terça-feira, 22 de abril de 2014

Mulheres e patentes

Com relação ao gênero, estudos mostram que a invenção é um universo predominantemente masculino. Waverly Ding da Universidade da Califórnia, Fiona Muray do MIT e Tony Stuart da Harvard Business School realizaram estudo com uma amostra de cerca de 400 cientistas nos Estados Unidos no período de 30 anos [1]. O estudo mostrou que 6 por cento das 903 mulheres no grupo produziram apenas 92 patentes. No entanto, 13 por cento dos 3324 homens na amostra depositaram 1286 patentes, ou seja, os homens depositaram 14 vezes mais patentes que suas colegas cientistas. Marta González Garcia argumenta que no passado, a legislação de patentes em muitos casos restringia o direito de propriedade das patentes às mulheres, o que levava a que fossem apresentados os nomes do pai ou marido como responsável pelas invenções feitas pelas mulheres, tornando difícil o registro estatístico das invenções realizadas [2]. No estudo sobre o uso do sistema de patentes na Inglaterra dos séculos XVII e XVIII Christine MacLeod observa que menos de um por cento dos inventores detentores de patentes são mulheres.[3]

David J. Munroe (Columbia University), Jennifer Hunt (Rutger University), Hannah Herman e Jean-Philippe Garant (McGill University), mostraram que menos de 13% das patentes tem uma mulher entre os inventores nos países desenvolvidos (12,3% na Espanha; 10,3% nos EUA; 10,2% na França; e 4,7% na Alemanha, segundo dados de outros pesquisadores).[4] Segundo os autores, se essas diferenças fossem resolvidas, isso significaria um aumento imediato no PIB per capita americano de 2,7%.

As mulheres pouco aparecem como depositantes de patentes do século XIX, e quando isto ocorre quase sempre está relacionado a algum direito adquirido por herança. Por exemplo, o Decreto n.3872 de 18 de maio de 1867 prorroga o prazo do privilégio concedido pelo Decreto n. 2962 de 23 de agosto de 1862 a Manoel Joaquim de Oliveira para o preparo da tinta violeta. O requerimento foi feito em nome de sua viúva Ricarda Rosa de Oliveira [5].  No livro de Clovis Rodrigues, A Inventiva Brasileira consta o nome de Joanna Manocla com patentes de 1884 sobre preparo de azoto fosfato (Decreto 146) e fabricação de sangue seco (Decreto 171) como uma das primeiras mulheres a solicitar patentes no Brasil. Leandro Malavota aponta a francesa domiciliada no Rio de Janeiro Elisa Roux como titular de patente de maquinismo para loção de ouro, um aperfeiçoamento de maquinismo anterior obtido em 1829 por cessão de uma patente depositada no Brasil pelo alemão Frederico Bauer.[6]

Nos Estados Unidos Margareth Knight foi uma das primeiras mulheres a receber uma patente. Sua invenção mais famosa é o saco de papel de fundo chato assim como uma máquina que corta, dobra e cola o saco de papel numa única operação. A invenção surgiu enquanto trabalhava numa fábrica de sacos de papel após a Guerra Civil norte americana. Para construção do protótipo de sua máquina a inventora enviou o projeto para uma oficina de usinagem. Um dos funcionários da oficina aproveitou-se da situação de apressou-se em depositar uma patente. Margareth Knight conseguiu com sucesso na Justiça reverter a patente para seu nome em 1873. A história é surpreendente não apenas por uma mulher ter se destacado como precursora num universo de inventores majoritariamente dominado por homens, como pelo fato de ter conseguido valer seus direitos na Justiça [7].

Entre as mulheres inventoras podemos destacar Angela Robles (1949 – enciclopédia mecânica), Josephine Cochrane (1894 – lava louças), comunicações spread spectrum (1941 - Hedy Lamarr), guarda sol (Mary Dixon Kies, 1809, considerada a primeira mulher a ter uma patente concedida no USPTO), copiadora (Beulah Louise Henry, com mais de 50 patentes no USPTO), Bette Nesmith Graham (liquid paper, 1956), rampa de salto vertical (Hélène Dutrieu), Stephanie Kwolek (Kevlar, 1971), Grace Murray Hopper (linguagem COBOL, 1959), Marie Curie (radioatividade).[8] Jennifer Hunt et. al, fazem um estudo onde estimam que apenas em 10% das patentes concedidas pelo USPTO em 1998 ao menos uma mulher é listada como inventora. Este baixo índice se deve a menor participação de mulheres em cursos de engenharia e na carreira científica onde há uma maior propensão ao patenteamento.[9]


Margareth Knight [10]


[1] MACLAY, Kathleen. Study addresses gender, patents in academia. http: //www.universityofcalifornia.edu/news/article/8384. 
[2] GARCIA, Marta González; SEDEÑO, Eulalia Pérez. Ciência, tecnologia e gênero. In: SANTOS, Lucy Woellner dos; ICHIKAWA, Elisa; CARGANO, Doralice. Ciência, tecnologia e gênero. Londrina: IAPAR, 2006, p. 39. 
[3] GRIFFITHS, D. The exclusion of women from technology In: FAULKNER, Wendy; ARNOLD, Erik. Smothered by invention: technology in women’s lives, London, 1985. Cf. MacLEOD, Christine. Inventing the industrial revolution: the english patent system, 1660-1800, Cambridge:Cambridge University Press, 1988 p.225
[4] Jennifer Hunt, Jean-Philippe Garant, Hannah Herman, David J. Munroe, Why Don't Women Patent?, NBER, 2012 http://www.nber.org/papers/w17888
[5] Colecção das Leis do Imperio do Brasil, de 1867, tomo XXVII, Parte I, Rio de Janeiro, p.181.
[6] MALAVOTA,Leandro Miranda. A construção do sistema de patentes no Brasil: um olhar histórico, Rio de Janeiro:Lumen Juris, 2011, p. 97
[7] CHALLONER, Jack. 1001 invenções que mudaram o mundo. Rio de Janeiro:Ed. Sextante, 2010, p. 381. 
[8] http://www.abc.es/ciencia/20130308/abci-mujeres-inventoras-historia-201303071705_1.html
[9] HUNT, Jennifer; GARANT, Jean Philippe; heRMAN, Hannah; MUNROE, David. Why are women underrepresented amongst patentees ? Research Policy , n.42, p.831-843, 2013
[10] http://allwomenstalk.com/best-female-inventors/5/

