sábado, 11 de junho de 2022

Domínio público e o Mickey Mouse

Na área de direito autoral, Plínio Cabral lembra que “o domínio público, apesar do alto significado cultural moral desse instituto, não está imune às transformações sociais e a interesses que determinem mudanças legais. Portanto, ele pode ser revogado, total ou parcialmente” e cita exemplo de diversos países europeus que tinham em suas legislações a proteção de 50 anos para os direitos autorais. Com a resolução da Comunidade Econômica Europeia, em 1992, de estender este prazo para 70 anos, várias obras que já estavam em domínio público, perderam esta condição, já que o novo prazo legal, em muito casos não havia transcorrido, como por exemplo, no caso das obras de Fernando Pessoa.[1] Nos Estados Unidos com a Lei de Extensão do Período de Copyright Sonny Bono de 1998 (Sonny Bono copyright Term Extension Act) o Congresso norte americano ampliou os períodos dos copyrights existentes e futuros em vinte anos. As obras que tinham vigência e andamento foram beneficiadas com a extensão de prazo de 20 anos[2]. Herbert Hovencamp desta que esta legislação foi resultado da pressão dos estúdios Walt Disney preocupado em proteger Mickey Mouse prestes em entrar em domínio público. Os efeitos retroativos da legislação segundo Hovencamp atuam na defesa de interesses privados em detrimento do interesse público.[3]

Em 2003 a Suprema Corte na decisão Eldred v. Ashcroft[4] discutiu os efeitos de retroatividade da Sonny Bono Copyright Term Extension Act que estendeu a vigências da proteção de copyright de 50 para 70 anos contados da morte do autor. Eric Eldred reuniu um grupo de interesses comerciais e não comerciais que disponibilizava obras de domínio público que passaram a ser protegidas por mais 20 anos. Eric Eldred alegou que isto feria a Cláusula de Copyright da Constituição de que a proteção dos direitos dos autores deveria ter em vista o progresso das ciências e das artes e que portanto a nova lei que prevê proteção por 70 anos não deveria ser aplicada para as obras já protegidas por copyright quando de sua promulgação. A Suprema Corte contudo conclui pela constitucionalidade da lei citando extensões de prazo retroativas similares obtidas na lei de copyright em 1790, 1831, 1909 e 1976, com base em que a expectativa de vida dos autores aumentara significativamente desde o século XVIII e uma vez que o copyright leva em conta a vida do autor deveria ser adaptado a esta realidade. Outro argumento é o de que o tempo de vigência não se trata de uma prerrogativa constitucional, mas do Congresso, de modo que qualquer limite que não seja perpétuo, possui o amparo constitucional. Para a Suprema Corte ao estender a aplicação da regra de 70 anos para os trabalhos já existentes se cria um estímulo para que os autores de obras mais antigas venham a restaurá-las ao reinseri-las no mercado contribuindo desta forma para disseminação de tais trabalhos ao público. Outro aspecto considerado é a existência de Diretiva Européia 93/98/EEC de 1993 que concede proteção de 70 anos aos autores estrangeiros não europeus, apenas se suas leis locais igualmente reconhecerem a vigência de 70 anos. A mudança na legislação americana garantiria assim que os autores norte americanos receberiam na Europa a mesma proteção que os europeus.[5] Diante do lobby da RIAA e da Disney em estender o copyright por 20 anos do Sonny Bono, garantindo a continuidade de proteção para personagens como o Mickey Mouse, Lawrence Lessig conclui: “Como vimos, nosso sistema constitucional estabelece limites de copyright como forma de assegurar que seus titulares não influenciem de forma muito pesada o desenvolvimento e a distribuição de nossa cultura. Ainda assim, como Eric Eldred descobriu, nós criamos um sistema que assegura a repetição indefinida aos termos de copyrights. Nós criamos a tempestade perfeita para o domínio público. Copyrights não expiraram, e não vão expirar, contanto que o congresso esteja livre para ser comprado e estendê-los novamente”.[6]

