Rogério Cerqueira Leite:
“A descoberta da vacina anti-rábica por Pasteur pode ser atribuída ao grande
homem e seu pequeno grupo de assistentes [...]. No futuro, se uma vacina contra
a Aids vier a ser descoberta, será o produto do esforço de milhares de grupos
que através de publicações, simpósios e dezenas de outras ferramentas de trocas
intelectuais constroem e compartilham de imenso arsenal de informações e
ideias. [...] Hoje, a invenção é sempre o resultado de um trabalho coletivo.
[...] Portanto, o argumento inicial da concessão do monopólio como estimulo
individual à pesquisa não prevalece em nossos tempos. [...] O progresso técnico
é inibido pelo sistema de patentes. [...] O sistema de patentes contribui para
o aumento das diferenças dos graus de riqueza entre nações.” [1]. Tanto a ciência como a tecnologia podem ser
vistas como uma construção coletiva. Newton em carta escrita a seu inimigo
Robert Hooke em 1675 declara que se pode ver mais longe, é porque pode se
colocar de pé sob os ombros de gigantes. [2]
Walter Isaacson em sua história da computação conclui que a invenção do
computador deve ser entendida como uma criação coletiva: “se você gostar da ideia romântica de inventores solitários e se
preocupar menos com quem teve mais influência sobre o progresso posterior da
computação, pode colocar Atanasoft e Zuse mais no alto. Mas a principal lição a
ser aprendida com o nascimentos dos computadores é que a inovação normalmente é
um esforço coletivo, que envolve a colaboração entre visionários e
engenheiros,e que a criatividade vem do aproveitamento de muitas fontes”.[3]
A tendência de destacar o papel coletivo da criação se reforça com o papel de
maior destaque da P&D nos laboratórios de pesquisa das grandes corporações.
Segundo o historiador da computação Kurt
Beyer: “o locus da inovação tecnológica,
de acordo com a IBM, era a corporação. O mito do inventor solitário radical
trabalhando no laboratório ou no porão era substituído pela realidade de
equipes anônimas de engenheiros da organização contribuindo com avanços
incrementais”.[4]
Gama Cerqueira responde a este argumento: “Não se
contesta que em toda invenção há uma parte não original, que lhe serve de
suporte; mas o direito do inventor não recai sobre aquilo que já pertence ao
domínio comum, senão apenas sobre a sua criação, isto é, sobre a inovação por
ele realizada”. Da mesma forma não se pode dizer que as invenções sejam
mero produto das condições sociais e que dadas certas circunstâncias elas se
realizariam de modo inequívoco: “os conhecimentos acumulados pela cultura e
pela técnica encontram-se à disposição de todos os indivíduos, e, repetimos,
poucos são os que inventam” [5]. Para Gama Cerqueira desconhecer o direito do
inventor aos frutos de seu trabalho seria “aniquilar o espírito inventivo,
que a experiência tem demonstrado ser essencial ao progresso social”.
O inglês Oliver Lodge
desenvolveu um aparelho para detecção de ondas de rádio, previstas pelo alemão
Heinrich Hertz, utilizando um dispositivo no receptor chamado de coesor inventado
por Edouard Branly em 1890 (um tubo de vidro cheio de limalha de ferro capaz de
se agrupar, e assim alterar sua resistência elétrica, quando da presença de
ondas de rádio) tendo realizado uma apresentação pública no Royal
Institution em 1894. Ele transmitiu
sinais de rádio em 14 de agosto de 1894 em um encontro da Associação Britânica
para o Avanço da Ciência na Universidade de Oxford, um ano antes de Guglielmo
Marconi, mas um ano após Nikola Tesla. Em seu início havia um grande descrédito
das perspectivas das ondas eletromagnéticas como meios de comunicação. Marconi
começou suas experiências com ondas de rádio em 1890 logo após a descoberta de
Henrich Hertz que preveniu Marconi que suas experiências estavam destinadas ao
fracasso e que eram perda de tempo. Lord Kelvin aconselhou ao físico Ernest Rutherford
em início de carreira a que não investisse nas ondas hertezianas por não visualizar
