quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Função social da propriedade e as raízes positivistas

O termo “função social da propriedade” foi utilizado por Auguste Comte, em 1851, fundador da teoria positivista, onde condenou os excessos capitalistas e as utopias socialistas, defendendo uma função social da propriedade[1]: “O positivismo está duplamente empenhado em sistematizar o princípio da função social, que trata da natureza social da propriedade e sobre a necessidade de regulá-la[2]. Para Auguste Comte o saber filosófico tem como alicerce as ciências positivas, baseada na aversão de quaisquer formas de conhecimento a prior, isto é, não resultantes da experiência. A filosofia coloca-se à serviço da ciência, cujos resultados deve unificar e completar. Para Comte “a noção de direito deve desaparecer do domínio político, com a noção de causa do domínio filosófico [...] O positivismo não admite nunca senão deveres de todos para com todos; pois que seu ponto de vista sempre social não pode comportar nenhuma noção de direito, constantemente fundada na individualidade”. [3]
Coube ao francês Leon Duguit, desenvolver a tese de que o direito do proprietário é limitado pela missão social que possui. [4] Leon Duguit destaca o papel da sociologia jurídica, seguindo Émile Durkheim para o qual no plano metodológico, os fatos sociais devam ser estudados segundo os mesmos processos seguidos pelas ciências físico naturais, o que se integra a uma perspectiva positivista inspirada por Auguste Comte. Para León Duguit a solidariedade deve ser entendida como fundamento do Direito, ou seja, a interdependência entre os diferentes seres humanos. Suas conclusões não se fundamentam em qualquer metafísica, mas na base experimental que nos leva a concluir que a norma jurídica como toda normal social é o produto do fato social.[5] Na doutrina francesa Renouard e Nicolas Binctin destacam que uma criação tecnológica tem uma função muito importante quanto ao progresso social e ao bem estar, tal progresso deve beneficiar uma grande parte da população.[6]
Segundo Leon Duguit: “A propriedade repousa exclusivamente na utilidade social e não deve existir senão na medida desta utilidade social. O legislador pode, portanto, aportar à propriedade individual todas as restrições para que cumpra as demandas sociais correspondentes. A propriedade não é um direito intangível sagrado, mas inspirada nas necessidades sociais as quais deve responder. Se chega um momento em que a propriedade já não corresponde a uma necessidade social, o legislador deve intervir para organizar uma outra forma de apropriação da riqueza”. [7]
No Brasil os juristas Tobias Barreto, Sílvio Romero constituem o núcleo do pensamento da chamada Escola do Recife do século XIX, ambos positivistas pioneiros no Brasil que destacam o papel da sociologia enquanto ciência no universo jurídico. Com a década de 1870 “um bando de ideias novas” nas palavras de Silvio Romero entre as quais o positivismo, influenciavam atividade a intelectualidade brasileira. [8] Imbuídos deste papel perante a sociedade o direito sob influencia de teses como o positivismo e sua perspectiva evolutiva da sociedade tinha como meta ajudar a descobrir as leis que presidem a evolução da humanidade e da civilização.[9] Na Alemanha uma decisão da Corte Superior de Justiça em 1996 decidiu que a patente não pode ser um empecilho  para o desenvolvimento da pesquisa. [10]
Para Sean O’Connor[11] a cláusula constitucional que garante a proteção aos autores e inventores de seus textos e descobertas respectivamente (To promote the Progress of Science and useful Arts, by securing for limited Times to Authors and Inventors the exclusive Right to their respective Writings and Discoveries) para promover o progresso das ciências e artes úteis, tem origem do porjeto de Encyclopédie francês do século XVIII que da mesma forma tinha como proposta a promoção das ciências e artes úteis. Segundo Sean O’Connor a Constituição ao criar uma nova forma de governo tinha como objetivo o de não replicar o sistema britânico e portanto não há razões para supor que tenha sido inspirado no modelo inglês. A Encyclopédie de Diderot e d’Alembert descrevia a ciência e artes práticas como campos do conhecimento humano que podiam ser submetidos às formas objetivas de medição e passível do conceito de progresso, ao contrário de outros campos sujeito a uma avaliação subjetiva. Esta perspectiva de progresso do conhecimento, resultado da Revolução Científica do século XVII, traz a perspectiva de um conhecimento que se acumula e que pode ser quantificado e catalogo de forma objetiva em uma grande enciclopédia. Neste sentido a obra francesa se referia a “descobertas” como a “mais importante das invenções” que não abrangia fatos já existentes tais como leis da natureza. 
Assim a Enciclopédia francesa se refere ao “gênio inventivo” de Descartes na matemática e a Newton como tendo “inventado o cálculo”, reservando o termos “descobertas” para as mais importantes invenções que podem ser graduadas: “em geral, este nome (descoberta) pode ser dado a qualquer coisa nova encontrada nas artes e ciências: contudo, o termo é raramente aplicado e não deve ser aplicado, exceto para aquilo que seja não apenas novo, mas também curioso, útil e difícil de se encontrar e que consequentemente tem um certo grau de importância. As descobertas menos importantes são simplesmente chamadas de invenções”. Tanto d’Alembert como Diderot ao codificar o conhecimento de mestres artesãos e suas técnicas buscavam elevar o conhecimento das artes úteis, trazendo este conhecimento para o domínio da ciência, o que segundo Sean Connor está nas origens do conceito de tecnologia. Joel Mokyr observa que a publicação associada com o Iluminismo, a Enciclopédia francesa de D’Alambert possuía numerosos artigos de matérias técnicas escritos e ilustrados por artesãos altamente especializados e experientes em suas áreas tecnológicas.[12]
Os patriarcas fundadores dos Estados Unidos como Thomas Jefferson e Benjamin Franklin eram defensores incontestáveis da Encyclopédie e de seu espírito iluminista. James Madison um dos redatores da IP Clause não faz referência ao modelo inglês como inspiração para a cláusula. Autores como Mario Biagioli apontam o papel do documento de patente como informação tecnológica no sistema francês e norte americano na construção da cidadania sem contudo fazer uma conotação direta com o movimento enciclopedista. [13] John Adams contudo observa que a difusão do conteúdo do relatório descritivo das patentes na França será bastante restrita e não será senão na reforma da lei de 7 de abril de 1902 que estas estarão disponíveis na forma manuscrita no escritório de patentes onde foi originalmente depositada. Cópias de tais documentos poderiam ser entregues apenas após a patente ter sido expirada.[14]
Para Sean Connor uma das razões para o distanciamento ideológico dos legisladores e comentaristas da IP Clause à influência francesa foi o regime de terror que se instaurou na França alguns anos após a Revolução. Outra razão, é que superada a fase de independência norte americana já em 1790 se observam cada vez mais uma aproximação dos Estados Unidos com a Inglaterra, especialmente quando a França de Napoleão tornou-se a anátema do ideal de democracia liberal compartilhado por ingleses e norte americanos.
Auguste Comte [15]




