Robert Merges
refere-se como fundamento da propriedade intelectual as teses de apropriação de
Locke resultante do trabalho de criação[1] e o
individualismo de Kant. Com John Locke a apropriação individual de bens matérias
é justificada no plano político e jurídico como justo resultado do trabalho do
homem sobre as coisas, assim como numa perspectiva kantiana essa apropriação se
justifica como efeito do livre exercício da vontade e do domínio do sujeito
sobre o mundo exterior. [2] Para
Locke o direito de propriedade não é absoluto mas prevê uma ressalva “lockean
proviso” de modo a atender o direito aos frutos de seu trabalho mas considerando
uma justificativa social: “Aquele que
pode assegurar seu bem estar com o que já foi obtido, não tem o que reclamar”.[3] Para Kant a propriedade legal é central para
a liberdade humana, uma propriedade que não se restringe a propriedade física
de objetos, capaz de maximizar a liberdade de todos os membros da sociedade
civil. Diderot, um dos autores da Enciclopédia
francesa, depois de explicar os danos causados aos autores e editores pelos
contrafatores de livros explica: “com efeito, que bem pode um homem possuir se
uma obra do espírito, fruto único de sua educação, de seus estudos, de suas
noites insones, de seu tempo, de suas pesquisas, de suas observações, se as
mais belas horas, os melhores momentos de sua vida, se seus próprios
pensamentos [...] não lhe pertencer ? [...] O autor é mestre de sua obra, ou
ninguém na sociedade é mestre de seu bem”.[4]
Ao traçar uma equivalência entre
trabalho com direitos de propriedade, Locke confere um status especial ao
trabalho intelectual uma vez que o trabalho envolve tanto músculos como a
mente: “A natureza nos fornece apenas com
o material, na sua grande parte rude e inadequado ao uso; este nos exige
trabalho, técnica e pensamento para adequar este material ás nossas
necessidades ... Aqui então está um grande campo para o conhecimento, próprio
para o uso e vantagem do homem neste mundo; ou seja, para encontrar novas
invenções para dar um propósito ou facilitar nosso trabalho, ou aplicar de forma
sagaz diversos agentes e materiais juntos, para procurar novas e benéficas
produções adequadas para os uso de forma a aumentar o estoque de nossas
riquezas, ou para melhor preservá-las: e para tais descobertas deste tipo a
mente humana é bem adequada”.[5] Segundo
Locke: “Podemos dizer que o trabalho de
seu corpo e a obra produzida por suas mãos são propriedade sua. Sempre que ele
tira um objeto do estado em que a natureza o colocou e deixou, mistura nisso o
seu trabalho e a isso acrescenta algo que lhe pertence, por isso o tornando sua
propriedade. Ao remover este objeto do estado comum em que a natureza o
colocou, através de seu trabalho adiciona-lhe algo que excluiu o direito comum
dos outros homens. Sendo este trabalho uma propriedade inquestionável do
trabalhador, nenhum homem, exceto ele, pode ter o direito ao que o trabalho lhe
acrescentou, pelo menos quando o que resta é suficiente aos outros, em
quantidade e em qualidade”.[6]
Na perspectiva de Locke a
natureza nos disponibiliza recursos comuns, de modo que o indivíduo que pelo
seu trabalho modifica a natureza, altera esta condição de propriedade comum
dando origem a direitos de propriedade. Para Merges o conceito de Locke de
recursos originais comuns se ajusta ao conceito de domínio público em
propriedade intelectual, ainda que nenhuma transformação da matéria esteja
envolvida neste último. O trabalho individual é o que transforma materiais do
domínio público em um produto criativo único. Tais conceitos aplicam-se a
propriedade inteletual na medida em que a informação embora fácil de ser
compartilhada, especialmente com a internet, continua sendo difícil de criar
informação nova e útil. Assim a teoria de Locke aplica-se igualmente a bens não
rivais, como a informação. O trabalho dirigido para um fim útil justifica a
apropriação privada e o escopo desta apropriação é determinado pela extensão do
trabalho. [7] Posner,
em uma crítica a Locke, destaca que diante do fato de que a criação é um
processo cumulativo coletivo não está claro em que grau a propriedade
intelectual pode realisticamente ser considerada o fruto exclusivo do trabalho
de seu criador.[8]
Para Ygor Valerio: “nem todos os bens
apropriados originariamente por meio de direitos de propriedade intelectual são
resultado de aposição de trabalho a objetos no estado em que a natureza os
colocou, havendo enorme parcela (a maioria, arriscamo-nos a dizer) que deriva
de reelaborações sobre objetos que não existem senão em razão do trabalho de
outro homem”.[9]
John Locke [10]
[1] MAY, Christopher; SELL, Susan. Intellectual Property
Rights: a critical history. Lynne Rjenner Publishers: London, 2006, p.20
[2]
MALAVOTA,Leandro Miranda. A construção do sistema de patentes no
Brasil: um olhar histórico, Rio de Janeiro:Lumen Juris, 2011, p. 21
[3] LOCKE, John. Two treatises concerning government,
Cambridge:Cambridge University Press, 1988, cf. MORRIS, Julian, Ideal Matter: a
globalização e o debate sobre a propriedade intelectual. Rio de
Janeiro:instituto Liberal, 2003 p.28
[4]
CHARTIER, Roger. Carta sobre o Comércio do Livro de Denis Diderot. Rio de
Janeiro:Casa da Palavra, 2002, p.68
[5] KING, Peter. The life and letters of John Locke, with
extracts from his journals and commonplace books: with a general índex. New
York:B. Franklin, 1972 cf. ROSEN, William. The most powerful idea in the world:
a story of steam, industry and invention. Randon House, 2010, p.
1245/6539 (kindle edition)
[6] LOCKE,
John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil e Outros Escritos. São Paulo: Editora Vozes, 1999. p.98-99 cf. VALERIO.
Ygor. Imperfeição
da teoria da apropriação laboral para as criações intelectuais – revisitando
John Locke, 2014,
http://www.migalhas.com.br/PI/99,MI212087,31047-Imperfeicao+da+teoria+da+apropriacao+laboral+para+as+criacoes
[7] MERGES, Robert. Justifying Intellectual Property,
Harvard University Press, 2011, p. 755/6102 (kindle version)
[8] LANDES, William; POSNER, Richard. The economic
structure of intellectual property law. Cambridge:Harvard University Press,
2003, p.4
[9]
VALERIO. Ygor. Imperfeição da teoria da apropriação laboral para as criações
intelectuais – revisitando John Locke, 2014,
http://www.migalhas.com.br/PI/99,MI212087,31047-Imperfeicao+da+teoria+da+apropriacao+laboral+para+as+criacoes
[10] https://pt.wikipedia.org/wiki/John_Locke
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