto o primeiro se refere a funcionalidade do objeto o segundo diz respeito as seus aspectos ornamentais. Nestes casos o inventor do pedido de patente insere um “terminal disclaimer” em seu pedido concordando que as duas proteções se encerram na mesma data.[13] Uma Suthersanen argumenta que nem sempre o critério ornamental versus funcional é objetivo. Uma Suthersanen argumenta que o critério de não obviedade em patentes de desenho é mais exigente que o observado em patentes de invenção.[14] Há diversos exemplos de patentes de desenho relativas a objetos com características funcionais tais como fontes de alimentação D298824 com disposição de ventilação, asa de avião D566031 com efeitos aerodinâmicos, impressora D350978 com disposição das bandejas de papel, encapsulamento de dispositivo semicondutor D489695 com efeitos de dissipação de calor, cabo coaxial D519076 com aspectos de conectividade.
Conforme Ladas explica: “O registro de modelo de utilidade é concedido para um artigo que serve a uma finalidade prática. [...] Não é apropriado invalidar um desenho porque basicamente um ou outro aspecto menor serve a uma finalidade prática, utilitária. Mas é indicado invalidar se os aspectos individuais estão presentes para atender, basicamente, a uma finalidade funcional que pode claramente ser entendida como dominante, no sentido de que eles estão no principal, destinados a contribuir com as características do novo, original, ornamental e não óbvio para o desenho como um todo”.
José Lastres observa que enquanto o modelo industrial protege unicamente a forma do objeto, o modelo de utilidade protege a forma em que se executa e se produz um resultado industrial. José Lastres descarta como errônea a interpretação que toda a forma que cumpra uma função técnica não possa ser protegida como modelo industrial. Se assim fosse, praticamente reduzir-se-iam consideravelmente as possibilidades de proteção por modelo industrial visto que invariavelmente na maioria das vezes alguma funcionalidade, ainda que de menor importância, estará presente. Para autor não poderá ser protegido por modelo industrial a criação cuja forma esteja inseparavelmente unida ao resultado técnico produzido pela mesma. Portanto, a forma poderá cumprir uma função técnica e ainda assim poderá ser protegida por modelo industrial, haverá, portanto, que se averiguar se existe separabilidade entre forma e função, ou seja, a forma não seja necessária para produzir o correspondente efeito técnico.
Segundo decisão do Supremo Tribunal espanhol em sentença de 9 de junho de 1970 “Para que uma criação de forma seja protegida como modelo industrial não é preciso que cumpra uma função técnica. O resultado técnico é considerado assim, irrelevante para os modelos industriais. Os modelos industriais são suscetíveis de registro sempre que sua forma possa ser descrita por sua estrutura, configuração, ornamentação ou representação, sem necessidade de se reportar a qualquer função ativa”. Para resolver o problema da determinação da separabilidade entre forma e função José Lastres recorre ao direito francês em Marcel Plaisant em que se destaca o conceito de multiplicidade das formas: “se um objeto pode adotar múltiplas formas sem deixar de produzir por isso o mesmo resultado técnico, existe separabilidade entre a forma do objeto e o resultado industrial que a mesma produz. Dito de outra forma, quando é possível obter um mesmo resultado utilizando várias formas, estas são independentes do resultado técnico alcançado”.[15]
Eugène Pouillet também elabora critério semelhante ao determinar que não haverá separabilidade entre forma e resultado “se o resultado industrial é inerente à forma, deste inseparável, de modo que não possa ser obtido este resultado industrial sem que se modifique esta forma” e neste caso a proteção será a conferida por uma patente. Pouillet cita como exemplo um porta-moedas no qual o fecho é localizado no meio de uma cavidade cujas bordas o protegem: “é claro que mesmo que este dispositivo contribua para dar um aspecto especial ao porta moeda, não se trata de um modelo industrial mas de uma invenção, uma vez que tem como efeito evitar a abertura intempestiva do porta moedas[16]. Pouillet aqui trata de invenção, porém sua argumentação tratando da separabilidade entre funcionalidade e ornamentação aplica-se à presente discussão de modelos de utilidade. “Mas pode ocorrer que a forma não esteja indissoluvelmente associada a um resultado industrial, na qual uma forma confira ao objeto um aspecto característico, se apresente primeiro ao espírito do criador, ou foi por ele escolhida, tal forma não é de modo algum indispensável para a realização do mesmo propósito, e que um outro objeto de mesma forma e aspecto inteiramente diferente possa ser estabelecido sob os mesmos princípios (établi sur lês mêmes principes) e alcançar os mesmos resultados. Neste caso podemos ter uma situação de dupla proteção e o criador invocar [a lei de patentes] para os princípios em jogo, para a combinação de meios conhecidos que conduz a um resultado industrial, por exemplo, e o modelo industrial para a proteção da forma escolhida para o mesmo”.
