sábado, 11 de abril de 2015

Invenção coletiva: é justo conceder uma patente ?

Rogério Cerqueira Leite: “A descoberta da vacina anti-rábica por Pasteur pode ser atribuída ao grande homem e seu pequeno grupo de assistentes [...]. No futuro, se uma vacina contra a Aids vier a ser descoberta, será o produto do esforço de milhares de grupos que através de publicações, simpósios e dezenas de outras ferramentas de trocas intelectuais constroem e compartilham de imenso arsenal de informações e ideias. [...] Hoje, a invenção é sempre o resultado de um trabalho coletivo. [...] Portanto, o argumento inicial da concessão do monopólio como estimulo individual à pesquisa não prevalece em nossos tempos. [...] O progresso técnico é inibido pelo sistema de patentes. [...] O sistema de patentes contribui para o aumento das diferenças dos graus de riqueza entre nações.” [1]. Tanto a ciência como a tecnologia podem ser vistas como uma construção coletiva. Newton em carta escrita a seu inimigo Robert Hooke em 1675 declara que se pode ver mais longe, é porque pode se colocar de pé sob os ombros de gigantes. [2] Walter Isaacson em sua história da computação conclui que a invenção do computador deve ser entendida como uma criação coletiva: “se você gostar da ideia romântica de inventores solitários e se preocupar menos com quem teve mais influência sobre o progresso posterior da computação, pode colocar Atanasoft e Zuse mais no alto. Mas a principal lição a ser aprendida com o nascimentos dos computadores é que a inovação normalmente é um esforço coletivo, que envolve a colaboração entre visionários e engenheiros,e que a criatividade vem do aproveitamento de muitas fontes”.[3] A tendência de destacar o papel coletivo da criação se reforça com o papel de maior destaque da P&D nos laboratórios de pesquisa das grandes corporações. Segundo o historiador  da computação Kurt Beyer: “o locus da inovação tecnológica, de acordo com a IBM, era a corporação. O mito do inventor solitário radical trabalhando no laboratório ou no porão era substituído pela realidade de equipes anônimas de engenheiros da organização contribuindo com avanços incrementais”.[4]

Gama Cerqueira responde a este argumento: “Não se contesta que em toda invenção há uma parte não original, que lhe serve de suporte; mas o direito do inventor não recai sobre aquilo que já pertence ao domínio comum, senão apenas sobre a sua criação, isto é, sobre a inovação por ele realizada”. Da mesma forma não se pode dizer que as invenções sejam mero produto das condições sociais e que dadas certas circunstâncias elas se realizariam de modo inequívoco: “os conhecimentos acumulados pela cultura e pela técnica encontram-se à disposição de todos os indivíduos, e, repetimos, poucos são os que inventam” [5]. Para Gama Cerqueira desconhecer o direito do inventor aos frutos de seu trabalho seria “aniquilar o espírito inventivo, que a experiência tem demonstrado ser essencial ao progresso social”.

O inglês Oliver Lodge desenvolveu um aparelho para detecção de ondas de rádio, previstas pelo alemão Heinrich Hertz, utilizando um dispositivo no receptor chamado de coesor inventado por Edouard Branly em 1890 (um tubo de vidro cheio de limalha de ferro capaz de se agrupar, e assim alterar sua resistência elétrica, quando da presença de ondas de rádio) tendo realizado uma apresentação pública no Royal Institution em 1894.  Ele transmitiu sinais de rádio em 14 de agosto de 1894 em um encontro da Associação Britânica para o Avanço da Ciência na Universidade de Oxford, um ano antes de Guglielmo Marconi, mas um ano após Nikola Tesla. Em seu início havia um grande descrédito das perspectivas das ondas eletromagnéticas como meios de comunicação. Marconi começou suas experiências com ondas de rádio em 1890 logo após a descoberta de Henrich Hertz que preveniu Marconi que suas experiências estavam destinadas ao fracasso e que eram perda de tempo. Lord Kelvin aconselhou ao físico Ernest Rutherford em início de carreira a que não investisse nas ondas hertezianas por não visualizar qualquer aplicação prática das mesmas sugerindo a pesquisa em radioatividade.[6] Mesmo tendo patenteado sua invenção Lodge não fez o enforcement da mesma.[7] Sua patente US609154 referente a telegrafia sem fio utilizando a bobina de Ruhmkorff ou Tesla como transmissor e o coesor de Branly como detetor, a patente de "sintonização" de agosto de 1898 foi vendida a Marconi em 1912.[8] Roger Cullis aponta o fato de que a Inglaterra detinha o controle das transmissões por cabo submarino assim como os correios detinham o monopólio das comunicações telegráficas e telefônicas pelo Telegraph Act de 189 de forma que não havia grande interesse pela tecnologia de transmissão sem fio. [9]

