terça-feira, 26 de julho de 2022

O efeito prospectivo das patentes

 


Patentes podem ser utilizadas de forma defensiva de diferentes modos. Uma empresa titular de uma invenção pode ter patenteada tal tecnologia não com intuito de acionar terceiros por contrafação, mas para constituir um portfólio de patentes que possa ser útil para o licenciamento cruzado com concorrentes[1].

Suponha que a empresa A detenha 5 mil patentes correlacionadas a tecnologia X e considere que seus maiores concorrentes detém cada um 1,5 mil patentes. Os concorrentes possivelmente não processarão a empresa A por recearem que a mesma possa abrir um processo por violação de patentes usando seu portfólio de patentes muito maior[2]. Com um bom portfólio de patentes torna-se cada vez mais difícil os concorrentes “projetarem por desvio” (inventing around), ou seja, buscarem desenvolver tecnologias alternativas que não violem as patentes do portfólio[3]. A Microsoft, por exemplo, possui acordos de patentes com IBM, Sun Microsystems, SAP, Hewlett-Packard, Siemens AG, Cisco, Autodesk e Novell. A Microsoft fez licenciamento cruzado de algumas de suas patentes com a Sun, embora sejam competidores diretos, e com a Autodesk muito embora a Autodesk tenha muito menos patentes que a Microsoft, o que mostra que em tais acordos de licenciamento cruzado muitas vezes o que conta não é a quantidade de patentes mas sua qualidade. A LG fez acordo de licenciamento cruzado de patentes com a Google.[4] Carl Shapiro argumenta que embora as licenças cruzadas e pools de patentes ajudem a evitar litígios em meio a tantas patentes (patent thicket) tais acordos impõe um custo de transação (as discussões em torno da tecnologia 3G, por exemplo, duraram anos), além de em alguns casos incorrerem em riscos quanto à política antitruste sob acusação de práticas de cartel.[5] Preocupações com a legislação antitruste moldaram de forma crítica a formação do pool MPEG-2, cujas provisões serviram como base para os pools da tecnologias DVD e para outros pools formados posteriormente. Alguns destes pools, por outro lado, como o da tecnologia Bluetooth oferecem seu pacote de patentes gratuitamente. [6]

Um outra estratégia é a de se patentear não com intuito de acionar terceiros por contrafação, mas para se evitar que um concorrente venha posteriormente solicitar uma patente da mesma tecnologia e pleitear royalties. No setor software diversas empresas como IBM, Microsoft, Nokia, Novell, Sun Microsystems e Unisys anunciaram o licenciamento gratuito de muitas de suas patentes.[7] Mesmo algumas empresas de software livre como a Red Hat possuem patentes depositadas com intuito de estabelecer licenciamentos cruzados. Em depoimento em 2008 junto a Justiça norte-americana no caso Bilski, a Red Hat manifestou que suas patentes tem estratégia defensiva e demonstrou preocupação com as patentes na área de software para os projetos de open source, pelos riscos de processos judiciais por violação involuntária de alguma destas patentes.[8]

