Para preservar os direitos do usuário anterior o artigo 45 da LPI estabelece que “à pessoa de boa fé que, antes da data de depósito ou de prioridade de pedido de patente, explorava seu objeto no País, será assegurado o direito de continuar a exploração, sem ônus, na forma e condição anteriores”. Quando a lei trata de “exploração” neste artigo está se referindo a exploração no mercado interno, pois segundo Denis Barbosa[1]: “note-se que só há direito de inoponibilidade em relação ao invento já explorado (e não simplesmente pesquisado ou conhecido), antes do depósito de patente e no País. A exploração no exterior não faculta a inoponibilidade”. Não há portanto, a possibilidade de extensão de direitos para o mesmo ato realizado no exterior ainda que comprovadamente de boa fé[2].
Segundo Luiz Guilherme de Loureiro[3] “a justificativa jurídica [da doutrina francesa], segundo Mathély é que a detenção da invenção por seu criador constitui um direito adquirido e cada um tem a propriedade das criações de seu espírito. O direito adquirido nasce da concepção da invenção e não do que será feito após. Já a segunda doutrina é seguida pela maior parte dos países [incluindo o Brasil]. Segundo essa doutrina o primeiro inventor só pode se beneficiar de um direito de exploração de sua invenção se ele efetivamente já tinha começado tal exploração, ou iniciado preparativos para tanto, antes da data do depósito ou da prioridade do pedido de patente. Os defensores dessa doutrina sustentam que o invento que mantém segredo de sua invenção e não tenha manifestado intenção de explorá-la não merece a proteção legal, porque ele não trouxe nenhuma contribuição ao progresso da sociedade”.
Segundo o juiz Agustinho Silva “o direito adquirido é um conceito de direito material, que se traduz numa vantagem integrada, atual ou potencialmente, no patrimônio da pessoa. Escapam á proteção do direito adquirido, em consequência, as normas de natureza formal, que não atingem diretamente o referido patrimônio, por apenas representarem instrumentos que não afetam substancialmente aquelas vantagens. Não estão neste caso as leis que regulam as condições para aquisição de direitos, quando o interessado já tenha exercido a ação necessária, de sua parte, para tal aquisição. Nesse caso a condição preestabelecida se torna inalterável, a arbítrio de outrem, mesmo quando este seja o próprio Estado, pois entender de outro modo seria consagrar o entendimento de que ele poderia procastinar indefinidamente a solução de tais situações, á espera de nova lei que viesse cassar o direito”.[4]
Fernando Philipp as mesmas exceções legais de não exploração previstas no artigo 69 da LPI que trata de licenças compulsórias aplicam-se ao artigo 45 da LPI que trata dos direitos de usuário anterior: “assim, a pessoa de boa-fé, para se beneficiar do princípio do usuário anterior deve, na data do pedido de patente ou da prioridade, ter iniciado de maneira efetiva a exploração do objeto da invenção ou ao menos provar a existência de uma das hipóteses previstas pelo artigo 69”[5].
Lucas Rocha Furtado refere-se aos direitos de usuário anterior como um anacronismo da Lei, uma vez que se o objeto da patente já havia sido utilizado por terceiros antes da data de depósito da respectiva patente, então esta não apresenta novidade[6]. No entanto, a figura do usuário anterior faz sentido no caso em que esta pessoa protege sua invenção por segredo industrial e, portanto, não pode servir como base para invalidar a patente. Desta perspectiva a LPI ao proteger os interesses de alguém que vinha mantendo sua invenção em segredo, em certo sentido, contraria o princípio básico do sistema de estimular aqueles que optam pela patente em troca da divulgação de sua invenção. Por isso a LPI restringe a condição de usuário anterior aqueles que exploravam a invenção.
Luiz Guilherme de Loureiro[7] tem uma interpretação mais ampla: “embora o dispositivo do artigo 45 contenha apenas o termo ‘explorava’, não fazendo qualquer menção aos atos preparatórios, a norma, salvo melhor juízo, deve ser interpretada de forma ampla, a incluir também os atos preparatórios da exploração da invenção [...] Obviamente, os sérios preparativos devem ser referir à exploração da invenção e não à sua concepção. A lei só protege a invenção anterior que já estava acabada, ou seja, idealizada em sua forma e função. A simples ideia da invenção não pode ser alegada pela pessoa interessada”.
