Os bens
imateriais e as possibilidades de apropriação segundo a doutrina marxista
Antonio Carlos Souza de
Abrantes
Abril de 2014
Resumo: A obra de
Marx embora tenha foco na produção material de produtos pode ser compreendida
dentro de uma perspectiva mais ampla para contemplar também os chamados bens
imateriais, como as invenções de produtos e processos aplicados na indústria.
Este conteúdo imaterial igualmente pode ser submetido à apropriação pelo
capitalista como parte integrante do modo de produção capitalista que busca
dissociar os trabalhadores de seus meios de produção. O artigo conclui que
tanto a existência de um trabalho dito imaterial, como a possibilidade de
apropriação deste são dois conceitos compatíveis com o referencial teórico
marxista.
No Manifesto Comunista Karl Marx e Engels mostram que o
comunismo tem como proposta a abolição da propriedade privada: “A característica particular do comunismo não
é a abolição da propriedade em geral, mas a abolição da propriedade burguesa.
Mas a propriedade privada atual, a propriedade burguesa, é a expressão final do
sistema de produção e apropriação que é baseada em antagonismos de classes, na
exploração de muitos por poucos. Nesse sentido, a teoria dos comunistas pode
ser resumida nessa frase: abolição da propriedade privada”. A negação do
conceito de propriedade privada do capital se refere aos meios de produção na
terminologia marxista. Nesta perspectiva a propriedade industrial de invenções
como máquinas e tecnologia utilizadas na indústria, como meios de produção,
dada sua natureza intrínseca de propriedade privada seria vista como uma
propriedade burguesa e, portanto, incompatível com a teoria marxista.
Para Marx os meios de produção são passíveis de apropriação
pela classe capitalista e este é um dos elementos centrais do capitalismo, que
privou o trabalhador da posse de seus próprios meios de produção. Com o
comunismo abre-se a possibilidade de estabelecer um regime de propriedade comum
dos meios de produção “o modo de
apropriação capitalista, que deriva do modo de produção capitalista, ou seja, a
propriedade privada capitalista, é a primeira negação da propriedade privada
individual, fundada no trabalho próprio [quando os trabalhados são despossuídos
de seus instrumentos de trabalho e meios de produção; para Marx a propriedade privada fundada no
trabalho pessoal é suplantada pela propriedade privada capitalista, fundada na
exploração do trabalho de outrem, sobre o trabalho assalariado]. Todavia, a
produção capitalista produz, com a mesma necessidade de um processo natural sua
própria negação [Marx trata aqui da tendência ao monopólio do capital e a
revolta da classe trabalhadora]. É a negação da negação. Ela não restabelece a
propriedade privada, mas a propriedade individual sobre a base daquilo que foi
conquistado na era capitalista, isto é, sobre a base da cooperação e da posse
comum da terra e dos meios de produção produzidos pelo próprio trabalho”.
Não podemos, contudo, inferir disto que o trabalho
intelectual não possa ser apropriado ou tenha papel secundário na obra de Marx,
pelo contrário. Em sua teoria de valor, seguindo economistas como Adam Smith e
David Ricardo, Marx destaca que a grandeza de valor de uma mercadoria varia na
razão direta da quantidade de trabalho nele realizado
. O valor
de uma mercadoria é determinado pelo tempo de trabalho requerido para sua
produção
. Ao
comparar o valor de um casaco com o linho Marx observa que “
o linho contém somente a metade do trabalho
contido no casaco, pois para a produção do último requer-se um dispêndio de
força de trabalho durante o dobro de tempo necessário à produção do primeiro”.
No
entanto, Marx em seu cômputo considera tanto o trabalho físico com o braçal
incorporado em cada produto: “
Todo o
trabalho é, por um lado, dispêndio de força humana de trabalho, em sentido
fisiológico, e graças a essa propriedade de trabalho humano igual ou abstrato
ele gera o valor das mercadorias”.
Para
Marx este trabalho abstrato é parte integrante da formação de valor: “
o corpo da mercadoria que serve de equivalente
vale sempre como incorporação de trabalho humano abstrato e é sempre o produto
de um determinado trabalho útil, concreto [...] Constitui uma segunda
propriedade da forma de equivalente que o trabalho concreto torne-se forma de
manifestação de seu contrário, trabalho humano abstrato”.
O conteúdo informacional de uma mercadoria, portanto,
conjunto de tecnologias embutido para realização de um processo fabril,
encontra-se incorporado na formação de preço de um produto na medida em que
envolve tempo de trabalho útil. Vinícius Santos da mesma forma entende que a
obra de Marx destaca o papel do trabalho imaterial na formação de valor de um
produto. Não se faz até mesmo necessário que este trabalho gera um produto
físico propriamente dito, que possa ser quantificado. Para Marx nos
Grundisse o trabalho de composição de
uma obra, trabalho imaterial, portanto, trata-se de um trabalho “
da maior seriedade e do mais intenso esforço”.
