quarta-feira, 27 de julho de 2022

A aplicação de TRIPs no Brasil

 

TRIPs entrou em vigor em 01/01/1995 (no Brasil em 01/01/2000), ao passo que a LPI, que incorpora muitas das disposições de TRIPs entrou em vigor em 14/05/1997, ou seja, apenas dois anos após TRIPs. O artigo 65 de TRIPs parágrafo 1 estabelece que os países Membros poderão adiar em 1 ano a aplicação de TRIPs contado da data da entrada em vigor 01/01/95. O artigo 65 de TRIPs parágrafo 2 estabelece que um país Membro em desenvolvimento tem direito a postergar a data da aplicação das disposições do Acordo, por um prazo adicional de quatro anos. O parágrafo 4 estabelece que países em desenvolvimento poderiam adiar a aplicação das disposições sobre patentes de produto de setores tecnológicos que não protegiam em seus territórios (no caso do Brasil produtos químico-farmacêuticos) por um prazo adicional de cinco anos.

O Brasil, como país em desenvolvimento, embora tenha o Acordo de TRIPs vigente desde 01/01/1995, ao aplicar tais prazos de transição, só estaria obrigado a aplicar TRIPs depois de cinco anos, ou seja em 01/01/2000. Contudo, nas discussões da LPI no Congresso, sob pressão do governo norte-americano, o Governo em abril de 1995 alterou seu projeto de Lei junto ao Relator da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) para que a nova lei fosse aprovada em um ano e não em cinco anos como vinha defendo o Legislativo, valendo-se do prazo de transição previsto em TRIPs.[1] O PL 824/91 por sua vez sequer previa este prazo de transição de um ano, mas sim a aplicação imediata da lei. O deputado Renildo Calheiros apresentou em abril de 1993 emenda ao Artigo 223 do PL 824/91 prevendo o prazo de um ano de transição: “O relatório Dunkel, que consubstancia as propostas finais para a obtenção de um acordo sobre propriedade industrial no âmbito do GATT, expressamente recomenda que os países membros disponham de um ano para adaptar-se aos novos padrões acordados, quer em termos de lei, quer em termos de procedimentos administrativos, não há porque adotarmos prazos menores que os que serão certamente seguidos pelos demais países, ainda mais porque dele necessitamos”. Emenda apresentada em abril de 1993 pelo deputado Miro Teixeira (PDT/RJ) critica a não adoção no texto dos cinco anos de transição previstos no Relatório Dunkel do GATT para os países em desenvolvimento.

Quanto a patenteabilidade de produtos farmacêuticos o Brasil só estaria obrigado a conceder tais patentes após 01/01/2005, caso utilizasse os dez anos de transição, como, por exemplo o fez a Índia. Os países em desenvolvimento puderam postergar a maioria dos padrões exigidos em TRIPs por um período de pelo menos cinco anos e até mesmo de dez anos com relação aos campos da tecnologia previamente excluídos sob suas leis internas de patentes. Em 2005, data limite original prevista para adoção de TRIPs, países subdesenvolvidos, entre os quais Ruanda, Uganda e Zâmbia decidiram postergar até 2013 a adoção do Tratado em suas legislações nacionais.[2] Na Conferência de Doha em novembro de 2001, os países já haviam concordado em que países com limitada capacidade de desenvolvimento de produtos farmacêuticos teriam um prazo de carência até 2016 para regular por patentes a proteção de medicamentos.[3] Em 2011 uma nova extensão de prazo foi discutida pelos mesmos países de modo que a exceção permaneça em vigor enquanto o país for classificado como país menos desenvolvidos (LDC Lesse Developed Country).[4] Em assembleia na OMC realizada em junho de 2021 os países membros aprovaram uma nova extensão do período de transição para 1 de julho de 2034.[5]

Para Alexandre Grangeiro e Paulo Roberto Teixeira o resultado da adoção da LPI atendendo as prerrogativas de TRIPs antes dos prazos de transição estabelecidos trouxe como consequências que “a indústria farmacêutica nacional apresenta sistematicamente tendência de retração e, em outros aspectos, embora possua capacidade para produzir princípios ativos, não é internacionalmente competitiva na área, importando da Índia e da China grande parte da matéria-prima utilizada no país”. A Índia, segundo os autores por ter adiado a implementação de TRIPs hoje tornou-se um dos principais produtores de medicamentos genéricos e princípios ativos do mundo.[6] Entretanto, estudo de Arora em 2007, realizado com empresas farmacêuticas indianas mostra que os gastos em P&D das empresas aumentou com o reforçamento do sistema de patentes, ou seja, a entrada do sistema de patentes no setor modificou o comportamento estratégico das empresas indianas que abandonou o comportamento de imitação para o de inovação.[7] Sunil Mani também consta o aumento de investimentos de P&D das empresas indianas (dados de 2010 mostra gastos de 11% da Dr. Reddy, 9.3% da Ranbaxy e 12.3% da Lupin, com uma média de 7.2% para o grupo das 38 maiores empresas indianas em gastos de P&D) e maior participação nas exportações e conclui que os prognósticos negativos e positivos na época da assinatura de TRIPs mostraram-se ambos exagerados.[8] Em 1970 a presidente Indira Gandhi retirou a proteção de patentes para produtos farmacêuticos e agrícolas. Na Assembleia Mundial de Saúde em 1972 Indira Gandhi declarou: “A ideia de um mundo mais bem ordenado é uma em que as descobertas médicas serão livres de patentes e não haverá lucro com a vida e a morte”. Lanjouw, contudo, mostra que em países com fraca proteção patentária e forte controle de preços, os novos medicamentos tornam-se disponíveis no mercado (se é que isto chega a ocorrer) somente após substanciais atrasos em detrimento dos consumidores. [9] Segundo Lanjouw passados 30 anos cerca de 70% da população na Índia continua sem acesso a medicamentos básicos.

