Caio Prado Júnior adverte
que os atos oficiais expedidos pela Coroa Portuguesa constituem apenas um dos
aspectos, e dos menos profundos, que marcaram uma política de desincentivo à
industrialização no país. O regime econômico baseado no latifúndio e na
exploração da mão de obra escrava e em recursos naturais abundantes com vistas
à exportação para metrópole constituem fatores muito mais importantes, uma vez
que não demandam inovações tecnológicas.[1] Nas palavras de Fernando de Azevedo: “a escravatura desonrou o trabalho nas
suas formas rudes. Enobreceu o ócio e estimulou o parasitismo, contribuiu para acentuar
entre nós a repulsa pelas atividades manuais e mecânicas, e fazer-nos
considerar como profissões vis as artes e os ofícios. Segundo a opinião
corrente, trabalhar, submeter-se a uma regra qualquer, era coisa de escravo”[2].
Nos Estados Unidos Charles Dew mostra que o sul escravocrata,
embora com seu entusiasmo pela manufatura manteve-se atrasado em relação ao
norte do país até a Guerra de Secessão em 1867: “ao contrário dos artesãos
livres do Norte, os escravos do sul tinham poucas oportunidades para viajar,
visitar outros estabelecimentos industriais, aprender novas técnicas,
testemunhar avanços tecnológicos e adquirir conhecimento científico”. Sem a necessária mobilidade e trabalho a
economia escravocrata do sul tinha poucos incentivos para inovar.[3]
Luis Antônio Cunha ao analisar a origem do
ensino de ofícios artesanais e manufatureiros no Brasil mostra que a escravidão
determinou o desprezo pelos “ofícios mecânicos” considerados “coisa
de escravo” no Brasil Colônia e Império. Com isso a aprendizagem de ofícios
acabou sendo imposta a quem não tinha meios de resistir – órfãos, abandonados,
miseráveis – atitude que por sua vez reforçou o sentido de desvalor para tais
atividades[4]. Entres
estas instituições pode-se destacar a Casa Pia de São José na Bahia, Companhia
de Aprendizes Menores do Arsenal de Guerra do Rio de Janeiro e Casa de
Educandos Artífices do Pará. Celso Sukow em sua história sobre o ensino
industrial no Brasil destaca que no Brasil, o ensino de ofícios nasceu
dissociado dos processos de educação: “de
um lado o encargo dos trabalhos pesados dado inicialmente aos índios e, depois,
aos escravos, e de outro, a espécie de educação que os padres da Companhia de
Jesus ofereciam aos colonizadores, criaram uma mentalidade que levou à
filosofia do desprezo pelo ensino de ofícios. Nossas populações habituaram-se a
ver naquele ramo da instrução qualquer coisa de degradante, de humilhante, de
desprezível”. Em 1819, o ensino de ofícios passou a ser destinado, também,
aos órfãos, aos pobres, aos deserdados da fortuna com a criação do Seminário
dos órfãos na cidade de Salvador: “A
filosofia que vinha presidindo àquele ramo de instrução voltava-se, assim,
também, para outros desgraçados. Já não o encarava mais como aplicável somente
aos índios e escravos, destinava-o, também, daí por diante, aos miseráveis, aos
infelizes, aos que não tinham arrimo nos pais”.
Não há, portanto, como não reconhecer as marcas na cultura e na
sociedade brasileira de um longo período de escravidão. Desta forma, no Brasil
escravocrata qualquer tentativa de inovação tecnológica tinha de enfrentar
resistências de um sistema hostil a tais inovações. Em 1816 Manuel Jacinto de
Sampaio procurava aplicar em sua propriedade na Bahia técnicas modernas para o
aumento de produtividade, algumas por ele patenteadas,[5] e era
ridicularizado pelos demais engenhos de açúcar recebendo a alcunha de “Engenho
da Filosofia”. Nos engenhos de açúcar as primeiras experiências com uso de
motores a vapor seriam tentadas em 1810 porém sem sucesso pela falta de
técnicos que as soubessem operar.