Para
Vinícius Santos a teoria de valor de Marx promove uma inovação frente aos economistas
clássicos Adam Smith e David Ricardo ao destacar o aspecto qualitativo do
valor, ou seja, suas conexões com respeito às relações sociais na produção de
uma mercadoria, as relações humanas sob as quais as coisas são produzidas.
Desta forma a teoria de valor de Marx aplicaria-se da mesma forma ao trabalho
considerado imaterial, aquele destituído da produção de um corpo material
propriamente dito
Sérgio Lessa questiona o próprio conceito de um “
trabalho imaterial”, tendo como foco as
implicações políticas desta tese, que poderia levar a um abrandamento dos
conflitos de classe entre proletários e capitalistas na medida em que o papel
destes dois atores estaria cada vez menos claramente delimitado em nossa
sociedade pós industrial. Segundo Sérgio Lessa: “
O trabalho tem por seu nódulo mais decisivo a transformação do real,
não há nenhum ato de trabalho que não transforme o real [...] Se o trabalho
produz algo que tem existência fora da subjetividade que o criou – e só desse
modo pode ser trocado entre indivíduos pela mediação do mercado – é inegável
que esse objeto possui uma materialidade portadora de utilidade, uma
materialidade que expressa as necessidades de quem as produziu”.
Para os
propósitos deste artigo a crítica de Carlos Lessa não se aplica pois que uma
invenção, entendida como a solução
de problema técnico, invariavelmente está conectado a um produto ou processo
com aplicação industrial. Este conceito inventivo envolvido em um produto ou
processo industrial tem como característica fundamental o bem imaterial fruto
de um trabalho imaterial.
Segundo Pontes de Miranda [10] “O
que é objeto do direito sobre a invenção é o bem incorpóreo”. Para Adib
Casseb: “o bem imaterial é representado
exclusivamente pela ideia, independente da coisa material em que ela se
exteriorizou. È a ideia que constitui o bem imaterial, independentemente do
objeto material que lhe serve de meio de expressão”. Para
Gama Cerqueira: “o direito do inventor é um
direito privado patrimonial, de caráter real, constituindo uma propriedade
temporária e resolúvel, que tem por objeto um bem imaterial: a invenção [...] o
objeto sobre o qual o inventor exerce o seu direito é a sua ideia, a sua
concepção, isto é, a ideia da invenção por ele realizada, a solução por ele encontrada,
e não simplesmente a forma concreta de realização, o exemplar em que se
encontram reunidos os meios indicados na patente, nem o agrupamento dos meios
imaginados e descritos para realizar sua ideia. O objeto da invenção, é pois,
este bem imaterial – a ideia de solução – ou – a ideia de invenção. Ou, por
outra, o objeto do direito não é a invenção concretizada e materializada, mas a
invenção abstratamente considerada. Isto explica porque podem coexistir,
independentemente, a propriedade da coisa material, em que se concretiza a
invenção,e a propriedade do inventor sobre a sua invenção. Por isso, a venda do
objeto privilegiado não envolve a transmissão do direito do inventor, nem viola
o seu privilégio, salvo no caso de contrafação” [12]
Para Marx o trabalho
não
necessariamente resulta em um objeto material físico. Segundo Vinícius Santos:
“O trabalho seria, para Marx, uma
atividade exclusivamente humana por meio da qual há um dispêndio de energia
física e mental para a produção de algum valor de uso, de alguma utilidade para satisfazer uma necessidade específica, sem
importar qual a sua natureza dessa necessidade, seja ela do estômago ou da
fantasia”.
Para Marx, o processo de trabalho na produção de uma mercadoria tem como
elemento indissociável o trabalho intelectual “
como no sistema natural cabeça e mão estão interligados, o processo de
trabalho une o trabalho intelectual com o trabalho manual. Mais tarde
separam-se até se oporem como inimigos”.
Somente
quando este trabalho produz um efeito útil exteriorizado, separado da
individualidade do trabalhador, independente de resultar em um produto físico,
é que este trabalho pode ser qualificado como produtivo e passível de ser
inserido na lógica da produção capitalista, uma vez que passível de
apropriação.
Nesse sentido, Marx considera passíveis de serem apropriadas pela lógica de
produção capitalista o trabalho imaterial de um escritor ou de uma cantora: “
se contratada por um empresário que a põe a
cantar para ganhar dinheiro, é uma trabalhadora produtiva, pois produz
diretamente para o capital”.
Neste
sentido, um pesquisador em um laboratório de P&D que trabalha em uma
invenção da mesma forma, segundo Marx, é um exemplo de trabalho produtivo
passível de apropriação pela lógica capitalista.
