sábado, 18 de junho de 2022

Guerra de padrões

 

Um exemplo de de guerra de padrões prejudicial aos consumidores foi a travada entre Sony e a JVC, subsidiária da empresa japonesa Matsushita, quando se definia o padrão de fitas de vídeo cassetes. Embora o padrão Sony/Betamax fosse considerado superior, a empresa se recusou a licenciar sua patente a muitas empresas[1] e o padrão que se estabeleceu foi o VHS/JVC por ser mais aberto e, portanto, de maior difusão.[2] Enquanto o padrão VHS foi licenciado para 38 empresas, o padrão Beta ficou restrito a 12 empresas.[3] Acordos com lojas de aluguel de fitas de vídeo, interessadas em um produto mais barato, contribuíram para o estabelecimento do VHS como padrão de mercado.[4] A Sony por outro lado, ao restringir a difusão de seu padrão como um modelo proprietário subestimou o mercado de alguel de fitas. [5] Ainda no início da décaad de 1980 os aparelhos de videocassetes custavam mais de US$ 1 mil e as fitas mais de US$ 90. As videolocadoras tiveram um papel central na difusão da tecnologia ao possibilitar que os clientes alugassem tento o aparelho quanto a fita. Pressionada pela concorrência da locadoras a Disney começou a ofertar filmes a custo reduzido. O filme “A dama e o vagabundo” foi lançado no mercado por US$ 30 , tendo vendido mais de 3 milhões de coópias, desencadeando novas quedas de preço entre os concorrentes.[6]

Outro exemplo foi a tentativa de implantação de AM estéreo nos Estados Unidos. No final dos anos 1970 diversos sistemas incompatíveis competiam pela aprovação da FCC entre os quais os sistemas da Magnavox, Motorola, Harris e outras empresas. A FCC chegou a estabelecer o padrão da magnavox em 1980 mas logo recuou diante dos protestos, deixando que o mercado estabelecesse o padrão. As emissoras de rádio dentro de um ambiente de incerteza de qual padrão seria adotado preferiam não investir em equipamentos para nova tecnologia. Uma possível coordenação entre as empresas foi vista pela Associação Nacional das Empresas de Radiodifusão como particularmente indesejada face ao risco de enquadramento nas leis antitruste da época.[7]

Na área de tecnologia sem fio foi somente em 1999 quando os maiores fabricantes de tecnologia WiFi (Intersil, 3Com, Nokia, Aironet, Symbol and Lucent) concordaram em um padrão é que a tecnologia conquistou escala.[8]

No século XIX com o desenvolvimento do tráfego ferroviário nos Estados Unidos muitas ferrovias adotaram a bitola de 4 pés e 8 ½ polegadas, popularizada na Inglaterra na área de mineração, porém muitas ferrovias no leste dos Estado Unidos e Califórnia utilizavam bitolas de 5 pés. A Pensilvânia adotava 4 pés e 9 polegadas e a ferrovia Erie inicialmente utilizou 6 pés. Por volta de 1860 haviam seis bitolas diferentes, sendo as mais populares as de 4’ 8 ½ e as de 5 pés. Com as diferenças de padrões o Norte não podia usar com facilidade as ferrovias para deslocar suas tropas para lutar no Sul na Guerra Civil, exigindo o uso de baldeações. [9] Em Erie onde haviam ferrovias com três tipos diferentes de bitolas, protestos populares em 1853 ocorreram por conta dos planos de padronização pois os trabalhadores temiam pelos seus empregos uma vez que a atividade de carregar e descarregar mercadorias e levantar os vagões para trocar suas rodas se tornara uma grande geradora de empregos. A guerra de padrões se encerrou com a intervenção do governo Lincoln que escolheu em 1866 o padrão 4’ 8 ½ para a ferrovia Union Pacific Railroad que se conectaria a várias outras ferrovias.[10] As grandes ferrovias do leste queriam levar os grãos produzidos no oeste para o leste e assim constituíam um forte grupo de pressão para adoção de seu padrão.

