sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Patente de métodos matemáticos

Uma invenção baseada em método matemático, para aplicação industrial e não meramente restrita ao campo da matemática pode ser patenteável. Uma equação que descreva um fenômeno da natureza não será patenteável por consistir uma descoberta, uma descrição de como “funciona” a natureza. A equação de Newton que afirma que a força é dada pelo produto da massa e aceleração de um corpo, por exemplo, apenas descreve algo do mundo físico e, portanto, não será patenteável, ainda que a natureza não se comporte exatamente conforme esta equação. Uma vez enquadrado o pedido e patente como teoria científica não compete ao examinador discutir com o requerente se a teoria apresentada está correta ou não. Em T 1538/05 o Boards of Appeal conclui que caracterizado como teoria científica, sem qual efeito técnico observável, não compete ao escritório de patentes analisar o mérito ou a veracidade da teoria, sendo tal discussão mais pertinente a forums acadêmicos. [1] Nicolas Binctin observa que as invenções fundamentadas em teorias matemáticas ou científicas podem ser patenteadas, uma vez que a exclusão se deve a teorias como tal, de modo que u método de criptografia pode ser considerado invenção.[2]
Uma invenção baseada em uma equação matemática que descreva o modo como se deva controlar a temperatura de um forno, levando-se em conta diversas variáveis, mostra a intervenção do homem sobre a natureza, sendo portanto passível de proteção por patentes. Por exemplo o PI0213904 refere-se a uma solução aquosa de formaldeído compreendendo formaldeído em forma de formaldeído monomérico, metileno glicol e polioximetileno glicóis em uma concentração total superior a 65 % em peso, caracterizada pelo fato de que a massa molar média dos polioximetileno glicóis, como uma função da concentração de formaldeído, é igual a ou inferior aos valores dados na equação XYZ: em que: m é a massa molar média, x é a concentração total de formaldeído em forma de formaldeído monomérico, metileno glicol e polioximetileno glicóis em % em peso (concentração total de formaldeído). A reivindicação apesar de citar textualmente uma equação matemática não se configura como método matemático, pois resolve um problema de natureza técnica na preparação de produtos de reação.
Mario Livio em “Deus é matemático” analisa se devemos considerar os métodos matemáticos como invenções, produtos da criação humana, ou descobertas. Mesmo teorias matemáticas antes tidas como meras abstrações acabam adquirindo aplicação prática, tal como erro com a teoria dos números que viria a ser aplicada por Clifford Cocks no desenvolvimento de algoritmos de criptografia. Mesmo a geometria euclidiana antes tida como representação inevitável da natureza em suas formas, teve de enfrentar o surgimento da geometria n-dimensional, dita não-euclidiana, criada por matemáticos como Lobachevsky  em 1850, que libertou os matemáticos das restrições de espaço tempo até então submetida. Outros pontos de ruptura com uma visão única de matemática foi o surgimento na primeira álgebra não comutativa proposta por Hamilton em 1843, o das lógicas multivalentes proposta por Lukasiewicz em 1921 e o paradoxo  na teoria dos conjuntos de Cantor. [3]
Henri Poincaré chegou a afirmar que os axiomas de geometria “não são nem intuições sintéticas a priori nem fatos experimentais. São convenções. Nossa escolha entre todas as convenções possíveis é guiada por fatos experimentais, mas ela permanece livre”. Nesta interpretação a matemática está muito mais próxima de uma invenção do que de uma descoberta. [4]  Segundo Howard Eves: “o postulado de Euclides, por exemplo, na medida em que tenta interpretar o espaço real, revela ter o mesmo tipo de validade da lei de queda livre dos corpos de Galileu; isto é, ambos são leis que decorrem da observação e ambos são suscetíveis de verificação dentro dos limites do erro experimental”. Ainda segundo o historiador Horward Eves, com a geometria não euclideana “a matemática despontou como uma criação arbitrária do espírito humano e não como algo necessariamente ditado a nós pelo mundo que vivemos”. Para o historiador Eric Bell “Da mesma maneira que um romancista cria personagens, diálogos e situações dos quais ele é, ao mesmo tempo, autor e senhor, o matemático inventa à vontade os postulados sobre os quais baseia seus sistemas matemáticos. Tanto o romancista como o matemático podem ser influenciados pelo meio ambiente na escolha e tratamento de seu material; mas nenhum deles é compelido por uma necessidade extra humana, eterna, a necessariamente criar certos personagens ou a inventar certos sistemas”.[5] James Maxwell referia-se ao trabalho de Fourier como “um grande poema matemático”.
O lógico norte americano Alonzo Church aprofunda a crítica na medida em que não somente os postulados da matemática são mutáveis como a própria lógica: “Não se atribui nenhum caráter de unicidade ou de verdade absoluta a qualquer sistema lógico particular. Os entes da lógica formal são abstrações criadas com o fito de descrever ou sistematizar fatos da experiência ou observação, e suas propriedades, delineadas aproximadamente pelo uso em vista, dependem do inventor para adquirir um caráter exato [...] Consequentemente pode haver, e realmente há, mais do que uma geometria suscetível de descrever o espaço físico. Analogamente existe, sem dúvida nenhuma, mais de uma lógica suscetível de ser usada e, de todas elas, uma pode ser mais agradável ou mais conveniente, mas não se pode dizer que esta seja certa e aquela errada”.[6]