A Suprema Corte em decisão de 2012 Golan v. Holder decidiu de forma favorável a Seção 514 da lei de copyright promulgada pelo Congresso que permitiu a recaptura de obras de autores estrangeiros que estavam no domínio público no país, como por exemplo, as obras do compositor Sergei Prokofiev. Com a adesão dos Estados Unidos à Convenção de Berna em março de 1989 o país teve de cumprir as disposições do Artigo 18 que exige dos países membros a proteção de obras de estrangeiros exceto se o direito de copyright tenha expirado no país de origem ou no país em que se solicita a proteção. Até antes da adesão à Berna o Estados Unidos somente protegia as obras de estrangeiros para aqueles países que concediam reciprocidade aos autores norte americanos e cujos trabalhos tivesse sido impressos nos Estados Unidos[7], conforme o Chace Act[8] assinado em 1891 como uma fórmula de compromisso para não adesão à Convenção de Berna. [9] Um dos pontos de resistência à adesão dos Estados Unidos à Convençao de Berna era a não obrigatoridade desta em se colocar um aviso no produto comercializado para demonstrar a proteção por copyright e os aspectos relativos aos direitos morais do autor minimizados na legislação norte americana. Peter Drahos observa que mesmo não aderindo à Convenção de Berna muitas editoras nos Estados Unidos obtiam as vantagens do tratado publicando simultaneamente nos Estados Unidos e Canadá.[10]

No Brasil, na época anterior a promulgação do Código Civil em 1917 as obras literárias tinham proteção por direito autoral por cinquenta anos após a publicação da obra. Uma obra de Rui Barbosa publicada em 1905 estaria protegida até 1955. Com a entrada em vigor do novo Código Civil em 1917 a vigência destes direitos se estendeu para 60 anos contados de 1º de janeiro do ano subsequente à morte do autor. Neste caso, como Rui Barbosa faleceu em 1923, o direito desta mesma obra se estenderia para 1983.

Neste exemplo, se a obra houvesse sido cedida contratualmente a terceiros, estes não poderiam se beneficiar da extensão de prazo, mesmo havendo pago por um período de vigência menor. O entendimento do STF, em decisão de 1964 é de que a lei nova deve favorecer ao autor e seus herdeiros e não o cessionário. O preço do acordo sem dúvida teria sido outro se, no dia da cessão, pudesse prever um prazo maior. Este exemplo, mostra um outro caso de extensão de direitos do titular face a mudanças da lei[11].

Na transição para nova LDA este resgate de obras do domínio público para o domínio privado não ocorreu pois o artigo 112 da LDA estabelece que se uma obra, em consequência de ter expirado o prazo de proteção que lhe era anteriormente reconhecido pela lei anterior nº 5988/73 (60 anos) caiu no domínio público, não terá o prazo de proteção dos direitos patrimoniais ampliado por força da nova lei (70 anos). Uma provisão legal que eliminou questões jurídicas que somente foram possíveis no caso de patentes pelo fato da LPI, ao contrário da LDA, não ter previsto claramente esta situação.



[1]  CABRAL, Plínio. Direito Autoral: dúvidas & controvérsias. São Paulo: Harbra, 2000, p. 91.

[2]  GUEIROS, Nehemias. O direito autoral no show business. Rio de Janeiro: Gryphus, 2000, p. 468.

[3] HOVENKAMP, Herbert. Antitrust enterprise: principle and execution, Cambridge:Harvard University Press, 2005, p.3210/4769

[4] Eldred v. Ashcroft, 537 U.S. 186 (2003)

[5] http://en.wikipedia.org/wiki/Eldred_v._Ashcroft

[6] LESSIG, Lawrence. Cultura livre: Como a Grande Mídia Usa a Tecnologia e a Lei Para Bloquear a Cultura e Controlar a Criatividade / Lawrence Lessig.- São Paulo: Trama, 2005 p.222

[7] http://www.supremecourt.gov/opinions/11pdf/10-545.pdf

[8] http://en.wikipedia.org/wiki/International_Copyright_Act_of_1891

[9] MAY, Christopher; SELL, Susan. Intellectual Property Rights: a critical history. Lynne Rjenner Publishers: London, 2006, p.121

[10] DRAHOS, Peter; BRAITHWAITE, John. Information feudalism: who owns the knowledge economy ? The New Press: New York, 2002, p.130

[11]  HAMMES, Bruno. O direito de propriedade intelectual. São Leopoldo: Unisinos, 2002, p. 173.


 

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