qualquer aplicação prática das mesmas sugerindo a pesquisa em radioatividade.[6]
Mesmo tendo patenteado sua invenção Lodge não fez o enforcement da mesma.[7]
Sua patente US609154 referente a telegrafia sem fio utilizando a bobina de
Ruhmkorff ou Tesla como transmissor e o coesor de Branly como detetor, a
patente de "sintonização" de agosto de 1898 foi vendida a Marconi em
1912.[8]
Roger Cullis aponta o fato de que a Inglaterra detinha o controle das
transmissões por cabo submarino assim como os correios detinham o monopólio das
comunicações telegráficas e telefônicas pelo Telegraph Act de 189 de forma que
não havia grande interesse pela tecnologia de transmissão sem fio. [9]
O russo Alexander Popov
implementou no coesor um pequeno badalo, que batia levemente na limalha de
ferro do coesor, preparando assim o dispositivo automaticamente para novas
recepções e realizou experiências de transmissão por rádio, bem sucedidas junto
a Sociedade Físico Química Russa em 1895. [10] O indiano Chandra Bose,
aperfeiçoou o coesor utilizando mercúrio, em 1899. Utilizando o coesor de Lodge
e Popov, Marconi incorporou uma placa de metal afixada à ponta do coesor de
modo a melhorar a recepção dos sinais, constituindo uma antena, que permitiu a
transmissão de sinais a grandes distâncias, culminando com o envio de sinais de
rádio da Europa aos Estados Unidos em 1901, desta vez já utilizando o coesor de
Bose. Em 1900 Marconi depositou a patente GB7777 para um rádio com sintonia,
capaz de selecionar os sinais de rádio a serem recebidos, garantindo assim a
possibilidade de múltiplas transmissões simultâneas. Esta técnica já havia
sido, contudo, patenteada pelo croata Nikola Tesla em 1897.
Usando uma tecnologia
distinta, sem o emprego do coesor, mas o centelhamento de uma bobina de
RuhmKoff, o padre brasileiro Landell de Moura [11] conseguiu transmitir sinais de voz (e não
apenas telegrafia como a experiência de Marconi em 1901) em uma exibição
realizada na Avenida Paulista, em São Paulo em 1900 e solicitou patente nos
Estados Unidos dois anos após (US775337). Diante de tantas
invenções complementares é difícil determinar quem é o inventor do rádio, uma
vez que a mesma palavra é empregada para descrever equipamentos de
características distintas, contudo, o sistema de patentes não se ocupa disto,
mas permite a concessão da proteção para cada um destes aperfeiçoamentos [12]. O fato de haver tantos aperfeiçoamentos de
uma tecnologia não inviabiliza o reconhecimento de cada contribuição individual
e desta forma a concessão de patentes.
[1] Dossiê das Patentes: uma análise do projeto n.824 do Governo
Federal sobre a questão da propriedade industrial, Forum pela Liberdade do
uso do Conhecimento, jun. 1992, http: //www.dieese.org.br/cedoc/004732.pdf.
[2] MAY, Christopher; SELL, Susan.
Intellectual Property Rights: a critical history. Lynne Rjenner
Publishers: London, 2006, p.25
[3]
ISAACSON, Walter. Os inovadores: uma biografia da revolução digital, São Paulo:
Cia das Letras, 2014, p. 97
[4]
ISAACSON, Walter. Os inovadores: uma biografia da revolução digital, São Paulo:
Cia das Letras, 2014, p. 103
[5] CERQUEIRA, Gama. Tratado da Propriedade Industrial, Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2010. v.1, p. 133.
[6]
READERS'S DIGEST, História dos grandes inventos, Portugal, 1983, p.62
[7] CULLIS, Roger. Patents, inventions
and the dynamics of innovation: a multidisciplinary study, Edgard Elgar, 2007,
p.49
[8]
http://pt.wikipedia.org/wiki/Oliver_Lodge
[9] CULLIS, Roger. Patents, inventions
and the dynamics of innovation: a multidisciplinary study, Edgard Elgar, 2007,
p.88, 151
[10] CAMP, Sprague. A
história secreta e curiosa das grandes invenções.Rio de Janeiro:Lidador, 1964,
p. 318
[11] http: //www.redetec.org.br/inventabrasil/lande.htm.
[12] ROTHMAN, Tony. Tudo é relativo e outras fábulas da ciência e
da tecnologia. São Paulo: Difel, 2005 p. 205.
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