Não por acaso, Marx refere-se textualmente ao inventor
Richard Arkwright, conhecido por ter acionado judicialmente concorrentes por
violação de suas patentes, como tendo se apropriado indevidamente de invenções
das quais não tinha direito. Ao criticar Arkwright, Marx reconhece a
legitimidade de tais apropriações do capital intelectual: "
Quem quer que conheça a biografia de
Arkwright jamais lançará a palavra de <nobre> ao rosto desse barbeiro
genial. De todos os grande inventores do século XVIII, ele foi,
indiscutivelmente, o maior ladrão de inventos alheios e o sujeito mais
ordinário"
. Marx a
refere-se a patente de 1794 do “
grande
gênio de Watt” e que marca o período da manufatura como tendo desenvolvido
os primeiros elementos científicos e técnicos da grande indústria.
Não há
qualquer evidência que Marx esteja sendo irônico neste trecho com Watt ou com a
ciência, pois marxistas como Louis Althusser destacam que a obra de Marx abre o
conhecimento científico, antes restrito à física e matemática, também para o
estudo da história.
Se por um lado o conteúdo intelectual envolvido na produção
de uma mercadoria é fundamental, por outro a maquinaria possibilita a
reorganização da forma social com que esse conteúdo intelectual será
apropriado, permitindo transferir-se do domínio do trabalhador para a do
capitalista. Marx trata dos efeitos da mecanização que teria, segundo ele,
subtraído do trabalhador o conteúdo intelectual do trabalho e transferido para
a máquina, transformando o trabalhador num autômato, um “
acessório autoconsciente de uma máquina”
, num
trabalhador parcial. : “
Os conhecimento,
a compreensão e a vontade que o camponês ou artesão independente desenvolve,
ainda que em pequena escala [..] passam agora a ser exigidos apenas pela
oficina em sua totalidade. As potências intelectuais da produção, ampliando sua
escala por um lado, desaparecem por muitos outros lados.O que os trabalhadores
parciais perdem concentra-se defronte a eles no capital. É um produto da
divisão manufatureira do trabalho opor-lhes as potências intelectuais do
processo material de produção como propriedade alheia e como poder que os
domina. Esse processo de cisão começa na cooperação simples, em que o
capitalista representa diante dos trabalhadores individuais a unidade e a
vontade do corpo social de trabalho. Ele se desenvolve na manufatura, que
mutila o trabalhador, fazendo dele um trabalhador parcial, e se consuma na
grande indústria, que separa do trabalho a ciência como potência autônoma de
produção e a obriga a servir ao capital [...] Transformado num autômato, o
próprio meio de trabalho se confronta , durante o processo de trabalho, com o
trabalhado como capital, como trabalho morto a dominar e sugar a força de
trabalho viva. A cisão entre as potências intelectuais do processo de produção
e o trabalho manual, assim como a transformação daquelas em potências do
capital sobre o trabalho, consuma-se, como já indicado anteriormente, na grande
indústria, erguida sobre a base da maquinaria. A habilidade detalhista do
operador de máquinas individual, esvaziado, desaparece como coisa diminuta e
secundária perante a ciência, perante as enormes potências da natureza e do
trabalho social massivo que estão incorporadas no sistema de maquinaria e
constituem com este último, o poder do patrão”.
O
capital impõe, portanto, um processo de “
estupidificação”
do
trabalhador parcial, já detectado na obra de Adam Smith. Perícia e destreza
deixam de ser atributos de valor para um trabalhador.
Para Marx o capitalismo traz em si um impulso constante no
sentido de renovar e aperfeiçoar os meios de produção: “
a burguesia não pode existir sem revolucionar constantemente os
instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso,
todas as relações sociais”.
Segundo
Karl Marx “
a indústria moderna jamais considera nem trata como definitiva a forma existente
de um processo de produção. Sua base técnica é, por isso, revolucionária, ao
passo que a de todos os modos de produção anteriores era essencialmente
conservadora. Por meio da maquinaria, de processos químicos e outros métodos,
ela revoluciona continuamente, com a base técnica de produção, as funções dos
trabalhadores e as combinações sociais do processo de trabalho”.
Enquanto escreve O Capital, no texto “Fragmentos sobre as
máquinas”, Karl Marx deixa claro a primazia do capital intelectual sobre as
formas de produção do capitalismo: “A
natureza não constrói máquinas, nem locomotivas, nem ferrovias, nem o telegráfo
etc. São estas produtos da indústria humana: material natural transformado em
órgãos da vontade humana sobre a natureza ou da sua atuação na natureza. São
órgãos do cérebro humano criados pela mão humana; força objetivada do
conhecimento. O desenvolvimento do capital fixo (máquinas, por exemplo) revela
até que ponto o conhecimento ou o conhecimento social geral se converteu em
força produtiva imediata e, portanto, até que ponto as condições do processo da vida social mesma
estão sob o controle do intelecto geral e remodeladas conforme ele mesmo. Até
que ponto as forças produtivas sociais são produzidas não somente na forma de conhecimento, mas sim como órgãos
imediatos da prática social, do processo da vida real”.