Steven Usselman mostra que a empresas de transporte ferroviário tinham por prática o compartilhamento de informações técnicas demonstrando um alto grau de cooperação entre as firmas. Jornais técnicos como o mantido por Alexander Holley difundiam as tecnologias promovendo esta cooperação. A competição se dava em termos de disputas de monopólios de linhas do que na busca de um diferencial competitivo através da inovação tecnológica, uma vez que a maior parte das empresas entendia a padronização como algo que traria benefícios a todos. Uma guerra entre ferrovias rivais se formou na disputa entre empresas ferroviárias de Jay Gould e Cornelius Vanderbilt, porém sem envolver patentes.[11]

A coleta de dados sistemáticos para teste de equipamentos se mostrava mais eficaz quando obtidos dados de diferentes linhas ferroviárias. Os fornecedores de equipamentos tinham interesse nas patentes, como forma de apropriação privada de suas invenções, porém o desenvolvimento destas invenções dependia em grande parte das empresas ferroviárias, interessadas no compartilhamento destas informações técnicas. Desta forma as patentes não tinham um papel no desenvolvimento do setor.[12] Em 1880 foi criada associações para geria a propriedade industrial como a Eastern ou Western Railroad Association (ERA ou WRA) que gerenciava conflitos e disputas legais na área de patentes, como por exemplo as que ocorreram com as patentes de freio de acionamento duplo de Nehemiah Hodge ou a patente (US82843) sobre processo de conversão de madeira em carvão de Jauriet, no entanto o número de litígios foi bem reduzido.

Edgar Thomson realizou contratos individuais com George Westinghouse por sua patente de 1869 relativa a um freio a ar. Para testar sua invenção George Westinghouse convenceu o presidente da Panhandle Railroad a deixar que experimentasse o freio, desde que o inventor pagasse todas as despesas e garantisse o trem em caso de danos. Gerge Westinghouse veio a fundar a Westinghouse Air Brake Company, difundindo sua invenção que se tornou um padrão na indústria ferroviária em poucos anos. O sucesso do empreendimento rendeu muito dinheiro a George Westinghouse que investiu na produção de gás e fabricação de equipamento elétrico.[13]

O acionamento automático de Eli Janney substituiu os antigos engates de vagões por pinos, sujeitos a acidentes com os operadores manuais. O acoplamento de Janney consiste de uma haste ligada à uma junta articulada que, uma vez aberta é empurrada de encontro a outro acoplamento, fechando-se automaticamente por meio de um pino cônico que cai através de furos de registro da haste e da junta. O dispositivo foi patenteado em 1868, porém as ferrovias relutaram em padronizar os seus engates em um artigo patenteado, até que Janney concordou em abrir mão de seus direitos. [14]

Em 1988 a Suprema Corte[15] decidiu uma ação tendo como acusado os fabricantes de instalações elétricas empregadas em edifícios e construções, a National Fire Protection Association (NFPA). A NFPA tinha como padrão o uso de conduítes de aço para proteger a fiação elétrica. A Indian Head, uma empresa relativamente pequena, desenvolveu um modelo alternativo baseado em PVC,mais econômico e de fácil instalação. Por ser um material não condutor era menos sujeito a curto circuito. A Allied Tube & Conduit líder do setor mobilizou seus funcionários para comparecerem maciçamente na reunião de 1981 que decidiu a escolha de novos padrões bloqueando a aprovação do uso do PVC mesmo diante de suas inerentes vantagens técnicas, bloqueando assim uma emenda do Código Nacional de Eletricidade. O novo condutor foi rejeitado em uma votação apertada de 394 contra e 390 a favor. A Indian Head moveu ação contra a NFPA alegando violação do Sherman Act ao configurar prática anticompetitiva e a Suprema Corte confirmou julgamento que conclui pela prática antitruste.[16]

Mesmo países em desenvolvimento com desenvolvimento tardio de padrões tecnológicos podem se utilizar de patentes para alavancar o desenvolvimento tecnológico nacional. O padrão TD-SCDMA utilizado em tecnologia celular 3G foi desenvolvido na China pela Datang Telecom nos anos 1990, tendo sida submetida ao ITU em 1998 até que em 2009 o governo chinês autorizou a China Mobile instalar a tecnologia na China. A inovação foi uma oportunidade de crescimento da Datang Telecom em um mercado dominado pela ZTE e Huawei. O processo de adoção da tecnologia ao longo destes onze meses mostrou-se complexo e envolveu cooperação com as concorrentes ZTE e Huawei com o suporte governamental em um pool chamado TD-Alliance que em 2009 já envolvia um total de 66 empresas, incluindo empresas multinacionais. Fundamental para este acordo foi o grande portfólio de patentes da Datang, que em 2009 chegou a 7 mil patentes com crescimento anual de 40%, sendo que metade referente a tecnologia TD-SCDMA.[17] A presença de um grande portfólio de patentes e produção de tecnologia nacional permitiu acordos com líderes do setor. Segundo Li Shihe da Datang: “propriedade intelectual não deve ser uma barrerira para a comercialização da TD-SCDMA. Ainda que outras empresas como a Qualcomm detenha a titularidade de patentes consideradas essenciais nós podemos negociar com eles. Eu estive com o presidente da Qualcomm e chegamos a um consenso sobre isso”. [18]