domingo, 20 de abril de 2014

Visconde de Cairu e as patentes

Com o Alvará de 1809 ficava revogado o Alvará de 1785 que extinguira e proibira as indústrias e manufaturas brasileiras [1]. O Alvará de 1809 em seu artigo 6o refere-se a proteção concedida aos “inventores e introdutores de alguma nova máquina”. Ordenava o Alvará que se fizesse “uma exata revisão dos [privilégios] que se achavam concedidos, revogando-se os que, por falsa alegação ou sem bem fundadas razões, obtiveram semelhantes concessões” [2]. Para Visconde de Cairu ao conceder também privilégio aos introdutores de tecnologias estrangeiras no país “penso que a intenção do legislador é conceder igual benefício aos ditos introdutores, quando façam importar máquinas e invenções de países estranhos, durante o tempo das respectivas patentes. Essa lei é evidentemente política para atrair, quanto antes, ao estado os artistas eminentes e novos inventos”.[3] Visconde de Cairu lista entre os fatores que promovem a indústria de um país a disponibilidade de capitais, mão de obra, livre concorrência, disponibilidade de matérias primas, existência de um mercado, uma demanda pelos produtos. O sistema de patentes atua com um elemento deste processo mas incapaz de por si só alavancar a indústria no país: “os privilégios, prêmios e favores aos inventores nas artes e ciências é o requisito que completa os meios de fazer avançar a geral indústria para o auge de que é suscetível, havendo a discrição conveniente e nas devidas proporções, em conformidade aos objetos e méritos dos indivíduos. Mas este último expediente só tem ótimos resultados, onde ocorrem os outros requisitos que explanei. Aliás por si só, ou injudiciosamente empregados, pouco valem, e até produzem o efeito contrário ao destino”.[4]

Na interpretação de Visconde de Cairu um mínimo de inventividade é necessário para a concessão: “é sem questão que não se deve dar privilégio exclusivo ao inventor de insignificante novidade e simples alteração de forma nas obras das artes ordinárias, que não manifesta engenhosa combinação ou lavor difícil [...] Seria absurdo e indecente concedê-los por objetos notoriamente públicos, e já sem privilégio no país dos inventores” [5]. Ao não discriminar entre inventores e introdutores de máquinas protegidas em outros países, com a clara intenção de proteger os industriais ingleses que trouxessem maquinário para o Brasil, o dispositivo antecipava o tratamento nacional da Convenção da Paris, cerca de oitenta anos após. Visconde Cairu, contudo, alinhado com as teses liberais de Adam Smith e Jean Baptiste Say manifestava-se contra o exame prévio por entender ser uma ação inconveniente do Estado despreparado em avaliar tais solicitações de patentes e ao risco de avaliação injusta de uma burocracia estatal[6]. Visconde de Cairu faz referência ao preconceito dos sábios para auxílio no julgamento das patentes na medida em que estes, sábios em teoria, tendem a ter preconceito contra os inventores dotados de um conhecimento muito mais prático e cita o exemplo de Adam Smith que um dos maiores melhoramentos em bombas a vapor foi obtido por um rapaz servente. Segundo Visconde de Cairu: “se a invenção é quimérica, ou sem efeito útil, o inventor nada lucra, e não se agrava a pessoa alguma com o exclusivo: se é alheia, seu dono a reclamará, ou o público: se está já manifesta por generosidade do inventor, ou por ter expirado o prazo de seu privilégio, qualquer um tem a faculdade de requerer a revogação contra quem se disse o inventor ou o introdutor de invenção nova”. [7]

Visconde de Cairu [8]



[1] DOMINGUES, Douglas Gabriel. Direito Industrial – patentes, Rio de Janeiro: Forense, 1980. p. 17. 
[2] GNOCCHI, Alexandre. Propriedade Industrial: licenças & roialtes no Brasil, São Paulo: Rev. dos Tribunais, 1960, p. 130. 
[3] LISBOA, José da Silva. Observações sobre a fraqueza da indústria e estabelecimento de fábricas no Brasil, Brasília:Senado Federal, 1999, p.74
[4] LISBOA, José da Silva. Observações sobre a fraqueza da indústria e estabelecimento de fábricas no Brasil, Brasília:Senado Federal, 1999, p.67
[5] CARVALHO, Nuno. As origens do sistema brasileiro de patentes – o Alvará de 28 de abril de 1809 na confluência de políticas públicas divergentes. Revista da ABPI, n.91, nov.dez. 2007, p. 12; LISBOA, José da Silva. Observações sobre a fraqueza da indústria e estabelecimento de fábricas no Brasil, Brasília:Senado Federal, 1999, p.113 
[6] MALAVOTA,Leandro Miranda. A construção do sistema de patentes no Brasil: um olhar histórico, Rio de Janeiro:Lumen Juris, 2011, p. 60; LISBOA, José da Silva. Observações sobre a fraqueza da indústria e estabecimento de fábricas no Brasil, Brasília:Senado Federal, 1999, p.114
[7] LISBOA, José da Silva. Observações sobre a fraqueza da indústria e estabelecimento de fábricas no Brasil, Brasília:Senado Federal, 1999, p.114
[8] http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_da_Silva_Lisboa

sábado, 19 de abril de 2014

Abraham Lincoln e as patentes

Abraham Lincoln, presidente dos Estados Unidos e titular de uma patente (US6469 de 1849) referente a um sistema para retirar balsas dos bancos de areia do rio Mississipi[1], destaca o sistema de patente como o combustível do interesse em despertar a genialidade do inventor para descoberta de novas coisas úteis (fuel of interest to the fire of genius) expressão que encontra-se registrada no Centro de visitações da Casa Branca.[2] Lincoln chegou a afirmar que entre as descobertas mais importantes para o progresso da civilização estavam “a escrita [...]. a imprensa, a descoberta da América e a criação das leis de patentes”.[3] Depois da derrota apertada para Stephen Douglas na eleição de senador por Illinois em 1858, Lincoln em seus discursos destacava o papel das “descobertas e das invenções” que ele entendia ser um traço da economia norte americana: “Nós, aqui dos Estados Unidos, achamos que descobrimos, inventamos e aperfeiçoamos mais rápido que qualquer nação europeia. Eles podem achar que isso é arrogância, mas não podem negar que a Rússia nos chamou para lhes mostrar como construir barcos a vapor e ferrovias”.[4]

Abraham Lincoln [5]




[1] http://www.abrahamlincolnonline.org/lincoln/education/patent.htm
[2] ROSEN, William. The most powerful idea in the world: a story of steam, industry and invention. Randon House, 2010, p. 5541/6539 (kindle edition)
[3] http://www.abrahamlincolnonline.org/lincoln/speeches/discoveries.htm
[4] BASLER, Roy. The collected works of Abraham Lincoln, New York, Rutgers University, 1953-1955, cf. MORRIS, Charles, R. Os magnatas: como Andrew Carnegie, John Rockfeller, Jay Gould e J.P.Morgan inventaram a supereconomia americana, Porto Alegre:L&PM, 2006, p.21
[5] http://pt.wikipedia.org/wiki/Abraham_Lincoln

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Oposições ou subsídios ?