A UNCTAD aponta que “o fenômeno da não utilização das patentes, parece existir tanto nos países em desenvolvimento quanto nos países desenvolvidos; não obstante as estatísticas que permitam uma comparação específica e confiável não existirem é evidente que no último grupo de países analisados, o grau de não utilização é forçosamente maior, tão só em razão de suas relativas carências de capacidade industrial e tecnológica”.[9] Joachim Henkel e Stefanie Pangerl realizaram um estudo em 2008 sobre estratégias defensivas adotadas por empresas alemãs e concluíram que cerca de 70% delas utilizam alguma forma de estratégia defensiva, publicando preliminarmente seus resultados tecnológicos, seja em revistas ou mesmo em patentes, como forma de evitar a apropriação da tecnologia por concorrentes.[10] Algumas razões apresentadas pelas empresas para não utilização de patentes incluem: 1) a patente possui valor limitado; 2) a publicação defensiva tem menor custo que a patente; 3) a liberdade de conhecimento deve ser preservada; 4) parece incerto que a invenção é patenteável. A taxa de utilização comercial de patentes é relativamente baixa, muitas vezes por questões de marketing ou outros fatores de mercado, de forma que o não uso de uma patente não necessariamente é algo prejudicial à sociedade. Estima-se que a maior parte das patentes concedidas é utilizada internamente pelos próprios titulares (52%), ao passo que apenas 14% são licenciadas e cerca de 34% não são usadas seja internamente ou por licenciamento.[11] Bessen e Meurer[12], Boldrini[13], Mazzoleni e Nelson [14], Heller e Eisenberg[15], Scotchmer[16] apontam para os riscos contra a inovação causados pelas patente sem uso. John Walsh[17] e Torrisi [18] estimam que entre 42% e 45% das patentes concedidas não são usadas. Salvatore Torrisi faz uma avaliação do uso de uma amostra de patentes (patentes depositadas em US/EP/JP) e conclui que 61 % são efetivamente comercializadas, o restante simplesmente não é usado, 26 % tem finalidade estratégica como impedir a entrada de concorrente, ou seja, tem alguma finalidade de bloqueio explicita e 13 % são patentes adormecidas, ou seja, não está sendo usada (comercializada) e também não tem nenhum objetivo de bloqueio imediato, a patente foi solicitada por precaução apenas. Ou seja, na prática metade das patentes não são usadas (e isso considerando países altamente desenvolvidos com geração de tecnologia e sistemas de PI maduros), no entanto o uso de patentes de forma estratégica parece ser menor do que se acreditava. O estudo mostra que cerca de 18% das patentes de pequenas empresas são licenciadas enquanto que para as grandes empresas esse percentual cai para 5%[19]

O economista Edmund Kitch ressalta o papel de recompensa ao inventor do sistema de patentes, ao permitir que este recupere os investimentos na invenção que de outra forma (exceto pelo segredo industrial) poderiam ser apropriados pelos concorrentes[20]: “o sistema de patentes tem sido a instituição chave, amplamente presente nas economias capitalistas voltadas para o problema da criação de incentivos para a inovação”.[21] Kitch observa que muitas patentes são depositadas anos antes do sucesso comercial, numa fase de incertezas, ou seja, o inventor age de forma semelhante a um garimpeiro em busca de valores, sem ter noção exata da proteção conferida pela patente, reforçando um papel prospectivo das patentes, sinalizando aos concorrentes possíveis áreas tecnológicas de interesse comercial futuro. Para Kitch o sistema de patentes estimula o uso de invenções ainda não exploradas tal como a privatização de terrenos inexplorados estimula os proprietários a fazer um uso mais eficiente de suas terras: “a prospecção de patentes aumenta a eficiência em que os investimentos em inovação são gerenciados [...] a informação tecnológica é um recurso o qual não é utilizado de forma eficiente sem que haja direitos de propriedade exclusivos [...] o titular da patente tem um incentivo para fazer investimentos para maximizar o valor de sua patente sem medo de que os frutos de seu investimento produzam informação não patenteada que possa ser apropriada pelos concorrentes”.[22]

Para Kitch as invenções pioneiras acabam inevitavelmente possuindo um escopo de proteção mais amplo que as posteriores.[23] A concessão de patentes amplas para o pioneiro de uma nova tecnologia racionaliza o processo na medida em que este inventor consegue racionalizar o desenvolvimento da tecnologia vinculada a esta tecnologia, de forma coordenada, através de licenciamentos, o que evita duplicação de esforços. Mark Lemley critica o modelo de Kistch pois dificilmente a patente do titular tem seus limites definidos de forma clara para todos os concorrentes, acordos de licenciamento implicam em custos de transação de modo que o titular não necessariamente assume esta posição de gestor racionalizador da tecnologia tal como proposto por Kitsch[24]. Roberto Mazzoleni igualmente critica Kicth por minimizar os custos de transação associados à gestão e licenciamento da prospecção.[25] Dominique Guellec alega que na prática o que se observa é o subinvestimento em novas tecnologias, ou seja, coordenar o excesso de investimentos em novas tecnologias não parece ser o problema central. Em segundo lugar mesmo que o problema de excesso de investimentos fosse relevante a patente ampla de Kitch simplesmente transfere o problema dos investidores na base para o investidor da patente pioneira. Em terceiro lugar ao concentrar os lucros na patente pioneira o sistema desestimula a pesquisa pelos inventores na base. [26]