Eugéne Pouillet destaca que se para cada variação de forma ou dimensão fosse obter uma nova patente, muito fácil seria se tornar um inventor, por outro lado se esta mudança de forma ou dimensão produz um resultado novo, de modo a criar um produto industrial novo, existirá uma invenção no sentido da lei francesa de 1844, citando como exemplo, um novo formato de lente para telescópio; um aparelho de torrefação de café em formato esférico ao invés da forma elíptica encontrada no estado da técnica; um novo formato de arado que retira com uma paleta a terra retida no instrumento facilitando seu uso. Como exemplo de formas não passíveis de proteção por patentes são citados novos formas em vestidos de saias e molduras de madeira usadas para quadros de pinturas[17].
O belga Edmond Picard nota que o que distingue desenhos de fábrica das invenções é o fato das primeiras se referirem a conjunto de linhas e cores aplicadas à uma superfície plana de impressão, um tecido, um bordado, ao passo que as invenções podem ser concedidas à combinação de linhas e cores aplicadas ao relevo de uma matéria qualquer destinada à reprodução na indústria. [18] Não há, portanto, a clivagem entre aspectos estéticos e industriais. A lei belga de 1886 em seu artigo 21 ao tratar da proteção de obras de arte por direito autoral, de forma análoga, sancionava que a obra de arte reproduzida por processos industriais permanece sempre sujeita à lei sobre direitos de autor, ou seja, adota a doutrina de unidade da arte (l’unité de l’art) que viria a ser defendida por Eugène Pouillet no Congresso Artístico Internacional de Veneza em 1905 para o qual não se pode fazer qualquer distinção entre as obras de arte propriamente ditas e as obras de arte de emprego industrial, desde que a arte é única em sua essência, não havendo como traçar uma fronteira entre o artístico (protegido pelo direito autoral) e o industrial (protegido por patentes e desenhos industriais).[19]
Albert Chavanne e Jean Burst comentam o critério da multiplicidade de formas: “segundo este critério se o mesmo resultado pode ser obtido com uma forma diferente deve-se decidir que a forma é dissociável deste efeito técnico. Se ao contrário, o mesmo resultado somente pode ser obtido por esta única forma, a mesma não é mais dissociável deste efeito técnico. Dito de outra maneira, a forma é inseparável da função quando esta não pode ser obtida a partir de uma outra forma”. Os autores observam que embora este princípio seja citado em muitos julgamentos pelas Cortes, há casos em que um objeto e suas variantes construtivas apresentam o mesmo efeito técnico e a proteção por modelos industriais seja possível. Chavanne e Burst observam que para se excluir um objeto da proteção por modelo industrial pelo fato do mesmo apresentar características predominantemente funcionais não é necessário que esta criação atenda a todos os critérios de patenteabilidade. Sempre que a forma tende a obter uma vantagem quanto ao conforto, comodidade ou permitir a realização de certas economias, esta forma tem uma característica utilitária e está excluída da proteção por modelos industriais. Por sua vez, se tais criações não atendem às condições de patenteabilidade, as mesmas ficarão sem proteção na França, o que tem mobilizado autores como Marie-Angele Perot Morel a defender a introdução dos modelos de utilidade na França.[20]
As proteções de desenho industrial e modelo de utilidade são distintas. O desenho industrial protege os elementos artísticos e o modelo de utilidade os técnicos. Portanto, no modelo de utilidade não poderão ser pleiteados elementos ornamentais na reivindicação assim como no desenho industrial não poderão ser pleiteados os elementos técnicos. Se, contudo um mesmo elemento é ao mesmo tempo ornamental e técnico, devemos analisar qual dos dois predomina e o requerente em tese deveria proteger sua criação como modelo de utilidade caso neste objeto predominem os aspectos técnicos ou como desenho industrial caso predominem os elementos ornamentais. Caso o requerente pleiteie as duas proteções para o mesmo elemento, em tese caberia a nulidade de uma das proteções. Como o enfoque de modelos de utilidade e desenho industrial é diferente, salvo os casos em que o depósito é feito na natureza incorreta pelo requerente, não será necessário buscas nos registros de desenhos industrial para o exame de um modelo de utilidade. Poderá, contudo, ocorrer poucas situações em que o elemento técnico serve apenas de suporte para o padrão ornamental protegido pelo registro de desenho industrial e neste caso, ainda que o enfoque seja distinto, este documento de desenho industrial poderia ser relevante em uma busca de anterioridades para modelo de utilidade.