O site PeerToPatents[1] promoveu em julho de 2007 um projeto piloto em cooperação com o USPTO e a New York Law School no sentido de estimular a apresentação de subsídios ao exame de patentes. A iniciativa tem o apoio de empresas como a General Electric (GE), Hewlett-Packard (HP), International Business Machines (IBM), Microsoft e Red Hat. Em um ano de projeto, foram cadastrados cerca de 2 mil usuários e submetidos 173 documentos como anterioridades de 40 pedidos de patentes.[2] Relatório preliminar do programa mostra que 70% dos examinadores consideraram os resultados encorajadores e que o programa deveria ser incorporado à sua prática de exame como forma de proporcionar melhores resultados nas buscas de patentes.[3] A legislação norte-americana prevê a participação de subsídios nos procedimentos de reexame (35 USC § 311, 318), porém segundo Mark Lemley este sistema é pouco utilizado uma vez que a apresentação de tais subsídios na fase administrativa exclui o mesmo requerente de questionar posteriormente a patente em litígio. [4] Ademais o próprio instituto de reexame é pouco utilizado. Dados de 2000 a 2004 mostram que de cerca de 1,6 milhão de depósitos realizados no USPTO, foram concedidos no mesmo período aproximadamente 900 mil patentes sendo que apenas 53 solicitações de reexame.[5]
Outra possibilidade de subsídios nos Estados Unidos são os protestos apresentados por terceiros durante a pendência de um pedido de patente prevista no 37 C.F.R. § 1291[6] ou mesmo após a concessão da patente prevista no 37 C.F.R. § 1501.[7] Antes de 1999 quando os pedidos mantinham-se em sigilo até a data de concessão a possibilidade de apresentação de terceiros de subsídios por terceiros por este dispositivo era bastante reduzida na prática. De qualquer forma terceiros não participam do processo de exame, limitando-se a apresentar documentos considerados relevantes ao exame. [8] Jay R. Thomas argumenta que a melhoria de qualidade no exame de patentes necessariamente deve se orientar no sentido de atrair mais subsídios de terceiros, que deveriam ser estimulados a participar com algum tipo de bônus.[9]
Na Europa o Artigo 115 da EPC autoriza que terceiros apresentem documentos relevantes como subsídio ao exame, embora não seja um instrumento comumente utilizado uma vez que terceiros preferem apresentar suas anterioridades na fase de oposição onde terão o controle de expor o contexto em que esta documentação deva ser usada do que simplesmente apresentá-la ao examinar sem a oportunidade de se manifestar sobre ela.[10]
Em 2000 ainda sob o grande impacto na mídia contra a patente de one click shopping da Amazon, foi lançado o site Bountyquest pela CKM Digital com a proposta de coletar documentos de anterioridades para subsidiar litígios judiciais em patentes em troca de bônus para os melhores documentos. Para a patente da Amazon foram premiados três contribuições, muito embora nenhuma delas pudesse ser utilizada contra todas as reivindicações da patente. [11] Alguns meses após concedido o prêmio um novo subsídio apresentou um documento muito mais relevante. A grande quantidade de documentos, muitos dos quais de pouca relevância e a dificuldade de transmitir o conteúdo da patente em uma linguagem de fácil acesso ao público pouco acostumado com os meandros jurídicos de um documento de patente tornaram a iniciativa pouco promissora passada a euforia inicial da proposta.[12] Ademais os documentos acabaram sendo de pouca valia para o litígio entre a Amazon e a Barnes & Noble que terminou em acordo. Em 2003 o site já havia sido retirado do ar por perda de patrocinadores. [13]
Os escritórios do USPTO em 2008-2009 e posteriormente da Austrália em 2009 lançaram o projeto peer to patent,[14] que estimulava a participação da sociedade na busca de subsídios ao exame com apresentação de documentação que possa servir nas buscas.[15] Durante sua fase piloto no USPTO o projeto representou um acréscimo de 2000 vezes no número de subsídios ao exame apresentados no USPTO. A incidência de literatura NPL foi de quatro vezes superior ao índice de NPL encontrada nos procedimentos usuais de subsídios.
No projeto peertopatent um grupo de revisores pré selecionava os documentos antes que fossem enviados ao USPTO. Um máximo de dez documentos é submetido ao USPTO. Como a lei norte-americana proíbe subsídios de terceiros este projeto para não ser ilegal requeria o consentimento do depositante do pedido de patente para ser submetido ao projeto. Como compensação, o pedido de patente é examinado prioritariamente. O examinador podia contudo continuar realizando suas próprias buscas. Esta via constituía apenas um novo banco de dados onde pode consultar documentos para busca, com a vantagem de trazer um número significativamente maior de documentos NPL. Cerca de 90% dos examinadores que participaram do piloto consideraram a qualidade dos documentos apresentados útil e relevante para o exame. Cerca de 75% dos examinadores recomendaram a prática para o exame regular de pedidos de patente.
Um estudo de Kimberlle Weatherall avalia o sistema administrativo de oposição na Austrália em que terceiros podem, dentro de um prazo limitado de três meses, apresentar subsídios ao exame, antes da concessão da patente (pre-grant).[16] Muitos países abandonaram a experiência de oposição antes da concessão optando pela oposição após a concessão (post grant) diante do uso indevido do sistema anterior como forma de atrasar o exame de patentes. Assim, abandonaram o sistema de pre grant opposition: a Inglaterra pelo Patent Act de 1977[17], Japão em 1 de janeiro de 1996, China em 1992 e Taiwan em 2004.[18]  O Industrial Property Advisory Committee (PAC) australiano em estudo de 1984 recomendou o fim do sistema de oposição anterior à concessão, porém esta recomendação não foi acatada no Patent Act. Em 2010 o Advisory Council on Intellectual Property (ACIP) após analisar o dispositivo de pre grant opposition não indica qualquer necessidade de revisão diante da falta de evidências conclusivas que justificassem uma mudança[19]. 
O estudo de Kimberlle Weatherall examina 2361 pedidos de patente depositados entre 1980 e 2006 e que sofreram um procedimento de oposição. A média de pedidos depositados que sofreram pedidos de oposição é de apenas 0.8% do total, mantendo-se estável ao longo do período de estudo. Percentualmente as áreas tecnológicos com maior percentual de pedidos de oposição em relação aos depósitos realizados são metalurgia (2.24%), revestimentos (2.05%), tecnologia espacial (1.99%) e engenharia civil (1.63%), petróleo (1.44%), biotecnologia (1.36%) e fármacos (1.32%) o que mostra que a ocorrência de oposições é dependente da área tecnológica. Quanto ao atraso no exame provocado pelo procedimento de oposição (o sistema prevê a resposta do depositante e réplica pelo oponente, com três meses para cada etapa) , o estudo mostra uma média de 2,37 anos, um tempo considerado significativo. Cerca de 80% dos procedimentos de oposição não tem decisão de mérito por abandono do oponente no processo, por exemplo, por terem as partes chegado a alguma acordo. Os dados mostram que cerca de 75% dos pedidos que sofreram oposição terminaram concedidos, ainda que com emendas no pedido. A maior parte dos pedidos que sofrem oposição (32%) é de pedidos com origem na Austrália. Dos pedidos de oposição que tem o mérito julgado, 60% resultam em emendas do pedido, 32% em concessão da patente e apenas 10% em indeferimento. Das oposições que apresentaram documentos de anterioridade contra novidade e atividade inventiva do pedido em exame, no caso de documentos patentário o índice de aproveitamento de tais documentos é de cerca de 33% enquanto que para literatura não patentária de apenas 20%.



