domingo, 1 de abril de 2018

John Lock e a propriedade intelectual


Robert Merges refere-se como fundamento da propriedade intelectual as teses de apropriação de Locke resultante do trabalho de criação[1] e o individualismo de Kant. Com John Locke a apropriação individual de bens matérias é justificada no plano político e jurídico como justo resultado do trabalho do homem sobre as coisas, assim como numa perspectiva kantiana essa apropriação se justifica como efeito do livre exercício da vontade e do domínio do sujeito sobre o mundo exterior. [2] Para Locke o direito de propriedade não é absoluto mas prevê uma ressalva “lockean proviso” de modo a atender o direito aos frutos de seu trabalho mas considerando uma justificativa social: “Aquele que pode assegurar seu bem estar com o que já foi obtido, não tem o que reclamar”.[3]  Para Kant a propriedade legal é central para a liberdade humana, uma propriedade que não se restringe a propriedade física de objetos, capaz de maximizar a liberdade de todos os membros da sociedade civil. Diderot, um dos autores da Enciclopédia francesa, depois de explicar os danos causados aos autores e editores pelos contrafatores de livros explica: “com efeito, que bem pode um homem possuir se uma obra do espírito, fruto único de sua educação, de seus estudos, de suas noites insones, de seu tempo, de suas pesquisas, de suas observações, se as mais belas horas, os melhores momentos de sua vida, se seus próprios pensamentos [...] não lhe pertencer ? [...] O autor é mestre de sua obra, ou ninguém na sociedade é mestre de seu bem”.[4]
Ao traçar uma equivalência entre trabalho com direitos de propriedade, Locke confere um status especial ao trabalho intelectual uma vez que o trabalho envolve tanto músculos como a mente: “A natureza nos fornece apenas com o material, na sua grande parte rude e inadequado ao uso; este nos exige trabalho, técnica e pensamento para adequar este material ás nossas necessidades ... Aqui então está um grande campo para o conhecimento, próprio para o uso e vantagem do homem neste mundo; ou seja, para encontrar novas invenções para dar um propósito ou facilitar nosso trabalho, ou aplicar de forma sagaz diversos agentes e materiais juntos, para procurar novas e benéficas produções adequadas para os uso de forma a aumentar o estoque de nossas riquezas, ou para melhor preservá-las: e para tais descobertas deste tipo a mente humana é bem adequada”.[5] Segundo Locke: “Podemos dizer que o trabalho de seu corpo e a obra produzida por suas mãos são propriedade sua. Sempre que ele tira um objeto do estado em que a natureza o colocou e deixou, mistura nisso o seu trabalho e a isso acrescenta algo que lhe pertence, por isso o tornando sua propriedade. Ao remover este objeto do estado comum em que a natureza o colocou, através de seu trabalho adiciona-lhe algo que excluiu o direito comum dos outros homens. Sendo este trabalho uma propriedade inquestionável do trabalhador, nenhum homem, exceto ele, pode ter o direito ao que o trabalho lhe acrescentou, pelo menos quando o que resta é suficiente aos outros, em quantidade e em qualidade”.[6]
Na perspectiva de Locke a natureza nos disponibiliza recursos comuns, de modo que o indivíduo que pelo seu trabalho modifica a natureza, altera esta condição de propriedade comum dando origem a direitos de propriedade. Para Merges o conceito de Locke de recursos originais comuns se ajusta ao conceito de domínio público em propriedade intelectual, ainda que nenhuma transformação da matéria esteja envolvida neste último. O trabalho individual é o que transforma materiais do domínio público em um produto criativo único. Tais conceitos aplicam-se a propriedade inteletual na medida em que a informação embora fácil de ser compartilhada, especialmente com a internet, continua sendo difícil de criar informação nova e útil. Assim a teoria de Locke aplica-se igualmente a bens não rivais, como a informação. O trabalho dirigido para um fim útil justifica a apropriação privada e o escopo desta apropriação é determinado pela extensão do trabalho. [7] Posner, em uma crítica a Locke, destaca que diante do fato de que a criação é um processo cumulativo coletivo não está claro em que grau a propriedade intelectual pode realisticamente ser considerada o fruto exclusivo do trabalho de seu criador.[8] Para Ygor Valerio: “nem todos os bens apropriados originariamente por meio de direitos de propriedade intelectual são resultado de aposição de trabalho a objetos no estado em que a natureza os colocou, havendo enorme parcela (a maioria, arriscamo-nos a dizer) que deriva de reelaborações sobre objetos que não existem senão em razão do trabalho de outro homem”.[9]


John Locke [10]



[1] MAY, Christopher; SELL, Susan. Intellectual Property Rights: a critical history. Lynne Rjenner Publishers: London, 2006, p.20
[2] MALAVOTA,Leandro Miranda. A construção do sistema de patentes no Brasil: um olhar histórico, Rio de Janeiro:Lumen Juris, 2011, p. 21
[3] LOCKE, John. Two treatises concerning government, Cambridge:Cambridge University Press, 1988, cf. MORRIS, Julian, Ideal Matter: a globalização e o debate sobre a propriedade intelectual. Rio de Janeiro:instituto Liberal, 2003 p.28
[4] CHARTIER, Roger. Carta sobre o Comércio do Livro de Denis Diderot. Rio de Janeiro:Casa da Palavra, 2002, p.68
[5] KING, Peter. The life and letters of John Locke, with extracts from his journals and commonplace books: with a general índex. New York:B. Franklin, 1972 cf. ROSEN, William. The most powerful idea in the world: a story of steam, industry and invention. Randon House, 2010, p. 1245/6539 (kindle edition)
[6] LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil e Outros Escritos. São Paulo: Editora Vozes, 1999. p.98-99 cf. VALERIO. Ygor. Imperfeição da teoria da apropriação laboral para as criações intelectuais – revisitando John Locke, 2014, http://www.migalhas.com.br/PI/99,MI212087,31047-Imperfeicao+da+teoria+da+apropriacao+laboral+para+as+criacoes
[7] MERGES, Robert. Justifying Intellectual Property, Harvard University Press, 2011, p. 755/6102 (kindle version)
[8] LANDES, William; POSNER, Richard. The economic structure of intellectual property law. Cambridge:Harvard University Press, 2003, p.4
[9] VALERIO. Ygor. Imperfeição da teoria da apropriação laboral para as criações intelectuais – revisitando John Locke, 2014, http://www.migalhas.com.br/PI/99,MI212087,31047-Imperfeicao+da+teoria+da+apropriacao+laboral+para+as+criacoes
[10] https://pt.wikipedia.org/wiki/John_Locke

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