O artigo 1° da lei de Arbitragem Lei
n° 9307 de 23 de setembro de 1996 estabelece em seu parágrafo 1° que “A
administração pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para
dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis”. A
constitucionalidade da lei de arbitragem foi confirmada pelo STF em AgRg na
Sentença Estrangeira 5206 pelo Tribunal Pleno em julgamento de 12 de dezembro
de 2001. O árbitro especialista no assunto em discussão é a pessoa escolhida
pelas partes a quem compete uma decisão justa e de qualidade. Este artigo busca
analisar os paralelos entre a arbitragem e a possibilidade de transferência da
prerrogativa de concessão de marcas e patentes para um ente privado.
Um dos princípios norteadores do
Direito Administrativo é o princípio da Supremacia do Interesse Público.
Segundo Celso Bandeira de Mello: “O
princípio da supremacia do interesse público é apresentado como pressuposto de
uma ordem social estável, no sentido de que em sua posição privilegiada,
conferida pela ordem jurídica, a Administração Pública pode assegurar a
conveniente proteção aos interesses públicos, bem como porque a manifestação de
vontade do Estado tem em vista o interesse geral, como expressão do interesse
do todo social”. Um segundo pilar do Direito Administrativo é o da
indisponibilidade do interesse público. Segundo Celso Bandeira de Mello: “sendo interesses qualificados como próprios
da coletividade - internos ao setor público - não se encontram à livre
disposição de quem quer que seja, por inapropriáveis. O próprio órgão
administrativo que os representa não tem disponibilidade sobre eles, no sentido
de que lhe incumbe apenas curá-los - o que é também um dever - na estrita
conformidade do que dispuser a intentio legis” (MELLO, Celso Antônio Bandeira
de. Curso de Direito Administrativo. 19. ed., São Paulo: Saraiva, 2005, p.
59-60). Portanto, os poderes atribuídos a Administração tem o caráter de
poder-dever, são poderes que ela não pode deixar de exercer sob pena de
responder pela omissão. Segundo Zanella Di Pietro: “a autoridade não pode renunciar ao exercício das competências que lhe
são outorgadas por lei” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito
Administrativo. 27 ed, São Paulo: Atlas, 2014).para José Augusto Fontoura: “A
vinculação ao Direito público implica necessariamente a impossibilidade do
Estado de abrir mão de seus direitos por mera liberalidade para com a outra
parte, pois diversamente estaria sendo prejudicado o próprio interesse público
[...] A evidente conclusão é de que direitos disponíveis só são encontrados no
campo dos patrimoniais, posto que todo
direito pessoal (extrapatrimonial), por sua própria característica, é inerente
á pessoa e desta não pode ser abstraído” (MACIEL Marco. Arbitragem lei
brasileira e praxe internacional, São Paulo:LTR, 1999, p. 334). Para Gilberto
Giusti: “os direitos excepcionais da
Administração que lhe são conferidos justamente como instrumento para assegurar
a manutenção do interesse público sobre o privado, não estariam sujeitos à
arbitragem” (GIUSTI, Gilberto. As arbitragens internacionais relacionadas a
investimentos: a Convenção de Washington, o ICSID e a posição do Brasil,
Revista de Arbitragem e Mediação, ano 2, n.7, outubro/dezembro de 2005, p. 74).
Nesse sentido que a doutrina admite
o uso da arbitragem para resolução de controvérsias na Administração Pública apenas
para os casos em que estão envolvidos interesses públicos considerados
secundários, como por exemplo, os direitos afetos à Fazenda Pública. Para
Flávio Amaral Garcia os interesses públicos primários são afetos à coletividade
e, portanto, substancialmente indisponíveis,
não constituem objeto de arbitragem: “os interesses públicos primários estão intimamente ligados aos direitos
fundamentais” (CORREA, Lenilton. Arbitragem em propriedade Intelectual, Porto:
Juruá, 2019, p. 72). O título II da Constituição federal ao tratar dos direitos
e garantias fundamentais lista no inciso XXIX
que a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio
temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à
propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos,
tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico
do País. Para Welber Barral: “Na
arbitragem as partes assumem o risco de um julgamento equivocado pelo árbitro,
mas tal risco é inerente a qualquer sistema decisional. A distinção, no caso da
decisão arbitral, refere-se aos direitos envolvidos, necessariamente
disponíveis e portanto, passíveis de serem
colocados em risco pelos seus titulares” (MACIEL Marco. Arbitragem lei
brasileira e praxe internacional, São Paulo:LTR, 1999, p. 170). Nesse sentido,
como direito fundamental, a concessão de tais direitos, como envolvendo um
direito público primário, deve estar necessariamente na esfera da Administração
Pública.
O uso do recurso à arbitragem tem
como princípio o da vontade soberana das partes. No caso da concessão de
direitos de propriedade industrial as partes envolvidas diretamente tratam do
titular do direito de um lado e a sociedade de outro. Jurgen Samtleben mostra
que a participação de órgãos da Administração Pública em procedimentos
arbitrais aparecem de forma problemática, e cita como exemplo um fracassado
acordo extra judicial de 1987 envolvendo a Marinha brasileira e uma empresa
italiana que o procurador geral da União adotou a posição de que a
Administração Pública federal somente poderia firmar acordos judiciais (MACIEL
Marco. Arbitragem lei brasileira e praxe internacional, São Paulo:LTR, 1999, p.