[1] http: //www.peertopatent.org/main/education.
[2] PeerToPatent First anniversary Report. The Centre for Patent Innovations, New York Law School. jun. 2008. http: //dotank.nyls.edu/communitypatent/P2Panniversaryreport.pdf.
[3] DRAHOS, Peter. The global governance of knowledge: patent offices and their clients. Cambrige University Press:United Kingdom, 2010, p.329
[4] BURK, Dan L.; LEMLEY, Mark, A. The patent crisis and how the Courts can solve it. The University of Chicago Press, 2009, p.22 (nota 8)
[5] DRAHOS, Peter. The global governance of knowledge: patent offices and their clients. Cambrige University Press:United Kingdom, 2010, p.69
[6] http://www.uspto.gov/web/offices/pac/mpep/s1901.html
[7] http://www.bitlaw.com/source/37cfr/1_501.html
[8] MERGES, Robert; MENELL, Peter; LEMLEY, Mark. Intellectual property in the new technological age. Aspen Publishers, 2006. p.162
[9] THOMAS, Jay. Collusion and Collective Action in the Patent System: A Proposal for Patent Bounties, University of Illinois Law Review, Vol. 2001, No. 1, Pp. 305-353, 2001 http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=248439
[10] GUELLEC, Dominique; POTTERIE, Bruno van Pottelsberghe de la. The economics of the european patent system. Great Britain:Oxford University Press, 2007, p.218
[11] http://www.oreillynet.com/pub/a/policy/2001/03/14/bounty.html
[12] http://oreilly.com/pub/a/oreilly/ask_tim/2003/bountyquest_1003.html
[13] http://en.wikipedia.org/wiki/Public_participation_in_patent_examination
[14] http: //en.wikipedia.org/wiki/Peer-to-Patent.
[15] http: //www.peertopatent.org/.
[16] WEATHERALL, Kimberlee; ROTSTEIN, Fiona; DENT, Chris; CHRISTIE, Andrew. Patent oppositions in Australia: the facts, UNSW Law Journal, 2011, v.34, p.93-135
[17] The British patent system: report of the committee to examine the patent system and patent Law, H.M. Stationery Office, Cmmd v.4407 (1970)
[18] Post Grant patent invalidation in China and the United States, Europe and Japan: a comparative study, 2004, v. 15 Fordham Intellectual Property Meida & entertainment Law Journal, p,273-298
[19] http://www.acip.gov.au/reviews/all-reviews/review-patent-enforcement/

