quinta-feira, 26 de março de 2015

Proteção do conhecimento indígena

A pervinca-cor-de–rosa, descoberta na floresta tropical de Madagascar contém uma característica genética única que pode ser usada como produto farmacêutico para certos tipos de cancro. A Eli Lilly, a companhia farmacêutica que desenvolveu a droga, obteve lucros de US$160 milhões em 1993 com sua venda, ao passo que Madagascar não recebeu um centavo de compensação pela expropriação de um dos seus recursos naturais [1]. O bioquímico inglês Conrad Gorinsky, que viveu até os 17 anos junto a comunidade dos wapixanas de Roraima, patenteou (EP610059, US5786385) o princípio ativo do cunaniol, registrado pelo químico como polyacetylenes, obtido do arbusto Cunani (Clibatium sylvestre). A substância é apontada como um poderoso estimulante do sistema nervoso central, um neuromuscular capaz de reverter quadros de bloqueio do coração, porém o pesquisador se negou a pagar qualquer compensação aos wapixanas [2].

Nos Estados Unidos, em maio de 2008, uma decisão judicial condenou o norte americano Larry Proctor por prática de biopirataria. O empresário, dono de uma empresa de sementes, encontrou no México um feijão amarelo, que adquiriu e plantou no Colorado. Em seguida, afirmando que o feijão seria o resultado de cruzamentos únicos no mundo, batizou-o no USPTO com o nome da mulher e patenteou-o em 1996 como feijão Enola (US5894079). Quando as empresas mexicanas começaram a exportar esse feijão para os EUA a Proctor exigiu o pagamento de 60 centavos de dólar por cada libra de feijão importada, para proteger o seu mercado. Os agricultores mexicanos não podiam pagar e as importações sofreram uma forte queda. Desde 2001, a FAO e o Centro Internacional para a Agricultura Tropical (CIAT) têm tentado recuperar a patente do feijão, e conseguiram provar que o “feijão Enola” era uma espécie já conhecida e identificada no banco de sementes do CIAT situado na cidade colombiana de Cali e que possui a maior reserva de feijão do mundo, com mais de 35 mil variedades [3].

Estudos divulgados pela OMPI[4] examinam a forma de se proteger tais conhecimentos e as possibilidades de uma proteção específica, sui generis. A Índia criou em 2005 uma base de dados digital sobre conhecimento tradicional chamada TKDL (Traditional Knowledge Digital Library)[5] e contribuiu junto à WIPO para o desenvolvimento de um esquema de classificação detalhado nesta área como forma de facilitar o acesso a estes documentos nas buscas de patentes. Carlos Correa aponta que os movimentos em defesa do acesso ao conhecimento A2K que defendem a flexibilização das leis de propriedade intelectual divergem com relação a necessidade de defesa dos direitos de conhecimento tradicional[6]. Enquanto alguns por coerência alegam que tais conhecimentos não devam ser protegidos alguns segmentos do mesmo movimento A2K alegam que seria necessário garantir a defesa de tais direitos para as comunidades tradicionais. O Panamá tem em sua legislação de 2002 uma previsão de proteção de tais conhecimentos tradicionais de povos indígenas. O Peru também possui legislação similar relativa a recursos biológicos, muita embora tenha atraído pouco interesse dos povos indígenas.[7] Carlos Correa aponta que a própria definição do que constitua domínio público varia segundo as legislações nacionais o que dificulta um acordo internacional para proteção de conhecimentos tradicionais. A Declaração da ONU sobre os direitos de povos indígenas de setembro de 2007 prevê no artigo 31 que os povos indígenas  “tem o direito de manter, controlar, proteger e desenvolver sua propriedade intelectual sobre sua herança cultural, conhecimento tradicional e expressões culturais tradicionais”.[8] Com relação as dificuldades dos povos indígenas exercerem seus direitos de propriedade, Carlos Correa aponta como solução o papel das ONGs, como foi o caso da ayahuasca (banisteriopsis caapi) patenteada pelo pesquisador Loren Miller nos Estados Unidos e que teve a patente anulada por intervenção da Coordenadoria das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (Coica), pela Aliança para os povos Indígenas e Tradicionais da Bacia Amazônica e pelo Centro de Direito Internacional do Meio Ambiente (Ciel).

