segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Problemas de tradução em acordos internacionais

Artigo 23b TRIPs

Segundo o Artigo 23.3.b de TRIPs “Os Membros também podem considerar como não patenteáveis plantas e animais, exceto micro-organismos e processos essencialmente biológicos para a produção de plantas ou animais, excetuando-se os processos não-biológicos e microbiológicos”. No inglês: “Members may also exclude from patentability: plants and animals other than micro-organisms, and essentially biological processes for the production of plants or animals other than non-biological and microbiological processes”. Segundo a FGV: “A versão em português [do Artigo 27.3 (b) de TRIPs] se equivoca ao colocar a vírgula após “animais” e não após “micro-organismos”. Essa alteração resulta na exclusão dos micro-organismos e processos essencialmente biológicos da categoria plantas e animais. Nesse sentido, a versão traduzida leva ao entendimento de que o TRIPS não concede a possibilidade aos Membros de considerar como não patenteáveis os processos essencialmente biológicos. O que o artigo estipula, em verdade, é que os Membros podem considerar como não patenteáveis plantas e animais, com exceção dos micro-organismos, ou seja, os micro-organismos não poderão ser incluídos nesta possibilidade de não patenteabilidade. Já os procedimentos essencialmente biológicos devem ter o mesmo tratamento dado às plantas e animais, e não serem excepcionados como os micro-organismos”.[1]

 

Artigo 27.2 TRIPs

Members may exclude from patentability inventions, the prevention within their territory of the commercial exploitation of which is necessary to protect ordre public or morality, including to protect human, animal or plant life or health or to avoid serious prejudice to the environment, provided that such exclusion is not made merely because the exploitation is prohibited by their law
Daniel Gervais chama a atenção que o texto do Artigo 27.2 de TRIPS faz referência a “public order or morality” o que seria uma tradução inapropriada do francês “ordre public” que tem outro sentido.[2] O termo em françês se aproxima mais de “public policy” ou seja, “política pública”. Enquanto “public order” ou “ordem pública” que consta do Artigo 18 da LPI e da tradução em português do TRIPS significa a manutenção da segurança pública, o termo francês “ordre public” diz respeito a um conceito mais amplo, aos fundamentos que não podem ser derrogados sob risco de ameaçar a estabilidade das instituições de uma dada sociedade. Segundo a FGV “A expressão “ordem pública” empregada na tradução em português deve ser lida com a carga axiomática da expressão em francês “ordre public”, por mais que se possa literalmente apresentar uma tradução.[3]

Artigo 53b EPC

European patents shall not be granted in respect of:  (b) plant or animal varieties or essentially biological processes for the production of plants or animals; this provision shall not apply to microbiological processes or the products thereof
A versão da EPC em alemão teve a redação do Artigo 53(b) modificada substituindo o termo Tierarten na EPC1973 (espécie animal) para Tierrassen (raças animais), uma vez que o primeiro termo tinha um significado mais restrito que o termo em inglês animal varieties, gerando problemas de interpretação uma vez que tanto o inglês como o alemão são idiomas oficiais da EPC. A expressão “animal varieties[4] assim como o termo em francês “races animales” referem-se somente a subespécies, ao passo que o termo em alemão “Tierarten” refere-se a espécie animal inteira[5]. Assim, podem ser concedidas, por exemplo, patentes para animais produzidos por um processo microbiológico, ainda que este termo não esteja definido na EPC.[6] Pollaud Dulian observa que as raças animais na linguagem científica significam uma subdivisão da espécie. Vetar patentes para animais poderia significar uma restrição excessiva. Embora a expressão <race animale> (Artigo 4º da Diretiva de Biotecnologia Europeia 44/98/CE)[7] seja imprecisa, ela admite a patenteabilidade de animais obtidos por processos não essencialmente biológicos. As patentes relativas a animais são patenteáveis se estas não estão tecnicamente limitadas a uma raça animal específica.[8] De qualquer forma a Diretiva Europeia 98/44/CE permite a possibilidade de rejeitar patentes de animais quando isto for contrário à ordem pública e as boas maneiras.

