domingo, 19 de junho de 2022

Software livre e propriedade intelectual

 

François Lévêque[1] argumenta que as licenças de software livre se baseiam no copyright, sem o qual não seria possível licenciar o software para desenvolvedores, distribuidores e usuários finais de modo que o movimento de software livre não pode ser visto como um movimento contra a propriedade intelectual. A Open Source Initiative admite licenças de software aberto não virais, ou seja, o licenciado pode não ser obrigado a licenciar as modificações por ele realizadas com seu código aberto, como por exemplo a BSD, ao contrário do GPL em que o licenciado deve distribuir suas modificações na forma GPL. Em 1991 Linus Torvalds publicaria o núcleo (kernel) desta plataforma que viria a constituir o GNU/Linux. [2] Desde o início, contudo, se estabeleceu uma divergência ideológica entre as propostas de Linus Torvalds e Richard Stallman. Torvalds, embora da mesma forma contrário a patentes na área de software, não fazia qualquer objeção ao desenvolvimento de softwares proprietários sobre o kernel do Linux.[3] Mesmo desenvolvedores do movimento open source como o distribuidor Linux Red Hat[4] e o desenvolvedor do RT-Linux, Victor Yodaiken[5] solicitaram patentes para tecnologias estratégicas. O software livre pode se basear em vários modelos comerciais: (i) Empresas de software precisam de um software em comum, então criam uma comunidade (ou participam de uma existente) e financiam o desenvolvimento deste software livre (ex.: Python, GTK, Linux); (ii) Uma empresa de software pode oferecer uma versão base livre e criar extensões proprietárias sobre este software livre de base (ex.: Jive, o antigo Darwin - usado pelo MacOS, GForge); (iii) Um software livre pode existir com uma empresa que presta suporte pago para apoiar o desenvolvimento de tal ferramenta (ex.: Ubuntu, Redhat, Cygnus Solutions[6] vendida à Red Hat por 674 milhões de dólares em 1999).

A CPI da Pirataria instaurada na Câmara dos Deputados em 2003 teve seu relatório final aprovado em junho de 2004 conclui: “do exame de todo o exposto neste relatório, resta cristalino que por trás da prática de pirataria há diversas organizações criminosas que se comunicam e se vinculam na clandestinidade, formando uma imensa rede de ilegalidade, um polissistema formando por diversos sistemas e subsistemas que ultrapassam as fronteiras pátrias [...] Na verdade a organização criminosa da pirataria outra coisa não é senão uma das faces do crime organizado”.[7] A CPI estima que uma redução de 10 pontos percentuais nos índices de pirataria de software levariam a um incremento de US$309 milhões no faturamento da indústria, 13 mil empregos diretos, US$3.2 bilhões adicionados de forma indireta à economia brasileira, US$335 milhões em tributos gerados pelo aumento do faturamento na economia como um todo.

Segundo a Súmula 502 do STJ[8], publicada em 23 de outubro de 2013: “Presentes a materialidade e a autoria, afigura-se típica, em relação ao crime previsto no art. 184, § 2º, do CP, a conduta de expor à venda CDs e DVDs piratas”. Assim, fica afastada a tese da adequação social, que afasta a tipicidade penal de condutas socialmente aceitas. O argumento foi utilizado em algumas sentenças, confirmadas em acórdãos de apelação, para absolver réus da acusação de violação de direitos autorais, como por exemplo, o Recurso Especial 1.193.196, que envolvia uma mulher acusada de expor para venda 170 DVDs e 172 CDs piratas. Com base na adequação social, ela foi absolvida em primeira instância e pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, porém a.6ª Turma do STJ, porém, acolheu Recurso Especial do Ministério Público de Minas Gerais negou que exista a exclusão da culpabilidade.[9]

Segundo Roberto Chacon[10]”a proteção jurídica do software é de grande importância. Só haverá um fluxo contínuo de investimentos dirigidos ao desenvolvimento de programas de computador, caso os fabricantes sintam que Oe recursos e o tempo a serem gastos com sua produção terão retorno.[...] Ao conceder aos responsáveis pela criatividade da indústria de software um ambiente estável e seguro juridicamente, naturalmente afluirão investimentos. Embora se possa argumentar que os fabricantes de hardware continuariam a investir na produção de programas para promover o consumo de suas máquinas, é certo que os pequenos fabricantes de software não dispõem de outro meio para recuperar seus investimentos exceto mediante uma adequada proteção jurídica. È necessário que o direito autoral e o direito das patentes protejam, respectivamente, o software e as invenções relacionadas a programas de computador”

Ao invés do recurso á pirataria existem medidas legais que podem levar a redução do preço de aplicativos ao usuário não profissional. Uma medida é a própria redução dos índices de pirataria que tendem a pressionar os preços para baixo na medida em que mais cópias legais forem vendidas. Outra medida, já apontada, é a concorrência de softwares, por exemplo o Linux e LibreOffice foram responsáveis pela queda do preço do Windows e Office. Outra medida é a difusão de novos modelos de licenças para o ambiente acadêmico como as oferecidas pela Cadence Design Systems[11], Oracle, Microsoft[12] e outras empresas. Um outro aspecto a ser considerado é que ferramentas como Photoshop são de uso profissional e muitos usuários que utilizam versões piratas de tais software sequer utilizam 10 % dos recursos da ferramenta o que mostra que podem substituir o produto por outro mais adequado a suas necessidades.