Os integrantes do escritório Dannemann, Siemsen, Bigler & Ipanema Moreira[8] observam que sendo o uso público anterior do objeto da patente, por terceiro que não o titular, motivo para anular a patente, é presumivelmente mais comum o usuário anterior tentar anular a patente em questão do que procurar fazer valer seus direitos de usuário anterior. Por outro lado, no caso de tal uso anterior não constituir anterioridade para a patente, por estar a tecnologia protegida por segredo industrial, então também neste caso o usuário anterior igualmente preferirá na maioria das vezes não reivindicar seus direitos, pois dificilmente o titular terá acesso as atividades sigilosas de terceiros não autorizados.
Os direitos de usuário anterior não se comparam com os direitos conferidos a uma patente . Segundo Fernando Philipp[9] “o direito de usuário anterior é oponível tanto ao titular da patente quanto aos seus beneficiários. Mas ele não é oponível a terceiros outros [...] por exemplo, aos contrafatores da patente de invenção”. Fernando Philipp argumenta que se o usuário anterior vinha explorando sua invenção para fins pessoais nada obsta a ampliação de suas atividades.
Assim temos que dificilmente um litígio envolvendo infração resultará no reconhecimento de direitos de usuário anterior. Em uma ação de infração a ré arguiu em sua defesa o uso anterior de um processo de gravação de dados em cilindros de laminação, apresentando como evidências notas fiscais de compra dos eletrodos usados no processo e declarações de seus funcionários. A ação foi encerrada com acordo, porém o perito judicial chegou a emitir laudo que reconhecia o uso anterior[10]. O caso mostra que a comprovação de uso anterior não é prova simples, sendo, portanto, mais recomendável ao inventor solicitar uma patente do que mantê-la em segredo e invocar os direitos de usuário anterior posteriormente.
No caso de invenções independentes, terá direito à patente aquele que primeiro fizer o depósito junto ao INPI, independente de quem inventou primeiro. Neste caso de invenções independentes, o primeiro inventor, mesmo sem a patente pode usufruir dos direitos de usuário anterior, previstos no artigo 45 da LPI. Segundo Fernando Philipp “o usuário anterior tem boa-fé a partir do momento em que ele mesmo realizou a invenção ou então ele a recebeu de maneira legítima de seu inventor. Caso contrário, este dispositivo legal [artigo 45 da LPI] não pode ser aplicado, uma vez que o direito de usuário anterior é precário e decorrente de fraude” [11]. No caso de má fé do segundo inventor, o primeiro e verdadeiro inventor poderá solicitar a adjudicação do pedido de patente. Segundo Jacques Labrunie [12]: “seria injusto e despropositado que o legítimo titular usurpado tivesse somente a via da nulidade para questionar a usurpação, pois, com a declaração de nulidade a invenção cairia em domínio público e o inventor continuaria prejudicado, salvo a possibilidade de reparação do dano, por ato ilícito, de responsabilidade do usurpador”. Na legislação francesa (L.613-7) [13]a condição de usuário anterior, introduzida pela lei de 1968, também exige o critério de boa fé. A questão sujeita a maiores controversas diz respeito a exigência do usuário anterior demonstrar que tinha posse da invenção o que pode ser interpretado como simples conhecimento da invenção ou a exploração comercial da mesma.[14]
Segundo o STJ ao discutir sobre a patente de invenção que diz respeito ao sistema de abertura e fechamento de latas metálicas (PI 9408643-5) “Ninguém está obrigado a requerer patente para proteger as invenções que utiliza em atividade industrial. Se um empresário obtém proteção para invenção que já era utilizada por seus concorrentes, abrem-se duas possibilidades aos prejudicados: (i) impugnar a patente, mediante a comprovação de ausência de novidade; ou (ii) valer-se do “direito consuetudinário” assegurado pelo art. 45 da Lei 9.279/96. A simples prova testemunhal não é idônea para que se reconheça incidentalmente a nulidade; e o tema tampouco foi objeto do recurso especial. A aplicação do art. 45 da Lei 9.279/96 requer que a invenção tenha sido utilizada pela própria parte prejudicada, mas a prova testemunhal produzida só aponta, com segurança, o uso por terceiros”.[15]
O TJMG em Aloísio Pereira v. Ambiente Projetos Ltda [16] conclui: “Não há que se falar em concorrência desleal ou exploração indevida do objeto da patente se um terceiro, de boa-fé, já o explorava antes de efetuado o depósito do pedido de registro junto ao INPI”. Em outra decisão o TJMG conclui: “De fato o Artigo 45 da Lei 9279/96 estabelece o direito à continuidade de exploração empresarial sem qualquer ônus, em se tratando de pessoa de boa fé, que antes do efetivo depósito do pedido de patente, já se encontrava explorando seu objeto no país”[17] Em TJMG Diniz e Carvalho Energia Solar v. Aquecema Energia Solar Ltd[18] conclui que “Inexistindo certeza da identidade entre o bem produzido pela autora, sobre o qual recai pedido de patente, e o fabricado pela ré, e não sendo possível aferir, neste momento processual, se esta faz jus à regra do art. 45 da Lei 9.279/96, mostra-se temerário impedi-la de, liminarmente, continuar fabricando e comercializando o seu produto”.