Artigo 4G - CUP

O conceito de unidade de invenção está presente no artigo 4G da CUP: “Se o exame revelar que um pedido de patente é complexo poderá o requerente dividir num certo número de pedidos divisionários, cada um dos quais conservará a data do pedido inicial e, se for o caso, o benefício do direito de prioridade”. Segundo Bodenhausen “Pode ocorrer, de acordo com a legislação do país em que se efetue o exame, que se considere que um pedido de patente é complexo por razões distintas da falta de unidade de invenção, por exemplo, porque contém uma combinação proibida de reivindicações para fabricação e utilização do mesmo objeto inventado. Em tais casos se aplica igualmente o artigo 4G, embora provavelmente este seja utilizado com mais frequência nos casos em que o pedido tenha mais de uma invenção”. [9]
Segundo o artigo 22 da LPI “o pedido de patente de invenção terá de se referir a uma única invenção ou a um grupo de invenções inter-relacionadas de maneira a compreenderem um único conceito inventivo”, o que sugere que uma vez o exame tendo identificado falta de unidade de invenção o depositante terá oportunidade para dividir seu pedido conforme artigo 35 da LPI. No entanto, esta não é a única possibilidade em que o INPI pode emitir parecer técnico relativo a divisão do pedido, uma vez que a LPI não define as situações em que o INPI pode fundamentar um pedido de divisão. O Ato Normativo nº 127/97 de 5 de março de 1997 no item 6 prevê que esta situação possa ocorrer “quando o exame técnico revelar que o pedido é complexo ou que contém um grupo de invenções que compreendem mais de um conceito inventivo, ou mais de um modelo de utilidade”. Na Instrução Normativa nº 30/2013 de 4 de dezembro de 2013, contudo, este trecho do Ato Normativo nº 127/97 foi reescrito como “quando o exame técnico revelar que o pedido contém um grupo de invenções que compreendem mais de um conceito inventivo, ou mais de um modelo de utilidade”. Já não há mais referência a possibilidade do INPI fundamentar uma solicitação de divisão de pedido com base no pedido ser complexo. Como a CUP deixa para as legislações nacionais a definição das condições em que se pode solicitar ao depositante a divisão do pedido, não há qualquer contradição com a CUP seja no Ato Normativo nº 127/97 ou na Instrução Normativa nº 30/2013 apenas que esta última aceita como única justificativa para o INPI solicitar a divisão do pedido o fato do pedido não ter unidade de invenção.
Nuno Carvalho observa que a tradução da CUP ao português presente no Decreto n.º 75572 de 8 de abril de 1975 refere-se a “que um pedido de patente é complexo” quando o texto do artigo 4g da CUP em inglês refere-se a “a patent contains more than one invention”. No entanto no texto autêntico em francês o mesmo trecho refere-se a “Si l’examen révèle qu’une demande de brevet est complexe”, ou seja, o decreto brasileiro traduziu corretamente a partir do texto autêntico em francês[10]. Bodenhausen já em 1969 observava que esta tradução para o inglês não é muito precisa porque um pedido pode ser complexo por razões outras que não a falta de unidade de invenção, por exemplo a complexidade do quadro reivindicatório. Para Nuno Carvalho o termo “complexo” pode se referir a complexidade técnica da invenção o não está de acordo com o sentido original do texto da CUP.[11] No entanto, no âmbito jurídico encontramos o significado do termo como representando algo que abranja duas tecnologias distintas e talvez tenha sido essa a razão do uso desta palavra. O Código de Processo Civil no artigo 431B[12] estabelece que “tratando-se de perícia complexa, que abranja mais de uma área de conhecimento especializado, o juiz poderá nomear mais de um perito e à parte indicar mais de um assistente técnico[13]. Na França Pollaud Dulian também observa que para pedidos de patentes complexos (demande complexe) podem ensejar a divisão do mesmo.[14] A legislação francesa se refere à unidade de invenção no artigo L.612-4 a qual Schmidt Szalewski associa a pedidos complexos com base na jurisprudência, embora o julgados citados que utilizam tal expressão sejam decisões de 1901[15] e de 1879[16]. A Corte francesa se refere a patente com o “vício da complexidade (le vice de complexité)” embora esta não seja considerada uma causa para nulidade da patente.






[1] FGV, Projeto releitura dos acordos da OMC, 2012 capítulo 15. Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS) http://ccgi.fgv.br/node/132
[2] TRIPS 27.2 Members may exclude from patentability inventions, the prevention within their territory of the commercial exploitation of which is necessary to protect ordre public or morality, including to protect human, animal or plant life or health or to avoid serious prejudice to the environment, provided that such exclusion is not made merely because the exploitation is prohibited by their law
[3] FGV, Projeto releitura dos acordos da OMC, 2012 capítulo 15. Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS), p.95 http://ccgi.fgv.br/node/132
[4] http://www.epo.org/law-practice/legal-texts/html/epc/1973/e/ar53.html
[5] CORNISH, William, LLEWELYN, David. Intellectual property: patents, copyright, trademarks and allied rights. London: Sweet&Maxwell, 2007. p. 228
[6] Case Law of the Boards of Appeal of the European Patent Office Sixth Edition July 2010, p. 44 http://www.epo.org/law-practice/case-law-appeals/case-law.html
[7] http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:31998L0044&from=PT
[8] POLLAUD-DULIAN, Frédéric , Propriété intellectuelle. La propriété industrielle, Economica:Paris, 2011, p.156
[9] BODENHAUSEN, Guia para la aplicacion del Convenio de Paris para la proteccion de la propriedad industrial revisado em Estocolmo, 1967, WIPO:Genebra, 1969 http://www.wipo.int/edocs/pubdocs/en/intproperty/611/wipo_pub_611.pdf
[10] http://www.wipo.int/wipolex/en/wipo_treaties/details.jsp?treaty_id=2
[11] CARVALHO, Nuno. A estrutura dos sistemas de patentes e de marcas: passado. presente e futuro. Rio de Janeiro:Lumen Juris, 2009, p.93
[12] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5869.htm
[13] O escopo da prova pericial e critérios para a escolha do perito, Alexandre Freitas Câmara, In: Revista da ABPI,n.89, jul/ago 2007, p.17 Lei No 5.869, de 11/01/1973 que Institui o Código de Processo Civil, incluído pela Lei nº 10.358, de 2001, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L5869compilada.htm
[14] POLLAUD-DULIAN, Frédéric , Propriété intellectuelle. La propriété industrielle, Economica:Paris, 2011, p.261
[15] Cons. d’État, 5 agosto 1901 cf. SZALEWSKI,J.Schmidt; PIERRE,J.L. Droit de la propriete industrielle,Paris:Litec, 1996, p.59
[16] Cons. d’État, 12 agosto 1879 cf. CHAVANNE, Albert; BURST, Jean-Jacques; Droit de la Propriété Industrielle, Précis Dalloz:Paris,1976, p.47

2 comentários:

  1. Parabéns pelo blog e pelas postagens! Excelentes! Aliás, parabéns por todo o seu trabalho de disseminação de temas relacionados à PI. Esse tema, especificamente, é muito importante e atual. Como sabes, boa parte dos problemas que giram em torno da implementação da Patente Unitária Europeia dizem respeito à tradução.

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  2. obrigado, um tema que merece mais estudos. Sucesso no trabalho

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