Breno Hermann aponta três causas para o Brasil não ter se utilizado destes prazos de transição, em sua integralidade, ao aprovar a LPI já em 1996:

•       interesse do Executivo (governo Fernando Henrique Cardoso) em sinalizar para a comunidade internacional que o Brasil estava acompanhando as tendências dominantes do capitalismo internacional,

•       desejo de se resolver o contencioso com os EUA, que pressionava por uma legislação de patentes mais eficaz que servisse modelo para outros países em desenvolvimento e de precedente para seus demais parceiros

•       fraqueza da situação dos laboratórios nacionais, que após anos de não proteção aos produtos farmacêuticos, não haviam sido capazes de se capacitar tecnologicamente. Apenas uma política ativa de governo poderia reverter este quadro reestruturando o setor, entretanto tal intervenção estatal contrariava frontalmente as linhas gerais de orientação do governo, centrado na diminuição do papel interventor do Estado na economia e não na sua ampliação[10].

Uma vez que o artigo 70.8 de TRIPs previa o mailbox, ou seja, pedidos de produtos farmacêuticos depositados após 01/01/1995 e antes da entrada em vigor da LPI não poderiam ser indeferidos, mas deveriam aguardar a entrada em vigor das novas regras no país Membro, para posterior análise já sob a Lei nova, o Brasil entendeu que adiar a aplicação de TRIPs não traria vantagens, ao contrário, traria desvantagem ao INPI na medida em que este se veria obrigado a analisar após alguns anos, uma série de pedidos represados pelo mailbox.

Segundo o artigo 229-B "Os pedidos de patentes de produto apresentados entre 1º de janeiro de 1995 e 14 de maio de 1997, aos quais o art. 9º, alíneas "b" e "c", da Lei no 5.772, de 1971, não conferia proteção e cujos depositantes não tenham exercido a faculdade prevista nos arts. 230 e 231, serão decididos até 31 de dezembro de 2004, em conformidade com esta Lei". No intuito de dirimir quaisquer dúvidas o parecer PROC 086/00 de 2000 entende que não se encontra protegido pelas disposições do artigo 70.8 de TRIPs: processos para produtos farmacêuticos, processos de obtenção ou modificação de substâncias, matérias, misturas ou produtos alimentícios, químico-farmacêuticos e medicamentos, de qualquer espécie (alínea 9c do CPI), produto e processo alimentício e produto químico e conclui “no tocante ao processo químico, o pedido era passível de concessão à luz do contido na alínea b do artigo 9o do CPI, não havendo que se falar em restrição temporal na aceitação de requerimentos”.

A Índia foi alvo de painel dos Estados Unidos no âmbito de TRIPs em 1996 pela não previsão do mailbox em sua legislação, contrariando o Artigo 70(8) do Acordo, ou que pelo menos este dispositivo não estava previsto de forma suficientemente transparente como instrui o Artigo 63 de TRIPS. Ao final a Índia apresentou emendas em sua legislação adequando-se ao previsto em TRIPs.[11] Cerca de 9 mil de pedidos de patentes foram depositados pelo mailbox na Índia entre 1995 e 2005. A legislação indiana prevê que caso estes pedidos de patentes sejam deferidos, as indústrias de genéricos que utilizaram estas tecnologias antes de 2005 e comprovem “substanciais investimentos”[12] não terão de pagar qualquer indenização aos titulares das patentes para este período de exploração. Porém, para continuarem explorando tais tecnologias após 2005 tais empresas de genéricos terão necessariamente de obter uma licença dos titulares ou formalizar um pedido de licença compulsória ao escritório de patentes indiano, caso contrário, terão de cessar a exploração.[13] As patentes mailbox na Índia, portanto, não conferem os mesmos direitos de uma patente comum. O titular de uma patente mailbox pode recompor apenas “royalties razoáveis” contra empresas que usaram sua invenção antes de 1 de janeiro de 2005 conforme o Indian Patent Act (2005) § 11 A(7). Segundo Cynthia Ho este mecanismo constitui uma licença compulsória de fato e questiona se isto poderia se enquadrar nas exceções de TRIPs ou se constitui uma discriminação com base na tecnologia.[14]