Segundo o TOREF (Tratado da OMPI sobre as Representações ou Execuções e sobre os Fonogramas), em vigor em maio de 2002, os direitos conexos também podem ser utilizados para proteger a expressão cultural, em grande parte não escrita, de muitos países em desenvolvimento. O folclore pode deste modo ser protegido indiretamente. A recompensa financeira por tais representações ou execuções e por tais fonogramas muitas vezes reverte à comunidade donde provém o folclore, embora isto aconteça menos frequentemente no caso do produtor de fonogramas[9]. Jerome Reichman critica os países desenvolvidos que moldaram o direito autoral de tal forma a poder proteger programas de computador no entanto argumentam que não possível qualquer adaptação no direito autoral para que se possa a proteger o folclore.[10]

O fato de muitas vezes o autor da obra folclórica em questão ser desconhecido não constitui impedimento para a proteção por direito autoral que expressamente provê no artigo 45 inciso II da Lei 9610/98 que “além das obras em relação às quais decorreu o prazo de proteção aos direitos patrimoniais, pertencem ao domínio as de autor desconhecido, ressalvada a proteção legal aos conhecimentos étnicos e tradicionais”. No caso de obras de artesanato, Antonio Chaves, mesmo sob a égide da LDA 5988/73 que permite a reprodução em caso de exemplar único (dispositivo não mais presente na LDA 9160/98), entende ser tal obra protegida por direito autoral e conclui: “entendemo-nos na demonstração do absurdo da interpretação de que quem adquire uma peça de obra de arte plástica obtém o direito de reproduzi-la ou expô-la ao público”[11].

Denis Barbosa, contudo, chama a atenção de que a ênfase excessiva dos países menos desenvolvidos na proteção de conhecimentos tradicionais e folclore, talvez possa estar desviando o foco para questões mais importantes: “Ante a importância da difusão da tecnologia, e do acesso à informação gerada pelos setores mais dinâmicos da economia e da criação contemporânea, tais valores tradicionais são certamente significativos. No entanto, qualitativa e quantitativamente, são marginais. Os remédios contra a AIDS, se não fossem licenciados compulsoriamente, não poderiam ser substituídos pelo encantamento de algum pajé. Concentrar em tais temas a libido dos países em desenvolvimento é deixar que os dedos se percam, para concentrar a atenção nos anéis que ficam, em toda sua cintilante irrelevância”[12].

Cláudio Barbosa questiona a existência do conceito usual de novidade em patentes para tais conhecimento tradicionais: “Ainda que alguns doutrinadores considerem que esses conhecimentos tradicionais não estejam em domínio público, tal construção doutrinária não apresenta prima facie elementos suficientes de convencimento, ainda que o mesmo seja considerado uma propriedade coletiva. Mesmo sem a concordância de que os objetivos para a proteção dos conhecimentos tradicionais são genuínos e humanitários, os mesmos escapam do enfoque à proteção dos bens intelectuais, recaindo no conceito de proteção ao domínio público”.[13]



[1] RIFKIN, Jeremy. O século Biotech: dominando o gene e recriando o mundo. Portugal: Publicações Europa-América, 2000, p. 58.
[2] http: //www.redetec.org.br/inventabrasil/cunan.htm.
[3] Biopirataria sofre revés nos EUA mai. 2008 http: //www.esquerda.net/content/biopirataria-sofre-rev%C3%A9s-nos-eua.
[4] http://www.wipo.int/meetings/en/details.jsp?meeting_id=4795
[5] DRAHOS, Peter. The global governance of knowledge: patent offices and their clients. Cambrige University Press:United Kingdom, 2010, p.218
[6] ATTEBERRY, Jeffrey. Information/Knowledge in the global society control: A2K theory and post
Colonial commons; SELL, Susan. A comparision of A2K movements: rom medicines to farmers. In: KRIKORIAN, Gaelle; KAPCZYNSKI, Amy. Access to knowledge in the age of intellectual property, Zone Books: Nova Iorque, 2010, p.329, 408
[7] CORREA, Carlos. Acess to knowledge: the case of indigenous and traditional knowledge. In: KRIKORIAN, Gaelle; KAPCZYNSKI, Amy. Access to knowledge in the age of intellectual property, Zone Books: Nova Iorque, 2010, p.243
[8] CORREA, Carlos. Acess to knowledge: the case of indigenous and traditional knowledge. In: KRIKORIAN, Gaelle; KAPCZYNSKI, Amy. Access to knowledge in the age of intellectual property, Zone Books: Nova Iorque, 2010, p.246
[9] Curso DL-201 WIPO – Direitos Autorais
[10] MAY, Christopher; SELL, Susan. Intellectual Property Rights: a critical history. Lynne Rjenner Publishers: London, 2006, p.5
[11] Direito de Autor: princípios fundamentais, Antonio Chaves, Rio de Janeiro:Forense, 1987, p.298
[12] Usucapião de patentes e outros estudos de propriedade industrial, Denis Barbosa. Rio de Janeiro:Ed. Lumen Juris, 2006, p.443
[13] BARBOSA, Cláudio. Propriedade Intelectual: introdução à propriedade intelectual como informação. Rio de Janeiro:Elsevier, 2009, p.110

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