terça-feira, 8 de abril de 2014

Trolls de patentes: PatCon 4

Em simpósio PatCon 4 promovido em abril de 2014 na University of San Diego School of Law John Duffy argumenta que a alienabilidade é uma característica de qualquer sistema de propriedade e da mesma forma se aplica às patentes. A visão atomística de pequenas empresas gerando tecnologia é compatível com a ação dos trolls na comercialização de patentes, na medida em que estes desenvolvem um mercado secundário de direitos patentários além de incentivar a construção de mecanismos que melhor permitam avaliar as patentes. Michael Meurer observa o aumento de litígios envolvendo trolls o que mostra que eles estão jogando com o sistema, o que reporesenta um imposto sobre inovação. As estimativas de perdas são de 29 bilhões de dólares em uma metodologia e cerca de 80 bilhões em outra metodologia. Colleen Chien mostrou que 55% dos réus destas ações são pequenas empresas. Para David Schwartz não importa quem seja o titular destas patentes. A questão central é saber se estas patentes são triviais. Não hpa dados conclusivos sobre a qualidade destas patentes. Não importa se o número de litígios aumentou, a questão é quantos desses casos são baseados em patentes triviais. Michael Meurer em seu estudo chmada de Patent Assertion Entities (PAE) aqueles que detem patentes mas que não a exploram, mas isto inclui as universidades, pequenos inventores e star ups mal sucedidas, assim como especuladores.
 Para Mark Lemley os trolls são o sintoma de algo sistemático está errado no sistema de patentes. As pessoas vendem suas invenções para os trolls não por uma questão de eficiência, mas pelo fato dos trolls explorarem falhas do sistema. Muitas coisas são descobertas, porém poucas chegam ao mercado, o objetivo dos trolls é controlar esse fluxo e aumentar o custo da descoberta. Michael Meurer concorda com John Dugffy de que o modelo descentralizado em P&D produz melhores resultados. Porém para que as pequenas empresas possam comercializar suas patentes não é preciso intermediários, temos exemplos de empresas start ups como Apple, Google e Microsoft que cresceram sem tais inttermediários. Com relação ao comentário de David Schwartz, Michael Meurer lembra que Allison, Lemley e Walker mostraram que os trolls perdem 90% de seus litígios o que mostra um índice de qualidade baixa de suas patentes. Com relação às universidades este não é o porblema porque poucas vezes elas são acionadas judicialmente em litígios de patentes.
John Dufffy ressalta o papel dos trolls como intermediários especialmente nos casos em que a pequena empresa está falindo e deseja vender seu portfólio de patentes. O próprio livro de Michael Meurer[1] mostra que nos casos de litígios caem os preços das ações quando a patente em litígio ameaça ser anulada o que representa um ganho para o público, que pode comprar ações mais baratas. Mark Lemley contesta John Duffy e observa que se questionarmos as indústrias de sofwtare e start ups a maioria irá dizer que as patentes representam um custo e não um benefício, o que representa um imposto sobre inovação. O argumento de mercado para patentes parece irreal quando sabemos que tradicionalmente 98% das patentes o titular não questiona qualquer contrafação. Para Schwartz o estudo de Allison, Lemley e Walker tem limitações, pois somente em 10% dos litígios chegam a fase conclusiva de mérito. Michael Meurer destaca que mesmo patentes inventivas, não triviais, como no caso NTP v. RIM do Blacberry pode trazer danos significativos à inovação. Outro aspecto a ressaltar é que memso após a decisão da Suprema Corte em KSR ter elevado o nível mínimo de inventiviade o porblema das patentes triviais persiste. Para John Dufy o aumento de litígios reflete o aumento da inovação: quanto maior você é maiores as chances de ser processado. Mark Lemley concorda que muitos dados sobre litígio não estão disponíveis, especialmente os acordos entre as partes quando o porcesso não chega ao fim, talvez a legislação pudesse ser modificada para permitir maior transparência a tais acordos. Michael Meurer observa que o estudo do GAO[2] realizado após a reforma da legislação norte americana em 2011 mostra que metade das patentes concedidas em 2011 são relacionadas com software tendo havido um aumento de 89% no litígio na área de software.[3]





[1] BESSEN, James; MEURER, Michael. Patent Failure: How Judges, Bureaucrats, and Lawyers Put Innovators at Risk. Princeton University Press, 2008, p.138
[2] http://www.ipwatchdog.com/2013/08/26/gao-report-unmasks-patent-troll-problem/id=44818/
[3] http://comparativepatentremedies.blogspot.com.br/2014/04/patcon-4-patent-troll-debate.html

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Marx e a propriedade industrial

Os bens imateriais e as possibilidades de apropriação segundo a doutrina marxista
Antonio Carlos Souza de Abrantes
Abril de 2014

Resumo: A obra de Marx embora tenha foco na produção material de produtos pode ser compreendida dentro de uma perspectiva mais ampla para contemplar também os chamados bens imateriais, como as invenções de produtos e processos aplicados na indústria. Este conteúdo imaterial igualmente pode ser submetido à apropriação pelo capitalista como parte integrante do modo de produção capitalista que busca dissociar os trabalhadores de seus meios de produção. O artigo conclui que tanto a existência de um trabalho dito imaterial, como a possibilidade de apropriação deste são dois conceitos compatíveis com o referencial teórico marxista.

No Manifesto Comunista Karl Marx e Engels mostram que o comunismo tem como proposta a abolição da propriedade privada: “A característica particular do comunismo não é a abolição da propriedade em geral, mas a abolição da propriedade burguesa. Mas a propriedade privada atual, a propriedade burguesa, é a expressão final do sistema de produção e apropriação que é baseada em antagonismos de classes, na exploração de muitos por poucos. Nesse sentido, a teoria dos comunistas pode ser resumida nessa frase: abolição da propriedade privada”. A negação do conceito de propriedade privada do capital se refere aos meios de produção na terminologia marxista. Nesta perspectiva a propriedade industrial de invenções como máquinas e tecnologia utilizadas na indústria, como meios de produção, dada sua natureza intrínseca de propriedade privada seria vista como uma propriedade burguesa e, portanto, incompatível com a teoria marxista.

Para Marx os meios de produção são passíveis de apropriação pela classe capitalista e este é um dos elementos centrais do capitalismo, que privou o trabalhador da posse de seus próprios meios de produção. Com o comunismo abre-se a possibilidade de estabelecer um regime de propriedade comum dos meios de produção “o modo de apropriação capitalista, que deriva do modo de produção capitalista, ou seja, a propriedade privada capitalista, é a primeira negação da propriedade privada individual, fundada no trabalho próprio [quando os trabalhados são despossuídos de seus instrumentos de trabalho e meios de produção;  para Marx a propriedade privada fundada no trabalho pessoal é suplantada pela propriedade privada capitalista, fundada na exploração do trabalho de outrem, sobre o trabalho assalariado]. Todavia, a produção capitalista produz, com a mesma necessidade de um processo natural sua própria negação [Marx trata aqui da tendência ao monopólio do capital e a revolta da classe trabalhadora]. É a negação da negação. Ela não restabelece a propriedade privada, mas a propriedade individual sobre a base daquilo que foi conquistado na era capitalista, isto é, sobre a base da cooperação e da posse comum da terra e dos meios de produção produzidos pelo próprio trabalho”.[1]

Não podemos, contudo, inferir disto que o trabalho intelectual não possa ser apropriado ou tenha papel secundário na obra de Marx, pelo contrário. Em sua teoria de valor, seguindo economistas como Adam Smith e David Ricardo, Marx destaca que a grandeza de valor de uma mercadoria varia na razão direta da quantidade de trabalho nele realizado[2]. O valor de uma mercadoria é determinado pelo tempo de trabalho requerido para sua produção[3]. Ao comparar o valor de um casaco com o linho Marx observa que “o linho contém somente a metade do trabalho contido no casaco, pois para a produção do último requer-se um dispêndio de força de trabalho durante o dobro de tempo necessário à produção do primeiro”.[4] No entanto, Marx em seu cômputo considera tanto o trabalho físico com o braçal incorporado em cada produto: “Todo o trabalho é, por um lado, dispêndio de força humana de trabalho, em sentido fisiológico, e graças a essa propriedade de trabalho humano igual ou abstrato ele gera o valor das mercadorias”.[5] Para Marx este trabalho abstrato é parte integrante da formação de valor: “o corpo da mercadoria que serve de equivalente vale sempre como incorporação de trabalho humano abstrato e é sempre o produto de um determinado trabalho útil, concreto [...] Constitui uma segunda propriedade da forma de equivalente que o trabalho concreto torne-se forma de manifestação de seu contrário, trabalho humano abstrato”.[6]