Em março de 2012 o Controller do escritório de patentes indiano concedeu licença compulsória da patente IN215758 para o fabricante de genéricos indiano Natco Pharma Ltd. para fabricar um medicamento patenteado pela Bayer e usado no tratamento de câncer, conhecido como Naxavar, usado no tratamento de doenças renais, sob a alegação que o titular não oferecia o medicamento a um preço razoável no mercado indiano e que não fabricava o produto localmente. [15] O Tribunal local indiano ponderou que o medicamento era oferecido pela titular ao custo de 79 mil dólares ao ano, ao passo que a empresa de genéricos oferecia o mesmo medicamento ao custo de 117 dólares ao ano. Com o preço praticado pela Bayer apenas 2% da população indiana com câncer renal tinha acesso ao produto.[16]



[1] Di BLASI, Gabriel. A propriedade Industrial: os sistemas de marcas, patentes, desenhos industriais e transferência de tecnologia, Rio de Janeiro: Ed. Forense: 2010, p. 10.

[2] LDCs Agree To Shorter Extension For TRIPS Implementation. Intellectual Property Watch 29 November 2005 http: //www.ip-watch.org/weblog/2005/11/29/ldcs-agree-to-shorter-extension-for-trips-implementation/.

[3] Di BLASI.op. cit. p. 231. WTO, WIPO, WHO. Promoting Access to Medical Technologies and Innovation: Intersections between public health, intellectual property and trade, fevereiro 2013, p.72 http://www.wto.org/english/res_e/publications_e/who-wipo-wto_2013_e.htm

[4] NEW, William. Pharma Backs Calls For Extension Of TRIPS Deadline For Least-Developed Countries Intellectual Property Watch 10 February 2011 http: //www.ip-watch.org/weblog/2011/02/10/pharma-backs-calls-for-extension-of-trips-deadline-for-least-developed-countries/. UNAIDS. TRIPS transition period extensions for least-developed countries, 2013, https://hivlawcommission.org/wp-content/uploads/2017/06/TRIPS-transition-period-extensions-for-least-developed-countries-Issue-brief.pdf

[5] https://conventuslaw.com/report/extension-of-the-trips-general-transition-period/

[6] GRANGEIRO, Alexandre; TEIXEIRA, Paulo Roberto. Repercussões do acordo de Propriedade Intelectual no acesso a medicamentos. In: VILLARES, Fabio. Propriedade intelectual: tensões entre o capital e a sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2007. p. 118.

[7] ARORA, Ashish. Intellectual property rights and the international transfer of technology: setting out and agenda for empirical research in developing countries In: The economics of intellectual property: suggestions for further research in developing countries and countries with economies in transition, WIPO, 2009, p. 55.

[8] MANI, Sunil; NELSON, Richard. TRIPs compliance, national patent regimes and innovation, Cheltenham: Elgar, 2013

[9] COCKBURN, Ian. Intellectual property rights and pharmaceuticals: challenges and opportunities for economic research. In: The economics of intellectual property: suggestions for further research in developing countries and countries with economies in transition, WIPO, 2009, p. 159.

[10] HERMANN, Breno. O Brasil e a Lei de propriedade industrial 9.279/96: um estudo de caso da relação interno externo, Tese de mestrado, UNB, Brasília, abril de 2004, p. 199.

[11] WTO WT/DS50/R 5 September 1997 http://www.worldtradelaw.net/reports/wtopanelsfull/india-patents(panel)(us)(full).pdf

[12] HO, Cynthia. Current controversies concerning patent rights and public health in a world of international norms. In: TAKENAKA, Toshiko. Patent law and theory: a handbook of contemporary research,Cheltenham:Edward Elgar, 2008, p.696

[13] Médicos sem Fronteiras. Will the lifeline of affordable medicines for poor countries be cut? Consequences of medicines patenting in India, 2005, p.4 http://www.who.int/hiv/amds/MSFopinion.pdf

[14] HO, Cynthia. Current controversies concerning patent rights and public health in a world of international norms. In: TAKENAKA, Toshiko. Patent law and theory: a handbook of contemporary research,Cheltenham:Edward Elgar, 2008, p.685

[15] Natco Pharma obtains compulsory licence to manufacture Bayer’s patented ‘Naxavar’ anti-cancer drug, 30/03/2012 www.lexology.com NOONAN, Kevin. The anatomy of a compulsory licence: natco Pharma Ltd. V. Bayer Corp (Indian Patent Office) 15/03/2012 http://www.patentdocs.org/2012/03/the-anatomy-of-a-compulsory-license-natco-pharma-ltd-v-bayer-corp-indian-patent-office.html

[16] BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. Direito Civil da propriedade intelectual: o caso da usucapião de patentes. Rio de Janeiro, Lumen Juris,2012, p.131

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