Outro aspecto a ser considerado se refere as invenções sequenciais, em que pequenos incrementos são proporcionados por diferentes atores para uma mesma tecnologia de modo a se formar diferentes possibilidades tecnológicas. Nestes casos torna-se muito difícil o titular da patente pioneira se colocar como gestor de todas estas oportunidades de desenvolvimento.[27] Williamson também destaca os custos de transação no gerenciamento de direitos de múltiplas patentes incrementais.[28] Para Robert Merges a concessão de patentes amplas contraria a doutrina de enablement pela qual a patente deve descrever minimamente as possíveis implementações equivalentes protegidas dentro do escopo da patente: “as patentes não deveriam controlar invenções das quais elas não descreveram (enable), especialmente se o inventor original não estava fortemente posicionado e motivado para fazer tais implementações”.[29]

Mark Lemley destaca que a teoria prospectiva de Kitch é particularmente adequada na área de medicamentos onde se destaca o papel do empresário coordenador resultado de um grande investimento em pesquisa de uma única empresa, ao invés de uma criação ao acaso ou fruto da experimentação rotineira. Nas invenções de empreendimento coletivo esta ação prospectiva está menos presente.[30] Uma crítica à teoria de Kitch é a de que a mesma se baseia em custos de transação reduzidos e na racionalidade dos atores em realizarem investimentos, o que pode ser questionado nos casos em que o escopo das patentes não é muito bem definido. Outro aspecto é que não há garantias de que o titular da patente licencie sua tecnologia a preços razoáveis, o que pode representar um problema na difusão desta tecnologia, especialmente no caso de patentes sobre padrões usados na indústria.[31] Scott Kieff embora destaque o papel benéfico de coordenação entre competidores de um ativo que evita a superutilização de outros recursos na teoria prospectiva, esta desconsidera que uma série de outros fatores tendem a mitigar os efeitos desta dissipação de renda na prática.[32] Ove Granstrand aponta que a teoria prospectiva não resolve o problema da coordenação dos agentes econômicos, mas apenas transfere as tendências de superinvestimento por descoordenação de tais agentes para os estágios mais iniciais da corrida pela inovação, além da dificuldade de se identificar cedo as poucas invenções que são genéricas o suficiente para justificar um direito de prospecção.[33]



[1] http: //en.wikipedia.org/wiki/Software_patent.

[2] OMPI. Manual de Redação de Patentes da OMPI, IP Assets Management Series, 2007, p. 28 e 226.

[3] OMPI.op. cit. p. 221.

[4] https://oglobo.globo.com/economia/google-assina-com-lg-parceria-de-licenciamento-cruzado-14468096

[5] SHAPIRO, Carl, Navigating the Patent Thicket: Cross Licenses, Patent Pools, and Standard-Setting (March 2001). Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=273550 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.273550

[6] SILVA, Denise. Pools de patentes: impactos no interesse público e interface com problemas de qualidade do sistema de patentes, Tese Doutorado, Instituto Economia UFRJ, 2012

[7] http: //en.wikipedia.org/wiki/Software_patent.

[8] TILLER, Rob. Red Hat Asks Federal Court To Limit Patents On Software. abr. 2008.

 http: //www.redhat.com/about/news/blog/red-hat-asks-federal-court-to-limit-patents-on-software/.

[9] UNCTAD. O papel do sistema de patentes na transferência de tecnologia aos países em desenvolvimento. Rio de Janeiro: Forense, 1979,p.136

[10] HENKEL, Joachim; PAGERL, Stefanie. Defensive Publishing: An Empirical Study; DRUID Working Paper No. 08-04, http: //www.druid.dk/uploads/tx_picturedb/wp08-04.pdf.