O TJRS em Bandeirante Ind. e Com. de Máquinas v. José Ramão Nascimento Silva[19] preceitua que o direito de usuário é cabível se atendidos dois requisitos básicos: “Assim, necessário, em primeiro lugar, que o usuário detenha, de boa-fé, a tecnologia utilizada pelo depositante do pedido. Por isso, a norma não confere proteção àqueles que dela tomem conhecimento através do próprio inventor, ou por terceiros, com base nas informações obtidas dos inventos ou em face de seus atos, ou através do INPI, por meio da publicação do pedido de patente depositado sem o consentimento do inventor, tudo desde que o pedido tenha sido depositado até um ano após a divulgação (artigo 45, § 2º, e artigo 12, da Lei 9.279/96). [...] Em segundo lugar, para que se configure a ocorrência da previsão legal, é condição a exploração do invento, pelo usuário, no Brasil, assegurando-se, então, o direito à continuidade do empreendimento, sem ônus, na forma e na condição em que já se desenvolvia. E neste ponto, abstraindo-se a eventual identidade ou não de mecanismos utilizados pelas partes, tenho que a norma não confere amparo à pretensão da Autora. Não se põe em dúvida que a Demandante tenha, de fato, produzido um equipamento dotado de esteiras, as quais conduziam o calcário até o momento em que, por ação da gravidade, este era depositado no solo. [...] Ocorre que os elementos probatórios não permitem concluir que houve uma efetiva exploração, verdadeira atividade econômica desenvolvida em torno da invenção. Ainda que o equipamento distribuidor de calcário desenvolvido pela Autora e enviado em consignação para a empresa Comércio de Máquinas Agrícolas Justi Ltda. utilize, efetivamente, o mesmo princípio mecânico patenteado pelo Requerido, não se pode entender a produção de um único protótipo, na história de uma empresa que tem por objeto social, entre outros, justamente a fabricação de máquinas e implementos agrícolas, como uma séria disposição em explorar o invento [...] Não se vislumbra, enfim, um quadro de efetiva exploração do implemento idealizado, mas de concreta desistência da sua fabricação, o que se deveu também à estrutura de que dispunha, não havendo que se falar nem mesmo em preparativos para a exploração.”
O TJRS em Cavaletti Estofados para Escritórios Ltda v. Multiflex Estofados para Escritórios Ltda.[20] entendeu que um concorrente que comercializava objeto de patente posterior mas que não como apresentar provas técnicas que possam ser utilizadas para anular a dita patente, pode-se valer da prerrogativa de usuário anterior para não ter de pagar indenização por contrafação da mesma patente: “O Perito apresentou Laudo Complementar. Ratificou o Laudo anterior e esclareceu que “não é possível asseverar, com absoluta certeza, pois isto só aconteceria se fosse possível retornarmos no tempo. Mas pode se dizer que todos os indícios apontam para a existência do mecanismo na época da venda destas cadeiras, devido ao número de patrimônio afixado na base das cadeiras, o qual se encontra na Nota Fiscal referida e no controle patrimonial da Prefeitura Municipal de Getúlio Vargas. Pois não há sinal de remarcação ou substituição recente dos dispositivos. Também deve ser considerado o depoimento de empresários do setor, consultados pelo perito, que afirmam que na época já havia este mecanismo de regulagem tal como o objeto da patente posteriormente depositada”.
