domingo, 8 de junho de 2014

A IP Clause e o direito de autor

Para Sean O’Connor[1] a cláusula constitucional que garante a proteção aos autores e inventores de seus textos e descobertas respectivamente (To promote the Progress of Science and useful Arts, by securing for limited Times to Authors and Inventors the exclusive Right to their respective Writings and Discoveries) para promover o progresso das ciências e artes úteis, tem origem do projeto de Encyclopédie francês do século XVIII que da mesma forma tinha como proposta a promoção das ciências e artes úteis.  A IP Clause, contudo, não faz referência direta a patentes e copyright, embora conhecidos à época pelos autores do texto, enquanto a referência a “artes úteis” parece pouco clara. A Suprema Corte em decisão de 2012 afirmou que o sentido deste termos na época é efetivamente oposto ao seu uso moderno.[2] O termo “descobertas” sugere um escopo maior do que o usual, incluindo teorias científicas e produtos tal qual encontrados na natureza como rochas e plantas. Por que os autores do texto preferiram um texto ambíguo como “descobertas” quando poderiam ter usado o termo “invenções” ?

Segundo Sean O’Connor a Constituição ao criar uma nova forma de governo tinha como objetivo o de não replicar o sistema britânico e portanto não há razões para supor que tenha sido inspirado no modelo inglês. A Encyclopédie de Diderot e d’Alembert descrevia a ciência e artes práticas como campos do conhecimento humano que podiam ser submetidos às formas objetivas de medição e passível do conceito de progresso, ao contrário de outros campos sujeito a uma avaliação subjetiva. Esta perspectiva de progresso do conhecimento, resultado da Revolução Científica do século XVII,  traz a perspectiva de um conhecimento que se acumula e que pode ser quantificado e catalogo de forma objetiva em uma grande enciclopédia. Neste sentido a obra francesa se referia a “descobertas” como a “mais importante das invenções” que não abrangia fatos já existentes tais como leis da natureza. Assim a Enciclopédia francesa se refere ao “gênio inventivo” de Descartes na matemática e a Newton como tendo “inventado o cálculo”, reservando o termos “descobertas” para as mais importantes invenções que podem ser graduadas: “em geral, este nome (descoberta) pode ser dado a qualquer coisa nova encontrada nas artes e ciências: contudo, o termo é raramente aplicado e não deve ser aplicado, exceto para aquilo que seja não apenas novo, mas também curioso, útil e difícil de se encontrar e que consequentemente tem um certo grau de importância. As descobertas menos importantes são simplesmente chamadas de invenções”. Tanto d’Alembert como Diderot ao codificar o conhecimento de mestres artesãos e suas técnicas buscavam elevar o conhecimento das artes úteis, trazendo este conhecimento para o domínio da ciência, o que segundo Sean Connor está nas origens do conceito de tecnologia. Joel Mokyr observa que a publicação da Encyclopédie associada com o Iluminismo, a Enciclopédia francesa de D’Alembert possuía numerosos artigos de matérias técnicas escritos  e ilustrados por artesãos altamente especializados e experientes em suas áreas tecnológicas.[3]

Os patriarcas fundadores dos Estados Unidos como Thomas Jefferson e Benjamin Franklin eram defensores incontestáveis da Encyclopédie e de seu espírito iluminista. James Madison um dos redatores da IP Clause não faz referência ao modelo inglês como inspiração para a cláusula. Autores como Mario Biagioli apontam o papel do documento de patente como informação tecnológica no sistema francês e norte americano na construção da cidadania sem contudo fazer uma conotação direta com o movimento enciclopedista. [4] Para Sean Connor uma das razões para o distanciamento ideológico dos legisladores e comentaristas da IP Clause à influência francesa foi o regime de terror que se instaurou na França alguns anos após a Revolução. Outra razão, é que superada a fase de independência norte americana já em 1790 se observam cada vez mais uma aproximação dos Estados Unidos com a Inglaterra, especialmente quando a França de Napoleão tornou-se a anátema do ideal de democracia liberal compartilhado por ingleses e norte americanos.

Os primeiros tratados de patentes e decisões da Suprema Corte tratam invenções e descobertas como sinônimos. Em Baker v. Selden por exemplo a Suprema Corte[5] distingue as artes úteis da ciência, esta representando apenas verdades contemplativas sobre o mundo. Em 1966 em Graham v. Deere se refere como passíveis de proteção por patentes apenas as artes úteis. Nos anos 1970 durante a reforma do sistema de copyright norte americano dois livros tiveram destaque em confirmar uma influência britânica na IP Clause: o livro de Bruce Bugbee, Genesis of American Patent and Copyright Law e o de Lyman Patterson, Copyright in Historical Perspective. Esta perspectiva amplia o escopo do copyright. Na perspectiva francesa da Encyclopédie havia uma distinção entre autores e escritores (a IP clause refere-se a autores) enquanto os escritores cuidam meramente da forma e estilo, cabem aos autores o conteúdo substantivo do texto, em geral com conotação científica, assim Voltaire são excelentes escritores enquanto Descartes e Newton autores famosos. 

Desta forma, para Sean Connor a IP Clause tinha em mente apenas a proteção da parte substantiva da informação, o que remeteria obviamente a trabalhos de cunho científico. Textos de ficção poderiam ser protegidos naquilo que contivessem de cunho substantivo. Isso explica o porque dos termos autor e inventor serem usados como sinônimos em muitos textos da época. A cláusula constitucional ao se referir a progresso no sentido da Encyclopédie remeteria apenas aquelas áreas do conhecimento quantificáveis, passíveis de um conhecimento objetivo. As demais áreas não estariam garantidas no plano federal mas poderiam ser protegidos pelas legislações estaduais como, por exemplo, foi o caso das gravações de áudio de trabalhos não publicados que até 1970 era protegidas apenas em alguns Estados. Se  intenção dos legisladores da cláusula constitucional fosse a de promover as criações como obras literárias e músicas, de cunho subjetivo, teriam optado no texto por fazer uma referência á promoção da cultura. Isto pode significar que partes importantes da lei de copyright atual dos Estados Unidos podem ser inconstitucionais, na medida em que protegem a expressão criativa de tais trabalhos.

Encyclopédie Francesa [6]





[1] CONNOR, Sean. The Overlooked French Influence on the Intellectual Property Clause, University of Washington School of Law Research Paper No. 2014-05, http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2409796
[2] Golan v. Holder, 132 S. Ct. 873 (2012).
[3] MOKYR, Joel. The European enlightment and the origin of modern economic growth. In: HORN, Jeff; ROSENBAND, Leonard; SMITH, Merritt Roe. Reconceptualizing the Industrial Revolution, London:MT Press, 2010, p.70
[4] Mario Biagioli, Patent Republic: Representing Inventions, Constructing Rights and Authors, 73 SOC. RES. 1129 (2006).
[5] 101 U.S. 99, 100-101, 105 (1879)
[6] http://pt.wikipedia.org/wiki/Encyclop%C3%A9die

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