[11] Scenarios for the future http: //www.epo.org/news-issues/issues/scenarios.html

[12] Bessen, J., Meurer, M., 2008. Patent Failure. Princeton University Press, Princeton, NJ.

[13] Boldrin, Michele, Levine, David K., 2013. The case against patents. J. Econ. Perspect. 27 (1), 3–22.

[14] Mazzoleni, R., Nelson, R.R., 1998. he benefits and costs of strong patent protection: a contribution to the current debate. Res. Policy 27, 273–284.

[15] HELLER, M.A., EISENBERG, R.S., 1998. Can patents deter innovation? The anticommons in biomedical research. Science 280, 698–701.

[16] SCOTCHMER, Susan, 2004. Innovation and Incentives. The MIT Press, Cambridge, MA.

[17] WALSH, John, LEE, You-Na, JUNG, Taehyun. Win, lose or draw? The fate of patented inventions, Res. Policy, v.45, n.7, set/2016, p. 1362-1373

[18] TORRISI, Salvatore, GAMBARDELLA, Alfonso, GIURI, Paola, HARHOFF, Dietmar, HOISI, Karin, MARIANI, Myriam. Used, blocking and sleeping patents: Empirical evidence from a large-scale inventor survey. Research Policy, v.45, n.7, set/2016, p.1374-1385

[19] TORRISI, Salvatore et all Used, blocking and sleeping patents: Empirical evidence from a large-scale inventor survey, Research Policy, v. 45, n.7, setembro 2016, p.1374-1585

[20] KITCH, Edmund W. The nature and function of the patent system, Journal of Law and Economics, 1977, v.20, n. 2, p. 266 apud HAHN, Robert. Intellectual Property Rights in Frontier Industries: software and biotechnology, Washington: AEI Brookings, 2005, p. 14.

[21] MORRIS, Julian, Ideal Matter: a globalização e o debate sobre a propriedade intelectual. Rio de Janeiro:Instituto Liberal, 2003 p.36

[22] KITCH, Edmund. The nature and future of the patent system, Journal of Law and Economics, v.20, 1977, cf. PARK,Jae Hun. Patents and Industry Standards,Edward Elgar, 2010, p. 127

[23] BURK, Dan L.; LEMLEY, Mark, A. The patent crisis and how the Courts can solve it. The University of Chicago Press, 2009, p.69

[24] LEMLEY, Mark. Policy levers in patent Law, Virginia Law Review, v.89 cf. PARK, Jae Hun. Patents and industry standards. US:Edward Elgar 2010, p. 130

[25] CHIARINI, Tulio; CALIARI, Thiago. A economia política do patenteamento na América Latina. Jundiaí:Paco, 2019, p.47

[26] GUELLEC, Dominique; POTTERIE, Bruno van Pottelsberghe de la. The economics of the european patent system. Great Britain:Oxford University Press, 2007, p.143

[27] PARK, Jae Hun. Patents and industry standards. US:Edward Elgar 2010, p. 135

[28] MERGES, Robert; NELSON, Richard. On limiting or encouraging rivalry in technical progress: the effect of patent scope decisions. Journal of Economic Behaviour and Organization, v.25, 1994, p.5

[29] MERGES, Robert; NELSON, Richard. Op.cit., p.18

[30] BURK, LEMLEY, p.80

[31] PARK,Jae Hun. Patents and Industry Standards,Edward Elgar, 2010, p. 130

[32] KIEFF, Scott. On the economics of patent law and policy. In: TAKENAKA, Toshiko. Patent law and theory: a handbook of contemporary research,Cheltenham:Edward Elgar, 2008, p.41

[33] GRANSTRAND, Ove. Patents and policies for innovations and entrepreneurship. In: TAKENAKA, Toshiko. Patent law and theory: a handbook of contemporary research,Cheltenham:Edward Elgar, 2008, p.71

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