O juiz conclui: “Entendo, pois, que não é conclusiva o bastante para afirmar a nulidade de patente, o que só poderia ser declarado na ação própria, perante a justiça federal [...]A perícia é suficiente e demonstra que não se pode fazer incidir efeitos decorrentes da patente sobre partes que gozam do abrigo legal oferecido pelo art. 45, da LPI, eis que demonstrada a boa-fé e a anterioridade na exploração do objeto, pois “o direito industrial protege a pessoa que primeiro reivindica a sua proteção, não necessariamente a primeira a conceber o bem intelectual”. [...] Assim, reafirmo que não houve comportamento ilícito por parte das apeladas e que não considero proporcional condená-las ao pagamento de uma indenização e paralisar suas atividades de fabricação e comercialização quando agiram ao abrigo da lei, não agredindo norma constitucional ou ordinária.”
Segundo Gabriel Di Blasi: “se o usuário anterior explorou o objeto em sigilo, talvez ele não tenha interesse em exercer tal direito, pelo fato de não se sentir ameaçado pelo titular da patente, pois, este último nunca tomará ciência da existência de um usuário anterior, que explorava o objeto de sua patente antes da data do respectivo depósito. Como exemplo, pode-se citar o caso em que o objeto do uso anterior é um processo de fabricação, cuja prova de uso é difícil de realizar” [21].
Na França o Código de propriedade intelectual no artigo L.613-7 preserva os direitos do usuário anterior. Este mecanismo foi introduzido com a lei de 1968. O ônus da prova incide sobre o demandante de direitos de usuário anterior, que deverá provar que tinha posse de tal patente, em território francês, na data de depósito ou prioridade (se houver) da mesma. [22] Um uso anterior no estrangeiro não poderá invocar o direito de usuário anterior na França.[23] Segundo Pollaud Dulian embora o uso se deva concretizar em território francês não importa qual a origem deste conhecimento tenha sido no estrangeiro, pouco importa o local de aquisição desta tecnologia. Para autores como Pouillet, Foyer e Vivant o direito de usuário anterior não constitui propriamente um direito mas de um meio de defesa, mas um direito de exploração em razão de uma possessão pessoal anterior. Segundo Pollaud Dullian: “de qualquer maneira o benefício e exercício de tais direitos estão contidos dentro de limites estreitos, precisamente porque ele constitui uma violação do monopólio”. [24] A possessão pessoal anterior deve ser certa e evidente. O usuário anterior deve estar de boa fé e ter conservado a invenção em segredo, caso contrário este uso anterior pode ser invocado contra a novidade da patente que desta forma entra no domínio público.
Sistema de Propriedade Industrial no
Direito brasileiro, Lucas Rocha Furtado, Brasília:Ed. Brasília Jurídica, 1996,
p. 55
[11] PHILIPP, Fernando Eid. Patentes de
invenção: extensão da proteção e hipóteses de violação. São Paulo: Ed.
Juarez de Oliveira, 2006. p. 55.
[12] LABRUNIE, Jacques. Direito de Patentes:
condições legais de obtenção e nulidades, São Paulo: Manole, 2006, p. 139.
APELAÇÃO CÍVEL N° 1.0024.01.551112-4/002 -
COMARCA DE BELO HORIZONTE - APELANTE(S): ALOÍSIO RODRIGUES PEREIRA E
OUTRO(A)(S) - APELADO(A)(S): AMBIENTE PROJETOS EXECUÇÃO LTDA - RELATOR: EXMO.
SR. DES. TIAGO PINTO Data do Julgamento: 04/06/2009 Data da Publicação:
01/07/2009
[21] Di BLASI, Gabriel. A propriedade
Industrial: os sistemas de marcas, patentes, desenhos industriais e
transferência de tecnologia, Rio de Janeiro: Ed. Forense: 2010, p. 261.