terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Lições do mecanismo de arbitragem nos casos de Propriedade Industrial



O artigo 1° da lei de Arbitragem Lei n° 9307 de 23 de setembro de 1996 estabelece em seu parágrafo 1° que “A administração pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis”. A constitucionalidade da lei de arbitragem foi confirmada pelo STF em AgRg na Sentença Estrangeira 5206 pelo Tribunal Pleno em julgamento de 12 de dezembro de 2001. O árbitro especialista no assunto em discussão é a pessoa escolhida pelas partes a quem compete uma decisão justa e de qualidade. Este artigo busca analisar os paralelos entre a arbitragem e a possibilidade de transferência da prerrogativa de concessão de marcas e patentes para um ente privado.

Um dos princípios norteadores do Direito Administrativo é o princípio da Supremacia do Interesse Público. Segundo Celso Bandeira de Mello: “O princípio da supremacia do interesse público é apresentado como pressuposto de uma ordem social estável, no sentido de que em sua posição privilegiada, conferida pela ordem jurídica, a Administração Pública pode assegurar a conveniente proteção aos interesses públicos, bem como porque a manifestação de vontade do Estado tem em vista o interesse geral, como expressão do interesse do todo social”. Um segundo pilar do Direito Administrativo é o da indisponibilidade do interesse público. Segundo Celso Bandeira de Mello: “sendo interesses qualificados como próprios da coletividade - internos ao setor público - não se encontram à livre disposição de quem quer que seja, por inapropriáveis. O próprio órgão administrativo que os representa não tem disponibilidade sobre eles, no sentido de que lhe incumbe apenas curá-los - o que é também um dever - na estrita conformidade do que dispuser a intentio legis” (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 19. ed., São Paulo: Saraiva, 2005, p. 59-60). Portanto, os poderes atribuídos a Administração tem o caráter de poder-dever, são poderes que ela não pode deixar de exercer sob pena de responder pela omissão. Segundo Zanella Di Pietro: “a autoridade não pode renunciar ao exercício das competências que lhe são outorgadas por lei” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 27 ed, São Paulo: Atlas, 2014).para José Augusto Fontoura: “A vinculação ao Direito público implica necessariamente a impossibilidade do Estado de abrir mão de seus direitos por mera liberalidade para com a outra parte, pois diversamente estaria sendo prejudicado o próprio interesse público [...] A evidente conclusão é de que direitos disponíveis só são encontrados no campo dos patrimoniais, posto que  todo direito pessoal (extrapatrimonial), por sua própria característica, é inerente á pessoa e desta não pode ser abstraído” (MACIEL Marco. Arbitragem lei brasileira e praxe internacional, São Paulo:LTR, 1999, p. 334). Para Gilberto Giusti: “os direitos excepcionais da Administração que lhe são conferidos justamente como instrumento para assegurar a manutenção do interesse público sobre o privado, não estariam sujeitos à arbitragem” (GIUSTI, Gilberto. As arbitragens internacionais relacionadas a investimentos: a Convenção de Washington, o ICSID e a posição do Brasil, Revista de Arbitragem e Mediação, ano 2, n.7, outubro/dezembro de 2005, p. 74).

Nesse sentido que a doutrina admite o uso da arbitragem para resolução de controvérsias na Administração Pública apenas para os casos em que estão envolvidos interesses públicos considerados secundários, como por exemplo, os direitos afetos à Fazenda Pública. Para Flávio Amaral Garcia os interesses públicos primários são afetos à coletividade e, portanto, substancialmente indisponíveis,  não constituem objeto de arbitragem: “os interesses públicos primários estão intimamente ligados aos direitos fundamentais” (CORREA, Lenilton. Arbitragem em propriedade Intelectual, Porto: Juruá, 2019, p. 72). O título II da Constituição federal ao tratar dos direitos e garantias fundamentais lista no inciso XXIX  que a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País. Para Welber Barral: “Na arbitragem as partes assumem o risco de um julgamento equivocado pelo árbitro, mas tal risco é inerente a qualquer sistema decisional. A distinção, no caso da decisão arbitral, refere-se aos direitos envolvidos, necessariamente disponíveis e portanto,  passíveis de serem colocados em risco pelos seus titulares” (MACIEL Marco. Arbitragem lei brasileira e praxe internacional, São Paulo:LTR, 1999, p. 170). Nesse sentido, como direito fundamental, a concessão de tais direitos, como envolvendo um direito público primário, deve estar necessariamente na esfera da Administração Pública.

O uso do recurso à arbitragem tem como princípio o da vontade soberana das partes. No caso da concessão de direitos de propriedade industrial as partes envolvidas diretamente tratam do titular do direito de um lado e a sociedade de outro. Jurgen Samtleben mostra que a participação de órgãos da Administração Pública em procedimentos arbitrais aparecem de forma problemática, e cita como exemplo um fracassado acordo extra judicial de 1987 envolvendo a Marinha brasileira e uma empresa italiana que o procurador geral da União adotou a posição de que a Administração Pública federal somente poderia firmar acordos judiciais (MACIEL Marco. Arbitragem lei brasileira e praxe internacional, São Paulo:LTR, 1999, p. 71). No âmbito do Tribunal Arbitral ICSID na grande maioria dos casos as partes envolvidas eram entes privados (GIUSTI, Gilberto. As arbitragens internacionais relacionadas a investimentos: a Convenção de Washington, o ICSID e a posição do Brasil, Revista de Arbitragem e Mediação, ano 2, n.7, outubro/dezembro de 2005, p. 63). A Câmara de Arbitragem Empresarial – Brasil CAMARB, por sua vez, administrou 18 procedimentos arbitrais envolvendo partes sujeitas ao regime de Direito Público, como por exemplo, Estados, Municípios e Agências Reguladoras (http://camarb.com.br/arbitragem/arbitragens-com-a-administracao-publica/). De qualquer modo a participação de órgãos da Administração Pública em procedimentos arbitrais constitui a minoria dos casos atualmente.