71). No âmbito do Tribunal Arbitral ICSID na grande maioria dos casos as partes
envolvidas eram entes privados (GIUSTI, Gilberto. As arbitragens internacionais
relacionadas a investimentos: a Convenção de Washington, o ICSID e a posição do
Brasil, Revista de Arbitragem e Mediação, ano 2, n.7, outubro/dezembro de 2005,
p. 63). A Câmara de Arbitragem Empresarial – Brasil CAMARB, por sua vez,
administrou 18 procedimentos arbitrais envolvendo partes sujeitas ao regime de
Direito Público, como por exemplo, Estados, Municípios e Agências Reguladoras (http://camarb.com.br/arbitragem/arbitragens-com-a-administracao-publica/).
De qualquer modo a participação de órgãos da Administração Pública em
procedimentos arbitrais constitui a minoria dos casos atualmente.
Nos procedimentos de arbitragem a
doutrina recomenda a integridade do árbitro para que se possa garantir a
justiça na resolução de disputas e que este proceda com imparcialidade,
independência, competência, diligência e discrição. Nesse sentido ao ser
indicado é dever do árbitro revelar qualquer interesse ou relacionamento que
provavelmente afete a imparcialidade ou que possa criar uma aparência de
parcialidade ou tendência. O dever de revelação destas relações é contínuo por
todo o procedimento arbitral (MACIEL Marco. Arbitragem lei brasileira e praxe
internacional, São Paulo:LTR, 1999, p. 259). Considerando um órgão de concessão
de patentes que tem no seu Conselho Deliberativo entes privados como a CNI principal
representante da indústria brasileira solicitante de inúmeras patentes, uma vez
tendo o examinador de patente tendo seu salário pago por uma entidade privada /
paraestatal da qual titulares de
patentes fazem parte do Conselho Diretor fica comprometida essa imparcialidade
que se garante no processo arbitral recomendada pela doutrina. No intuito de
preservar esta imparcialidade Flávia Bittar Neves observa que nos procedimentos
de arbitragem há que se observar a temporariedade do árbitro tendo em vista
tratar-se de ente privado: “ninguém é
árbitro, mas está árbitro durante o procedimento para o qual foi designado
atuar” (NEVES, Flávia. O dilema da regulamentação da função de árbitros,
Revista de Arbitragem e Mediação, ano 2, n.7, outubro/dezembro de 2005, p. 63).
Embora seja possível discutir via
arbitragem essencialmente questões obrigacionais envolvendo marcas e patentes,
há que se destacar que estão excluídos litígios envolvendo a validade da patente
e marcas, ou seja, a validade de ato administrativo do INPI. Segundo Selma Lemes
coautora da lei de arbitragem lei n.9307/96 entende com restrita a
possibilidade de arbitragem em propriedade industrial tendo em vista quatro
fatores: “o primeiro é de ordem pública,
apesar de muitos considerarem que a ordem pública não repercute no direito da
propriedade intelectual, exceto quando estes direitos afetem terceiros. O
segundo é a fala de livre disposição das partes sobres esses direitos. O
terceiro seria o efeito inter partes em oposição ao efeito erga omnes. O quarto
seria a jurisdição exclusiva reservada a Cortes e Departamentos Nacionais de
Propriedade Industrial em diversos países” (MAZZONETTO, Nathalia.
Arbitragem e propriedade intelectual: aspectos estratégicos. São Paulo:Saraiva,
2017) Para Nathalia Mazzonetto: “é no
âmbito da constituição/concessão de direitos e títulos e, por conseguinte, de
sua confirmação ou invalidade que residem os maiores desafios quanto à
possibilidade de submeter uma disputa de PI à arbitragem ou não e as
respectivas condições de processamento. Nesses, casos, por haver o envolvimento
do Estado, ainda que indireto, haja visto que o ato questionado decorre de autoridade
do governo, que age, conforme políticas específicas e estrategicamente
definidas, é que reside a zona cinzenta em matéria de admissibilidade ou não da
via arbitral com relação a direitos de PI”.
O INPI e a Organização Mundial da
Propriedade Intelectual (OMPI) assinaram um Memorando de Entendimento 2012. No mesmo ano o INPI instituiu o Centro
de Defesa da Propriedade Intelectual extinto pela nova estrutura publicada no
Decreto nº 8.854, de 2016. A partir de 15 de julho de 2013, a opção de mediação
foi oferecida aos procedimentos de oposição de pedido de registro marcário,
recursos e processos administrativos de nulidade de registro marcário perante o
INPI (https://www.wipo.int/amc/pt/center/specific-sectors/inpibr/index.html).
Esta experiência restringiu-se a questões de mediação, e ainda assim não chegou
a efetivamente a conduzir um caso prático. A Câmara de Arbitragem da Associação
Brasileira da Propriedade Intelectual (ABPI) tem por objetivo administrar
conflitos que envolvam direitos de propriedade intelectual e outros ramos de
direito relativos ou afins (https://www.csd-abpi.org.br/carb/aberturacarbabpi.asp).
Pesquisa realizada por Selma Lemes analisados casos de arbitragem de 2017
mostra que apenas 8% tiveram como um dos polos a Administração Pública (http://selmalemes.adv.br/artigos/Análise-%20Pesquisa-%20Arbitragens%20Ns.%20e%20Valores-%202010%20a%202017%20-final.pdf).
Não há como se analisar as decisões destas Câmaras de Arbitragem uma vez que
que em sua maioria tais decisões não são divulgadas. Selma Lemes questiona a não divulgação da
jurisprudência dos casos analisados nestas Câmaras de Arbitragem ainda que os
regulamentos, em teoria, indiquem a possibilidade de tal divulgação. No caso de
transferência da concessão de marcas e patentes para um ente privado não há
necessariamente garantia de que as decisões hoje tornadas públicas mantenham
esta prática de publicidade.