[1] GRAU, Eros Roberto. Função Social da Propriedade (Direito econômico). Enciclopédia do Direito. vol. 39, p. 17-27, São Paulo: Saraiva, 1979
[2] COMTE, Auguste. Teoria Positivista: Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1989.
[3] Catecismo positivista. COMTE. Curso de filosofia positiva, São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 279
[4] DUGUIT, Leon. Fundamentos do Direito. São Paulo: Ícone, 1996
[5] REALE, Miguel Filosofia do direito, São Paulo:Saraiva, 1993, p.440
[6] BINCTIN, Nicolas. Droit de la propriété intellectuelle, LGDJ:Paris, 2012, p.41; RENOUARD, Augustin. Du droit industriel dans sés reports avec les principes du droit civil sur les personnes et sur les choses. Guillaumin, Paris, 1860, p.406
[7] DUGUIT, Léon. Traité de droit constitucionnel: v.3, Paris: Ancienne Librairie Fontemoing & Cia., 1923, p. 618 cf. SCUDELER, Marcelo. Patentes e sua função social. Piracicaba, 2006 Dissertação de mestrado do Programa de pós graduação em Direito, Universidade Metodista de Piracicaba.
[8] SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930, São Paulo: Cia das Letras, 1993, p.194
[9] SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930, São Paulo: Cia das Letras, 1993, p.231
[10] SICHEL, Ricardo Luiz. Propriedade intelectual: uma política de Estado, Rio de Janeiro:GZ Editora, 2014, p.42
[11] CONNOR, Sean. The Overlooked French Influence on the Intellectual Property Clause, University of Washington School of Law Research Paper No. 2014-05, http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2409796
[12] MOKYR, Joel. The European enlightment and the origin of modern economic growth. In: HORN, Jeff; ROSENBAND, Leonard; SMITH, Merritt Roe. Reconceptualizing the Industrial Revolution, London:MT Press, 2010, p.70
[13] Mario Biagioli, Patent Republic: Representing Inventions, Constructing Rights and Authors, 73 SOC. RES. 1129 (2006).
[14] ADAMS, John. History of the patent system. In: TAKENAKA, Toshiko. Patent law and theory: a handbook of contemporary research,Cheltenham:Edward Elgar, 2008, p.128
[15] https://pt.wikipedia.org/wiki/Auguste_Comte

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