Nos procedimentos de arbitragem a doutrina recomenda a integridade do árbitro para que se possa garantir a justiça na resolução de disputas e que este proceda com imparcialidade, independência, competência, diligência e discrição. Nesse sentido ao ser indicado é dever do árbitro revelar qualquer interesse ou relacionamento que provavelmente afete a imparcialidade ou que possa criar uma aparência de parcialidade ou tendência. O dever de revelação destas relações é contínuo por todo o procedimento arbitral (MACIEL Marco. Arbitragem lei brasileira e praxe internacional, São Paulo:LTR, 1999, p. 259). Considerando um órgão de concessão de patentes que tem no seu Conselho Deliberativo entes privados como a CNI principal representante da indústria brasileira solicitante de inúmeras patentes, uma vez tendo o examinador de patente tendo seu salário pago por uma entidade privada / paraestatal  da qual titulares de patentes fazem parte do Conselho Diretor fica comprometida essa imparcialidade que se garante no processo arbitral recomendada pela doutrina. No intuito de preservar esta imparcialidade Flávia Bittar Neves observa que nos procedimentos de arbitragem há que se observar a temporariedade do árbitro tendo em vista tratar-se de ente privado: “ninguém é árbitro, mas está árbitro durante o procedimento para o qual foi designado atuar” (NEVES, Flávia. O dilema da regulamentação da função de árbitros, Revista de Arbitragem e Mediação, ano 2, n.7, outubro/dezembro de 2005, p. 63).

Embora seja possível discutir via arbitragem essencialmente questões obrigacionais envolvendo marcas e patentes, há que se destacar que estão excluídos litígios envolvendo a validade da patente e marcas, ou seja, a validade de ato administrativo do INPI. Segundo Selma Lemes coautora da lei de arbitragem lei n.9307/96 entende com restrita a possibilidade de arbitragem em propriedade industrial tendo em vista quatro fatores: “o primeiro é de ordem pública, apesar de muitos considerarem que a ordem pública não repercute no direito da propriedade intelectual, exceto quando estes direitos afetem terceiros. O segundo é a fala de livre disposição das partes sobres esses direitos. O terceiro seria o efeito inter partes em oposição ao efeito erga omnes. O quarto seria a jurisdição exclusiva reservada a Cortes e Departamentos Nacionais de Propriedade Industrial em diversos países” (MAZZONETTO, Nathalia. Arbitragem e propriedade intelectual: aspectos estratégicos. São Paulo:Saraiva, 2017) Para Nathalia Mazzonetto: “é no âmbito da constituição/concessão de direitos e títulos e, por conseguinte, de sua confirmação ou invalidade que residem os maiores desafios quanto à possibilidade de submeter uma disputa de PI à arbitragem ou não e as respectivas condições de processamento. Nesses, casos, por haver o envolvimento do Estado, ainda que indireto, haja visto que o ato questionado decorre de autoridade do governo, que age, conforme políticas específicas e estrategicamente definidas, é que reside a zona cinzenta em matéria de admissibilidade ou não da via arbitral com relação a direitos de PI”.

O INPI e a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) assinaram um Memorando de Entendimento 2012. No mesmo ano o INPI instituiu o Centro de Defesa da Propriedade Intelectual extinto pela nova estrutura publicada no Decreto nº 8.854, de 2016. A partir de 15 de julho de 2013, a opção de mediação foi oferecida aos procedimentos de oposição de pedido de registro marcário, recursos e processos administrativos de nulidade de registro marcário perante o INPI (https://www.wipo.int/amc/pt/center/specific-sectors/inpibr/index.html). Esta experiência restringiu-se a questões de mediação, e ainda assim não chegou a efetivamente a conduzir um caso prático. A Câmara de Arbitragem da Associação Brasileira da Propriedade Intelectual (ABPI) tem por objetivo administrar conflitos que envolvam direitos de propriedade intelectual e outros ramos de direito relativos ou afins (https://www.csd-abpi.org.br/carb/aberturacarbabpi.asp). Pesquisa realizada por Selma Lemes analisados casos de arbitragem de 2017 mostra que apenas 8% tiveram como um dos polos a Administração Pública (http://selmalemes.adv.br/artigos/Análise-%20Pesquisa-%20Arbitragens%20Ns.%20e%20Valores-%202010%20a%202017%20-final.pdf). Não há como se analisar as decisões destas Câmaras de Arbitragem uma vez que que em sua maioria tais decisões não são divulgadas.  Selma Lemes questiona a não divulgação da jurisprudência dos casos analisados nestas Câmaras de Arbitragem ainda que os regulamentos, em teoria, indiquem a possibilidade de tal divulgação. No caso de transferência da concessão de marcas e patentes para um ente privado não há necessariamente garantia de que as decisões hoje tornadas públicas mantenham esta prática de publicidade.










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