Na sociologia de acordo com Paul Feyerabend, novas teorias na ciência devem ser aceitas não pelo fato de estarem de acordo com o método dito científico, mas porque seus proponentes podem fazer uso de qualquer artifício – racional, retóricos ou vulgares – no sentido de desenvolver sua causa. Para Paul Feyerabend a única possibilidade de progresso ocorre quando se admite que “todas as teorias valem”. [7] Para David Bloor, da Universidade de Edimburgo, Escócia, defensor de um “programa forte em sociologia das ciências”, esta análise que relativiza as “verdades da ciência” pode ser estendida também para domínios considerados inexpugnáveis, como o da matemática.
Para Mario Livio a matemática é uma combinação de invenções e descobertas: “os axiomas da geometria euclidiana como um conceito foram uma invenção assim como as regras de xadrez foram uma invenção. Os axiomas foram também suplementados por uma variedade de conceitos inventados, como triângulos, paralelogramos, elipses, a razão áurea e assim por diante. Os teoremas da geometria euclidiana, por outro lado, foram no geral descobertas, foram caminhos ligando os diferentes conceitos ... Tipicamente os conceitos foram invenções. Números primos como um conceito foram uma invenção, mas todos os teoremas sobre números primos foram descobertas[8]. Maria Livio utiliza o termos invenção para tudo o que é fruto da liberdade de criação do homem. Este não é o conceito de invenção que é empregado na lei de patentes. Nem todas as obras da criação do espírito humano são objeto de patente. Assim os exemplos citados por Mario Livio encontram-se excluídos da proteção patentária por falta de aplicação industrial.
O autor cita, contudo, um exemplo que pode se aplicar a distinção entre invenção e descoberta pela lei de patentes. Tanto a relatividade especial quanto a relatividade geral desenvolvidas por Einstein não são patenteadas por constituírem teorias científicas, uma das possíveis descrições do universo. O GPS utiliza tais teorias ao determinar a posição atual do receptor por meio da medição do tempo que leva um sinal eletromagnético de vários satélites chegar até ele e pela respectiva triangulação de posições de cada satélite. A relatividade especial nos informa que o tempo nestes satélites deve ser um pouco mais lento do que o registrado nos relógios no solo terrestre por conta de seu movimento relativo. A relatividade geral por outro lado prediz que os relógios dos satélites devam ser mais rápidos dos que os do solo por conta da curvatura espaço tempo resultante da massa da Terra ser menor na altitude dos satélites. Um sistema que leve em conta estes efeitos garante medições de posição mais precisas, o que de outra forma poderia levar a erros cumulativos de até 8 kilômetros por dia. Um sistema de sincronização de sistemas GPS que leve em conta tais efeitos é patenteado ao passo que qualquer pessoa continua livre para utilizar as mesmas teorias relativísticas para outras aplicações.[9]
O parecer do pedido PI9407646 sintetiza os argumentos para patenteabilidade de métodos matemáticos. O pedido trata de processo computadorizado para otimização de gastos e a taxa de crescimento em criaturas vivas tomando por base curvas de Gompertz que levam em conta múltiplos parâmetros (genéticos e não genéticos). O parecer conclui: “Uma invenção relativa a programa de computador cuja novidade está na utilização de um método matemático para solução de um problema será considerado invenção desde que a invenção como um todo traga a solução de um problema técnico, isto é, um problema que não seja puramente matemático. Um programa de computador que implemente um método matemático, tal como um método de solução de equações, por exemplo, não será considerado invenção pois se trata de um problema de matemática pura, isto é, o estudo das propriedades das grandezas em abstrato. Para tal criação ser considerada invenção é necessário que tal algoritmo matemático seja aplicado em determinado campo da prática, isto é, fora do universo da matemática propriamente dito. A requerente procede em seu argumento, de que no presente caso, há a aplicação de um modelo matemático para um problema de ordem prática, e não meramente matemática”.

Alonso Chuch [10]


[1] Case Law of the Boards of Appeal of the European Patent Office Sixth Edition July 2010, p. 12 http://www.epo.org/law-practice/case-law-appeals/case-law.html
[2] BINCTIN, Nicolas. Droit de la propriété intellectuelle, LGDJ:Paris, 2012, p.297
[3] EVES, Howard. Introdução à história da matemática, São Paulo. Ed. Unicamp, 2004, p.555
[4] Deus é matemático. Mario Livio, Rio de Janeiro:Record, 2010, p.190
[5] EVES, Howard. Introdução à história da matemática, São Paulo. Ed. Unicamp, 2004, p.528, 545
[6] EVES, Howard. Introdução à história da matemática, São Paulo. Ed. Unicamp, 2004, p.671
[7] http://pt.wikipedia.org/wiki/Paul_Feyerabend
[8] LIVIO, Mario. op.cit. p.275
[9] LIVIO, Mario. op.cit. p.257
[10] www.educ.fc.ul.pt

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