O GPL depende do copyright para seu enforcement.[13] Uma licença de software livre pode ser vista como uma licença de copyright pois ela não disponibiliza o software como de domínio público. Somente o titular pode decidir licenciar seu software sob GPL. MySQL é licenciado em GPL para desenvolvedores de software livre e sob licença comercial para OEMs. Ghostscript, um interpretador Postscript, é licenciado comercialmente em versões novas e GPL nas versões mais antigas. Esquemas de múltiplos licenciamentos estão abrindo novas oportunidades de negócios para desenvolvedores de software livre. Colaboradores de software contribuem com o código no nível necessário para ter seus nomes citados na licença de copyleft, ao passo que maiores desenvolvimentos são realizados sob licenças acadêmicas (por exemplo BSD). A proliferação de licenças e sua incompatibilidade levou o OSI a elaborar um relatório em 2006 recomendando a adoção de um número reduzido de licenças. Segundo Craig Mundie, vice presidente da Microsoft o aspecto viral das licenças GPL representa uma ameaça a propriedade intelectual e ao setor de software comercial porque torna impossível a distribuição de software em uma base em que o cliente pague pelo produto ao invés do que simplesmente pagar pelo custo de distribuição.[14]

Segundo Richard Stallman free não significa gratuito, é o mesmo significado de free speech ao invés de free beer.[15] Ao definir as qualidades de um software aberto Richard Stallman lista as quatro liberdades que caracterizam este modelo: (i) liberdade de executar o programa para qualquer propósito, (ii) liberdade de estudar como o programa funciona, e adaptá-lo para as suas necessidades, (iii) liberdade de redistribuir cópias de modo que você possa ajudar ao seu próximo e (iv) liberdade de aperfeiçoar o programa, e liberar os seus aperfeiçoamentos de modo que toda a comunidade se beneficie. Helio Gurovitz questiona: “o ponto de Stallman como a distinção entre free speech e free beer é tão sedutor quanto inócuo. Por uma razão trivial: quando você é livre (como em free speech) para copiar um programa sem pagar nada - e o software livre de acordo com sua definição, deve permitir essa liberdade - então o programa se torna gratuito (como em free beer)”[16]



[1] LÉVÊQUE, François; MÉNIÈRE, Yann. Copyright versus patents: the open source software legal battle. Review of Economic Research on Copyright Issues, 2007, v. 4, n.1, p. 27-46

[2] http://pt.wikipedia.org/wiki/Richard_Matthew_Stallman

[3] GUROVITZ. Helio. Linux: o fenômeno do software livre, Ed Abril, 2002. p.44

[4] WO2004068397, US2004158717, WO2004066527, WO2004066084, WO2004051503, EP1358577, US6754891

[5] US5995745, US6782424, WO2004055634, US2004123137

[6] GUROVITZ. Helio. Linux: o fenômeno do software livre, Ed Abril, 2002. p.55

[7] BRASIL, Congresso. Câmara dos Deputados. Comissão Parlamentar de Inquérito da Pirataria – CPI da Pirataria: relatório, Brasília, 2004, p. 276

[8] http://www.stj.jus.br/docs_internet/SumulasSTJ.pdf

[9] http://www.conjur.com.br/2013-nov-01/stj-edita-sumula-afastar-adequacao-social-casos-pirataria

[10] ALBUQUERQUE, Roberto Chacon. A propriedade informática. Campinas:Russel, 2006, p. 48

[11] http://www.cadence.com/support/university/pages/default.aspx

[12] http://www.microsoft.com/brasil/windows/empresas/licenciamento.aspx

https://partner.microsoft.com/download/brasil/40109718

[13] MERGES, Robert; MENELL, Peter; LEMLEY, Mark. Intellectual property in the new technological age. Aspen Publishers, 2006. p.1040

[14] http://www.microsoft.com/en-us/news/exec/craig/05-03sharedsource.aspx cf. MERGES, Robert; MENELL, Peter; LEMLEY, Mark. Intellectual property in the new technological age. Aspen Publishers, 2006. p.1042

[15] http://www.gnu.org/philosophy/free-sw.html

[16] GUROVITZ. Helio. Linux: o fenômeno do software livre, Ed Abril, 2002. p.42

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