O conteúdo informacional de uma mercadoria, portanto, conjunto de tecnologias embutido para realização de um processo fabril, encontra-se incorporado na formação de preço de um produto na medida em que envolve tempo de trabalho útil. Vinícius Santos da mesma forma entende que a obra de Marx destaca o papel do trabalho imaterial na formação de valor de um produto. Não se faz até mesmo necessário que este trabalho gera um produto físico propriamente dito, que possa ser quantificado. Para Marx nos Grundisse o trabalho de composição de uma obra, trabalho imaterial, portanto, trata-se de um trabalho “da maior seriedade e do mais intenso esforço”.[7] Para Vinícius Santos a teoria de valor de Marx promove uma inovação frente aos economistas clássicos Adam Smith e David Ricardo ao destacar o aspecto qualitativo do valor, ou seja, suas conexões com respeito às relações sociais na produção de uma mercadoria, as relações humanas sob as quais as coisas são produzidas. Desta forma a teoria de valor de Marx aplicaria-se da mesma forma ao trabalho considerado imaterial, aquele destituído da produção de um corpo material propriamente dito[8]

Sérgio Lessa questiona o próprio conceito de um “trabalho imaterial”, tendo como foco as implicações políticas desta tese, que poderia levar a um abrandamento dos conflitos de classe entre proletários e capitalistas na medida em que o papel destes dois atores estaria cada vez menos claramente delimitado em nossa sociedade pós industrial. Segundo Sérgio Lessa: “O trabalho tem por seu nódulo mais decisivo a transformação do real, não há nenhum ato de trabalho que não transforme o real [...] Se o trabalho produz algo que tem existência fora da subjetividade que o criou – e só desse modo pode ser trocado entre indivíduos pela mediação do mercado – é inegável que esse objeto possui uma materialidade portadora de utilidade, uma materialidade que expressa as necessidades de quem as produziu”.[9] Para os propósitos deste artigo a crítica de Carlos Lessa não se aplica pois que uma invenção, entendida como a solução de problema técnico, invariavelmente está conectado a um produto ou processo com aplicação industrial. Este conceito inventivo envolvido em um produto ou processo industrial tem como característica fundamental o bem imaterial fruto de um trabalho imaterial.

Segundo Pontes de Miranda [10] “O que é objeto do direito sobre a invenção é o bem incorpóreo”. Para Adib Casseb: “o bem imaterial é representado exclusivamente pela ideia, independente da coisa material em que ela se exteriorizou. È a ideia que constitui o bem imaterial, independentemente do objeto material que lhe serve de meio de expressão”.[11] Para Gama Cerqueira: “o direito do inventor é um direito privado patrimonial, de caráter real, constituindo uma propriedade temporária e resolúvel, que tem por objeto um bem imaterial: a invenção [...] o objeto sobre o qual o inventor exerce o seu direito é a sua ideia, a sua concepção, isto é, a ideia da invenção por ele realizada, a solução por ele encontrada, e não simplesmente a forma concreta de realização, o exemplar em que se encontram reunidos os meios indicados na patente, nem o agrupamento dos meios imaginados e descritos para realizar sua ideia. O objeto da invenção, é pois, este bem imaterial – a ideia de solução – ou – a ideia de invenção. Ou, por outra, o objeto do direito não é a invenção concretizada e materializada, mas a invenção abstratamente considerada. Isto explica porque podem coexistir, independentemente, a propriedade da coisa material, em que se concretiza a invenção,e a propriedade do inventor sobre a sua invenção. Por isso, a venda do objeto privilegiado não envolve a transmissão do direito do inventor, nem viola o seu privilégio, salvo no caso de contrafação” [12]

Para Marx o trabalho não necessariamente resulta em um objeto material físico. Segundo Vinícius Santos: “O trabalho seria, para Marx, uma atividade exclusivamente humana por meio da qual há um dispêndio de energia física e mental para a produção de algum valor de uso, de alguma utilidade para satisfazer uma necessidade específica, sem importar qual a sua natureza dessa necessidade, seja ela do estômago ou da fantasia”.[13] Para Marx, o processo de trabalho na produção de uma mercadoria tem como elemento indissociável o trabalho intelectual “como no sistema natural cabeça e mão estão interligados, o processo de trabalho une o trabalho intelectual com o trabalho manual. Mais tarde separam-se até se oporem como inimigos”.[14] Somente quando este trabalho produz um efeito útil exteriorizado, separado da individualidade do trabalhador, independente de resultar em um produto físico, é que este trabalho pode ser qualificado como produtivo e passível de ser inserido na lógica da produção capitalista, uma vez que passível de apropriação.[15] Nesse sentido, Marx considera passíveis de serem apropriadas pela lógica de produção capitalista o trabalho imaterial de um escritor ou de uma cantora: “se contratada por um empresário que a põe a cantar para ganhar dinheiro, é uma trabalhadora produtiva, pois produz diretamente para o capital”.[16] Neste sentido, um pesquisador em um laboratório de P&D que trabalha em uma invenção da mesma forma, segundo Marx, é um exemplo de trabalho produtivo passível de apropriação pela lógica capitalista.

Não por acaso, Marx refere-se textualmente ao inventor Richard Arkwright, conhecido por ter acionado judicialmente concorrentes por violação de suas patentes, como tendo se apropriado indevidamente de invenções das quais não tinha direito. Ao criticar Arkwright, Marx reconhece a legitimidade de tais apropriações do capital intelectual: "Quem quer que conheça a biografia de Arkwright jamais lançará a palavra de <nobre> ao rosto desse barbeiro genial. De todos os grande inventores do século XVIII, ele foi, indiscutivelmente, o maior ladrão de inventos alheios e o sujeito mais ordinário"[17]. Marx a refere-se a patente de 1794 do “grande gênio de Watt” e que marca o período da manufatura como tendo desenvolvido os primeiros elementos científicos e técnicos da grande indústria.[18] Não há qualquer evidência que Marx esteja sendo irônico neste trecho com Watt ou com a ciência, pois marxistas como Louis Althusser destacam que a obra de Marx abre o conhecimento científico, antes restrito à física e matemática, também para o estudo da história.