O russo Alexander Popov implementou no coesor um pequeno badalo, que batia levemente na limalha de ferro do coesor, preparando assim o dispositivo automaticamente para novas recepções e realizou experiências de transmissão por rádio, bem sucedidas junto a Sociedade Físico Química Russa em 1895. [10] O indiano Chandra Bose, aperfeiçoou o coesor utilizando mercúrio, em 1899. Utilizando o coesor de Lodge e Popov, Marconi incorporou uma placa de metal afixada à ponta do coesor de modo a melhorar a recepção dos sinais, constituindo uma antena, que permitiu a transmissão de sinais a grandes distâncias, culminando com o envio de sinais de rádio da Europa aos Estados Unidos em 1901, desta vez já utilizando o coesor de Bose. Em 1900 Marconi depositou a patente GB7777 para um rádio com sintonia, capaz de selecionar os sinais de rádio a serem recebidos, garantindo assim a possibilidade de múltiplas transmissões simultâneas. Esta técnica já havia sido, contudo, patenteada pelo croata Nikola Tesla em 1897.

Usando uma tecnologia distinta, sem o emprego do coesor, mas o centelhamento de uma bobina de RuhmKoff, o padre brasileiro Landell de Moura [11] conseguiu transmitir sinais de voz (e não apenas telegrafia como a experiência de Marconi em 1901) em uma exibição realizada na Avenida Paulista, em São Paulo em 1900 e solicitou patente nos Estados Unidos dois anos após (US775337). Diante de tantas invenções complementares é difícil determinar quem é o inventor do rádio, uma vez que a mesma palavra é empregada para descrever equipamentos de características distintas, contudo, o sistema de patentes não se ocupa disto, mas permite a concessão da proteção para cada um destes aperfeiçoamentos [12]. O fato de haver tantos aperfeiçoamentos de uma tecnologia não inviabiliza o reconhecimento de cada contribuição individual e desta forma a concessão de patentes.



[1] Dossiê das Patentes: uma análise do projeto n.824 do Governo Federal sobre a questão da propriedade industrial, Forum pela Liberdade do uso do Conhecimento, jun. 1992, http: //www.dieese.org.br/cedoc/004732.pdf.
[2] MAY, Christopher; SELL, Susan. Intellectual Property Rights: a critical history. Lynne Rjenner Publishers: London, 2006, p.25
[3] ISAACSON, Walter. Os inovadores: uma biografia da revolução digital, São Paulo: Cia das Letras, 2014, p. 97
[4] ISAACSON, Walter. Os inovadores: uma biografia da revolução digital, São Paulo: Cia das Letras, 2014, p. 103
[5] CERQUEIRA, Gama. Tratado da Propriedade Industrial, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. v.1, p. 133.
[6] READERS'S DIGEST, História dos grandes inventos, Portugal, 1983, p.62
[7] CULLIS, Roger. Patents, inventions and the dynamics of innovation: a multidisciplinary study, Edgard Elgar, 2007, p.49
[8] http://pt.wikipedia.org/wiki/Oliver_Lodge
[9] CULLIS, Roger. Patents, inventions and the dynamics of innovation: a multidisciplinary study, Edgard Elgar, 2007, p.88, 151
[10] CAMP, Sprague. A história secreta e curiosa das grandes invenções.Rio de Janeiro:Lidador, 1964, p. 318
[11] http: //www.redetec.org.br/inventabrasil/lande.htm.
[12] ROTHMAN, Tony. Tudo é relativo e outras fábulas da ciência e da tecnologia. São Paulo: Difel, 2005 p. 205. 

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