[1]  PETROSKI, Henry. Invention by design: how engineers get from thought to thing. Cambridge: Harvard University Press, 1996, p. 112.

[2]  TIGRE, Paulo Bastos. Gestão da Inovação: a economia da inovação no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Elsevier, 2006, p. 233.

[3]  CHANDLER, Alfred. O século eletrônico: a história da evolução da indústria eletrônica e de informática. Rio de Janeiro: Campus, 2002. p. 304, 327.

[4]  CASTONGUAY, Sylvie. 50 years of the vídeo cassette recorder, Geneva: WIPO Magazine, dez. 2006, n.6 p. 10.  http: //www.wipo.int/wipo_magazine/en/2006/06/article_0003.html.

[5] HOVENKAMP, Herbert. Antitrust enterprise: principle and execution, Cambridge:Harvard University Press, 2005, p.3597/4769

[6] SHAPIRO,Carl; VARIAN, Hal R. A economia da informação. Rio de Janeiro:Campus, 1999, p.117

[7] VARIAN, Carl; SHAPIRO, Hal. A Economia da Informação. Rio de Janeiro: Campus, 1999, p. 303

[8] WTO, WORLD TRADE REPORT: Standards, ‘offshoring’ and air transport focus of 2005 WTR, p.37 http://www.wto.org/english/news_e/pres05_e/pr411_e.htm

[9] SHAPIRO,Carl; VARIAN, Hal R. A economia da informação. Rio de Janeiro:Campus, 1999, p.243

[10] HILTON, George. A history of track gauge trains, 2002. Cf. HOVENKAMP, Herbert. Antitrust enterprise: principle and execution, Cambridge:Harvard University Press, 2005, p.3653/4769; CAMP, Sprague. A história secreta e curiosa das grandes invenções.Rio de Janeiro:Lidador, 1964, p. 68

[11] MORRIS, Charles, R. Os magnatas: como Andrew Carnegie, John Rockfeller, Jay Gould e J.P.Morgan inventaram a supereconomia americana, Porto Alegre:L&PM, 2006, p.79

[12] USSELMAN, Steven. Patents purloined: railroads, inventors, and the diffusion of innovation in 19th-Century America, Technology and Culture, v.32, n.4, oct. 1991, p.1047-1075

[13] CAMP, L.Sprague. A história secreta e curiosa das grandes invenções, Rio de Janeiro: Lidador, 1964, p. 74; CHALLONER, Jack. 1001 invenções que mudaram o mundo, Rio de Janeiro:Sextante, 2010, p.384

[14] CAMP, Sprague. A história secreta e curiosa das grandes invenções.Rio de Janeiro:Lidador, 1964, p. 74

[15] Allied Tube & Conduit Corp. v. Indian Head 486 US 492 (1988) cf. HOVENKAMP, Herbert. Antitrust enterprise: principle and execution, Cambridge:Harvard University Press, 2005, p.3737/4769 ; SHAPIRO,Carl; VARIAN, Hal R. A economia da informação. Rio de Janeiro:Campus, 1999, p. 351 http://supreme.justia.com/cases/federal/us/486/492/case.html

[16] LEMLEY, Mark. Intellectual Property Rights and Standard-Setting Organizations, Stanford Law School, April 1, 2002, California Law Review (online), Vol. 90, 2002 UC Berkeley Public Law Research Paper No. 84 , p. 1934 http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=310122

[17] http://en.datanggroup.cn/templates/00Content%20Page/index.aspx?nodeid=18

[18] GAO, Xudong. A latecomer’s strategy to promote a technology standard: the case of Datang and TD-SCDMA. Research Policy, 2013

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