Se por um lado o conteúdo intelectual envolvido na produção de uma mercadoria é fundamental, por outro a maquinaria possibilita a reorganização da forma social com que esse conteúdo intelectual será apropriado, permitindo transferir-se do domínio do trabalhador para a do capitalista. Marx trata dos efeitos da mecanização que teria, segundo ele, subtraído do trabalhador o conteúdo intelectual do trabalho e transferido para a máquina, transformando o trabalhador num autômato, um “acessório autoconsciente de uma máquina[19], num trabalhador parcial. : “Os conhecimento, a compreensão e a vontade que o camponês ou artesão independente desenvolve, ainda que em pequena escala [..] passam agora a ser exigidos apenas pela oficina em sua totalidade. As potências intelectuais da produção, ampliando sua escala por um lado, desaparecem por muitos outros lados.O que os trabalhadores parciais perdem concentra-se defronte a eles no capital. É um produto da divisão manufatureira do trabalho opor-lhes as potências intelectuais do processo material de produção como propriedade alheia e como poder que os domina. Esse processo de cisão começa na cooperação simples, em que o capitalista representa diante dos trabalhadores individuais a unidade e a vontade do corpo social de trabalho. Ele se desenvolve na manufatura, que mutila o trabalhador, fazendo dele um trabalhador parcial, e se consuma na grande indústria, que separa do trabalho a ciência como potência autônoma de produção e a obriga a servir ao capital [...] Transformado num autômato, o próprio meio de trabalho se confronta , durante o processo de trabalho, com o trabalhado como capital, como trabalho morto a dominar e sugar a força de trabalho viva. A cisão entre as potências intelectuais do processo de produção e o trabalho manual, assim como a transformação daquelas em potências do capital sobre o trabalho, consuma-se, como já indicado anteriormente, na grande indústria, erguida sobre a base da maquinaria. A habilidade detalhista do operador de máquinas individual, esvaziado, desaparece como coisa diminuta e secundária perante a ciência, perante as enormes potências da natureza e do trabalho social massivo que estão incorporadas no sistema de maquinaria e constituem com este último, o poder do patrão”.[20] O capital impõe, portanto, um processo de “estupidificação[21] do trabalhador parcial, já detectado na obra de Adam Smith. Perícia e destreza deixam de ser atributos de valor para um trabalhador.

Para Marx o capitalismo traz em si um impulso constante no sentido de renovar e aperfeiçoar os meios de produção: “a burguesia não pode existir sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais”. [22] Segundo Karl Marx “a indústria moderna jamais considera  nem trata como definitiva a forma existente de um processo de produção. Sua base técnica é, por isso, revolucionária, ao passo que a de todos os modos de produção anteriores era essencialmente conservadora. Por meio da maquinaria, de processos químicos e outros métodos, ela revoluciona continuamente, com a base técnica de produção, as funções dos trabalhadores e as combinações sociais do processo de trabalho”. [23]

Enquanto escreve O Capital, no texto “Fragmentos sobre as máquinas”, Karl Marx deixa claro a primazia do capital intelectual sobre as formas de produção do capitalismo: “A natureza não constrói máquinas, nem locomotivas, nem ferrovias, nem o telegráfo etc. São estas produtos da indústria humana: material natural transformado em órgãos da vontade humana sobre a natureza ou da sua atuação na natureza. São órgãos do cérebro humano criados pela mão humana; força objetivada do conhecimento. O desenvolvimento do capital fixo (máquinas, por exemplo) revela até que ponto o conhecimento ou o conhecimento social geral se converteu em força produtiva imediata e, portanto, até que ponto as  condições do processo da vida social mesma estão sob o controle do intelecto geral e remodeladas conforme ele mesmo. Até que ponto as forças produtivas sociais são produzidas não somente na  forma de conhecimento, mas sim como órgãos imediatos da prática social, do processo da vida real”.[24]

Portanto na obra de Marx torna-se claro que o trabalho intelectual como componente central na formação de valor das mercadorias não somente pode ser apropriado, como a maquinaria é apontada como um dos mecanismos do capitalista para que esta apropriação ocorra dentro dos domínios do capitalista. Embora não trate diretamente do tema podemos concluir que um sistema de proteção da propriedade intelectual opera de forma similar ao que a maquinaria proporciona como forma de se proteger a propriedade intelectual das técnicas úteis à indústria na fabricação das mercadorias em unidades fabris. Este entendimento parece corroborado por autores marxistas como Antonio Figueira Barbosa: “Os objetos de proteção da propriedade imaterial, em função da utilidade das matérias protegidas ás esferas de produção ou de comercialização, estão referenciados à essência ou a forma dessas matérias. Assim, cumpre ressaltar que a essência do trabalho intelectual – a ideia criada – unicamente tem proteção quando útil à esfera da produção econômica”.[25]

Marx destaca que a invenção é um processo social. Ao tratar da máquina de fiar de John Wyat, Marx observa que “antes, ainda que muito imperfeitas, foram utilizadas máquinas para torcer o fio, provavelmente na Itália pela primeira vez. Uma história crítica da tecnologia provavelmente o quão pouco qualquer invenção do século XVIII pode ser atribuída a um único indivíduo. Até então, tal obra inexiste [...] As invenções de Vaucanson, Arkwright, Watt, etc só puderam ser realizadas porque esses inventores encontraram à sua disposição, previamente fornecida pelo período manufatureiro, uma quantidade considerável de hábeis mecânicos”.[26] Esta característica de transformar o trabalho antes isolado dos mestres artesãos independentes em um trabalho social como construção coletiva, faz parte do modus operando do capitalismo. Segundo Marx: “Se o modo de produção capitalista se apresenta, portanto, por um lado, como uma necessidade histórica para a transformação do processo de trabalho em um processo social, então, por outro lado, essa forma social do processo de trabalho apresenta-se como um método, empregado pelo capital, para, mediante o aumento da sua força produtiva, explorá-lo mais lucrativamente”.[27] Como trabalho coletivo, Marx leva em conta tanto o trabalho manual para produção do produto como o trabalho de engenheiros e pesquisadores que trabalham na concepção do produto, pois ambos estão igualmente submetidos ao capital: “é absolutamente indiferente que a função deste ou daquele trabalhador, mero elo deste trabalhador coletivo, esteja mais próxima ou mais distante do trabalho manual direto”.[28] A imaterialidade do trabalho não produz qualquer diferença conceitual como trabalho produtivo. No Grundisse Marx reafirma a igualdade de pesos entre o trabalho manual e o intelectual: “o fato de que o mais-valor tem de se expressar em um produto material é concepção rudimentar que ainda figura em Adam Smith. Os atores são trabalhadores produtivos não porque produzem o espetáculo, mas porque aumentam a riqueza de seu empregador. Todavia, para essa relação, é absolutamente indiferente o tipo de trabalho que é realizado, portanto em que forma o trabalho se materializa”.[29]