[1] Riv.Dir.Ind, 1960, v.II, p.131. cf. POLI, Iván Alfredo. El modelo de utilidad. Buenos Aires: Ed. Depalma, 1982, p.39
[2] 853 F.2d. 1557 (Fed. Circ. 1988)
[3] MUELLER, Janice. Patent Law. New York:Aspen Publishers, 2009, p.290
[4] 988 F.2d 1117, 1123, 25 USPQ2d 1913, 1917 (Fed. Cir. 1993) cf. http://mpep.info/1500_1504_01_c
[5] 347 US 201, 100 USPQ 325 (1954) cf. LUNDBERG, Steven; DURANT, Stephen; McCRACKIN, Ann. Electronic and software patents. The Bureau of National Affairs, 2005, p.2-26
[6] http://www.conservapedia.com/Mazer_v._Stein; REICHMAN, Jerome. Design protection in domestic and foreign copyright law: from the Berne Revision of 1948 to the copyright Act of 1976. Duke Law Journal, v.1983, December, n.6 http://scholarship.law.duke.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1074&context=faculty_scholarship
[7] LUNDBERG, Steven, DURAT, Stephen, McCRACKIN, Ann. Electronic and Software Patents, Law and Practice, The Bureau of National Affairs, Washington, 2005, p. 2-26
[8] BARBOSA, Cláudio. Propriedade Intelectual: introdução à propriedade intelectual como informação. Rio de Janeiro:Elsevier, 2009, p.198
[9] 414 Fed.Sup. 939-942
[10] SILVEIRA, Newton. O design – proteção e interface com outros direitos: direito de autor no desenho industrial. XXII Seminário Nacional da Propriedade Intelectual: o redesenho dos direitos intelectuais no contexto do comércio mundial, São Paulo, agosto 2003, p.34; SILVEIRA, Newton. Direito de autor no design. São Paulo:Saraiva, 2012, p.153
[11] 493, F.2d 1389, 181 USPQ 331 (CCPA 1974) cf. LUNDBERG, Steven; DURANT, Stephen; McCRACKIN, Ann. Electronic and software patents. The Bureau of National Affairs, 2005, p.2-26
[12] http://www.uspto.gov/web/offices/pac/mpep/s1512.html
[13] BOUCHOUX, Deborah. Intellectual Property for Paralegals: the Law of trademark, copyrights, patents and trade secrets, West Law Studies, Canada:Thomson, 2005, p.310
http://www.uspto.gov/web/offices/pac/mpep/documents/2700_2701.htm
[14] SUTHERSANEN, Uma. Utility Models and Innovation in Developing Countries, UNCTAD-ICTSD Project on IPRs and Sustainable Development, 2006, p. 28 http://www.unctad.org/en/docs/iteipc20066_en.pdf
[15] LASTRES, José Manuel Otero. Modelo industrial y creaciones que cumplen una funcion tecnica. Actas de derecho industrial y derecho de autor, Tomo 2, 1975, p. 437-446
[16] POUILLET, Eugene. Traité thèorique et pratique dês Dessins et Modèles, Paris, 1911, p.123-124
[17] POUILLET, Eugène. Traité Theorique et Pratique des Brevets d'Invention et de la Contrefaçon. Marchal et Bilard:Paris, 1889, p.92
[18] PICARD, Edmond; OLIN, Xavier, Traité des brevets d'invention et de la contrefaçon industrielle, précédé d'une théorie sur les inventions industrielles, 1869, p. 305
[19] SILVEIRA, Newton. Direito de autor no design. São Paulo:Saraiva, 2012, p.134
[20] CHAVANNE, Albert; BURST, Jean-Jacques. Droit de la propriété industrielle. Paris:Dalloz, 1990, p.430-433

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