Portanto na obra de Marx torna-se claro que o trabalho
intelectual como componente central na formação de valor das mercadorias não
somente pode ser apropriado, como a maquinaria é apontada como um dos
mecanismos do capitalista para que esta apropriação ocorra dentro dos domínios
do capitalista. Embora não trate diretamente do tema podemos concluir que um
sistema de proteção da propriedade intelectual opera de forma similar ao que a
maquinaria proporciona como forma de se proteger a propriedade intelectual das
técnicas úteis à indústria na fabricação das mercadorias em unidades fabris.
Este entendimento parece corroborado por autores marxistas como Antonio
Figueira Barbosa: “Os objetos de proteção
da propriedade imaterial, em função da utilidade das matérias protegidas ás
esferas de produção ou de comercialização, estão referenciados à essência ou a
forma dessas matérias. Assim, cumpre ressaltar que a essência do trabalho
intelectual – a ideia criada – unicamente tem proteção quando útil à esfera da
produção econômica”.
Marx destaca que a invenção é um processo social. Ao tratar
da máquina de fiar de John Wyat, Marx observa que “
antes, ainda que muito imperfeitas, foram utilizadas máquinas para
torcer o fio, provavelmente na Itália pela primeira vez. Uma história crítica
da tecnologia provavelmente o quão pouco qualquer invenção do século XVIII pode
ser atribuída a um único indivíduo. Até então, tal obra inexiste [...] As
invenções de Vaucanson, Arkwright, Watt, etc só puderam ser realizadas porque
esses inventores encontraram à sua disposição, previamente fornecida pelo
período manufatureiro, uma quantidade considerável de hábeis mecânicos”.
Esta
característica de transformar o trabalho antes isolado dos mestres artesãos
independentes em um trabalho social como construção coletiva, faz parte do
modus operando do capitalismo. Segundo Marx: “
Se o modo de produção capitalista se apresenta, portanto, por um lado,
como uma necessidade histórica para a transformação do processo de trabalho em
um processo social, então, por outro lado, essa forma social do processo de
trabalho apresenta-se como um método, empregado pelo capital, para, mediante o
aumento da sua força produtiva, explorá-lo mais lucrativamente”.
Como
trabalho coletivo, Marx leva em conta tanto o trabalho manual para produção do
produto como o trabalho de engenheiros e pesquisadores que trabalham na
concepção do produto, pois ambos estão igualmente submetidos ao capital: “
é absolutamente indiferente que a função
deste ou daquele trabalhador, mero elo deste trabalhador coletivo, esteja mais
próxima ou mais distante do trabalho manual direto”.
A
imaterialidade do trabalho não produz qualquer diferença conceitual como
trabalho produtivo. No Grundisse Marx reafirma a igualdade de pesos entre o
trabalho manual e o intelectual: “
o fato
de que o mais-valor tem de se expressar em um produto material é concepção
rudimentar que ainda figura em Adam Smith. Os atores são trabalhadores
produtivos não porque produzem o espetáculo, mas porque aumentam a riqueza de
seu empregador. Todavia, para essa relação, é absolutamente indiferente o tipo
de trabalho que é realizado, portanto em que forma o trabalho se materializa”.
O marxista Ricardo Antunes observa a ampliação do trabalho
na esfera imaterial como uma característica do capitalismo contemporâneo e tal
perspectiva segundo o autor encontra-se amparada na noção ampliada de trabalho
produtivo adotada por Karl Marx: “
As
novas dimensões e formas de trabalho vêm trazendo um alargamento, uma ampliação
e uma complexificação da atividade laborativa, de que a expansão do trabalho
imaterial é um exemplo. Trabalho material e imaterial, na imbricação crescente
que existe entre ambos, encontram-se, entretanto, centralmente subordinadas á
lógica da produção de mercadorias e de capital”.
O
desenvolvimento da sociedade pós industrial com a intensificação do elementos
informacional nos meios de produção como forma de se aumentar a produtividade
do trabalho e modificar a composição da parte orgânica do capital,
característica já detectada por Karl Marx, é reconhecida por marxistas como
Lojkine
, o
reconhecimento do papel do trabalho imaterial na lógica capitalista é portanto
um reflexo da cada vez maior interpenetração de atividades industriais e
atividades informacionais.
[10] MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Rio de
Janeiro: Borsoi, 1956. Tomo XVI, p. 207, 272 e 276.
[12] CERQUEIRA. op. cit. p. 143.