O marxista Ricardo Antunes observa a ampliação do trabalho na esfera imaterial como uma característica do capitalismo contemporâneo e tal perspectiva segundo o autor encontra-se amparada na noção ampliada de trabalho produtivo adotada por Karl Marx: “As novas dimensões e formas de trabalho vêm trazendo um alargamento, uma ampliação e uma complexificação da atividade laborativa, de que a expansão do trabalho imaterial é um exemplo. Trabalho material e imaterial, na imbricação crescente que existe entre ambos, encontram-se, entretanto, centralmente subordinadas á lógica da produção de mercadorias e de capital”.[30] O desenvolvimento da sociedade pós industrial com a intensificação do elementos informacional nos meios de produção como forma de se aumentar a produtividade do trabalho e modificar a composição da parte orgânica do capital, característica já detectada por Karl Marx, é reconhecida por marxistas como Lojkine[31], o reconhecimento do papel do trabalho imaterial na lógica capitalista é portanto um reflexo da cada vez maior interpenetração de atividades industriais e atividades informacionais.



[1] MARX, Karl. O capital, livro I: o processo de produção do capital,São Paulo:Boitempo, 2013, p.832
[2] MARX, Karl. O capital, livro I: o processo de produção do capital,São Paulo:Boitempo, 2013, p.118
[3] MARX, Karl. O capital, livro I: o processo de produção do capital,São Paulo:Boitempo, 2013, p.166
[4] MARX, Karl. O capital, livro I: o processo de produção do capital,São Paulo:Boitempo, 2013, p.123
[5] MARX, Karl. O capital, livro I: o processo de produção do capital,São Paulo:Boitempo, 2013, p.124
[6] MARX, Karl. O capital, livro I: o processo de produção do capital,São Paulo:Boitempo, 2013, p.134,135
[7] SANTOS, Vinícius Oliveira. Trabalho imaterial e teoria de valor em Marx, São Paulo:Ed. Expressão Popular, 2013, p.15
[8] SANTOS, Vinícius Oliveira. Trabalho imaterial e teoria de valor em Marx, São Paulo:Ed. Expressão Popular, 2013, p.51, 57
[9] LESSA, Sérgio. A materialidade do trabalho e o “trabalho imaterial”, REVISTA OUTUBRO, n. 8, 2003, p.43 http://www.revistaoutubro.com.br/edicoes/08/out8_03.pdf
[10]     MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1956. Tomo XVI, p. 207, 272 e 276.

[11] ADIB, Casseb. Da propriedade industrial: considerações acerca de sua natureza jurídica. São Paulo, 1972, p.16
[12]     CERQUEIRA. op. cit. p. 143.

[13] SANTOS, Vinícius Oliveira. Trabalho imaterial e teoria de valor em Marx, São Paulo:Ed. Expressão Popular, 2013, p.72
[14] SANTOS, Vinícius Oliveira. Trabalho imaterial e teoria de valor em Marx, São Paulo:Ed. Expressão Popular, 2013, p.77
[15] SANTOS, Vinícius Oliveira. Trabalho imaterial e teoria de valor em Marx, São Paulo:Ed. Expressão Popular, 2013, p.80
[16] SANTOS, Vinícius Oliveira. Trabalho imaterial e teoria de valor em Marx, São Paulo:Ed. Expressão Popular, 2013, p.92
[17] MARX, Karl. O capital, livro I: o processo de produção do capital,São Paulo:Boitempo, 2013, p.496
[18] MARX, Karl. O capital, livro I: o processo de produção do capital,São Paulo:Boitempo, 2013, p.451
[19] MARX, Karl. O capital, livro I: o processo de produção do capital,São Paulo:Boitempo, 2013, p.554
[20] MARX, Karl. O capital, livro I: o processo de produção do capital,São Paulo:Boitempo, 2013, p.435, 495
[21] MARX,op.cit.p.436
[22] ENGELS, F; MARX, Karl. Manifesto Comunista, São Paulo:Boitempo, 1998, p.43
[23] MARX, Karl. O capital, livro I: o processo de produção do capital,São Paulo:Boitempo, 2013, p.557
[24] AMORIM, Henrique, Trabalho Imaterial: Marx e o debate contemporâneo. Annablume, São Paulo-SP, 2009, p.36-37.
[25] BARBOSA, Antonio. Sobre a propriedade do trabalho intelectual: uma perspectiva crítica, UFRJ, 1999, p. 44
[26] MARX, Karl. O capital, livro I: o processo de produção do capital,São Paulo:Boitempo, 2013, p.446, 455
[27] Cf. SANTOS, Vinícius Oliveira. Trabalho imaterial e teoria de valor em Marx, São Paulo:Ed. Expressão Popular, 2013, p.101
[28] SANTOS, Vinícius Oliveira. Trabalho imaterial e teoria de valor em Marx, São Paulo:Ed. Expressão Popular, 2013, p.104
[29] SANTOS, Vinícius Oliveira. Trabalho imaterial e teoria de valor em Marx, São Paulo:Ed. Expressão Popular, 2013, p.108
[30] ANTUNES, Ricardo. O caracol e sua concha: ensaios sobre a morfologia do trabalho. Sâo Paulo:Boitempo, 2007, cf. SANTOS, Vinícius Oliveira. Trabalho imaterial e teoria de valor em Marx, São Paulo:Ed. Expressão Popular, 2013, p.155
[31] LOJKINE, Jean. A revolução informacional, São Paulo:Cortez, 2002. Cf. SANTOS, Vinícius Oliveira. Trabalho imaterial e teoria de valor em Marx, São Paulo:Ed. Expressão Popular, 2013, p.157