Segundo Clóvis Rodrigues “de modo geral, porém,
pode-se afirmar que o uso do vapor não teve entre os proprietários de engenhos
brasileiros, acolhida alvissareira. Sente-se que presos à velhas rotinas do
passado, os senhores rurais persistiram em mantê-las, talvez por idiossincrasia
às inovações do progresso. Por essa razão o emprego industrial do vapor não
teve a disseminação que era de esperar, tal como teve na Inglaterra e nos
Estados Unidos, e que serviu de fator decisivo ao desenvolvimento tecnológico
desses países”. Na produção de algodão, as máquinas de descaroçamento de
algodão inventadas por Eli Whitney em 1792 e em pleno uso nos Estados Unidos no
início do século XIX eram desconhecidas no Brasil [6] Em torno de 1860 cerca de 70% dos engenhos cubanos usavam máquinas a vapor ao
passo que este percentual era de apenas 2% em Pernambuco[7] Leandro Malavota identifica uma pressão
pela modernização, contudo sem efeitos notam-se de forma muito gradual: “na
cultura açucareira nordestina, por exemplo, um número significativo de senhores
de engenho é levado a investir na modernização da produção a partir dos anos
setenta, sob o imperativo de fazer frente á queda dos preços internacionais e à
superioridade da concorrência estrangeira (principalmente cubana) [...] Enfim é
possível afirmar que a tecnologia ganha espaço e importância dentro de
diferentes espaços que compunham o cenário econômico nacional na segunda metade
do Oitocentos, da mesma forma como em outras partes do mundo. Reiteramos, contudo,
o caráter gradual dessa valorização, cuja maturação é lenta e somente se
consuma no último quartel do século”.[8]
Clóvis Rodrigues aponta que neste cenário adverso ainda que
surgissem algumas inovações, estas algumas vezes acabariam exploradas no
estrangeiro. O autor cita a invenção dos engenheiros ingleses de origem
francesa Alfredo e Eduardo Mornay, radicados em Pernambuco, construtores de uma
moenda para engenhos de açúcar a qual José Maria da Silva Paranhos nas suas “Cartas
ao Amigo Ausente” de 1836 esclarece ter sido concedida patente aos citados
inventores. A moenda a vapor foi instalada no engenho Caraúna em Joboatão e
fabricada pela Fundição Aurora dos ingleses Harrington&Star do Recife [9] O invento foi utilizado em moenda em Liverpool, Inglaterra utilizando cana da
ilha da Madeira, o que atraiu o interesse de ricos proprietários de engenhos
nas Antilhas a se associarem aos dois inventores [10]
O português Henry Koster que veio ao Brasil em 1809 e se tornou
senhor de engenho e plantador de cana-de-açúcar relata em seu livro “Travels
in Brazil” o invento do brasileiro Leandro Guimarães que aperfeiçoou um
engenho aplicando nas moendas cilindros horizontais ao invés de verticais, como
antes se usava e ao mesmo tempo introduziu modificações nas rodas hidráulicas [11] Domingos do Loreto Couto em obra escrita em 1757 relata a invenção do alferes
Antonio Carvalho Guimarães para uma máquina de lavrar açúcar utilizada nos
engenhos de Pernambuco, para a qual foi apresentado descrição dirigida aos
senhores do Senado da Câmara em 1697, e que chegou a ser licenciada para alguns
senhores de engenho ao custo de quatrocentos mil réis, ou por meio de uma
pensão anual de quatro por cento do rendimento total do engenho [12] Nuno Carvalho aponta este exemplo como um dos precursores no licenciamento de
invenções no mundo [13]
Também Visconde de Cairu argumentava que em um país
escravocrata os escravos raramente eram inventores e que todos os melhoramentos
eram obras de homens livres e caso um escravo propusesse ao senhor uma invenção
que facilitasse e agilizasse a produção este seria tachado como preguiçoso e
indolente e provavelmente seria castigado pelo senhor [14] Em 1808 o inglês John Luccock ao visitar o Brasil comentou que os brancos se
sentiam “fidalgos demais para trabalhar em público”. Meio século depois
Thomas Ewbank dizia que “um jovem preferiria morrer de fome a abraçar uma
profissão manual”. Segundo ele a escravidão tornara “o trabalho
desonroso – resultado superlativamente mau, pois inverte a ordem natural de
destrói a harmonia da civilização”.
Pelourinho, Debret
[1] PRADO JÚNIOR, Caio. História Econômica do Brasil, Rio de Janeiro: Brasiliense, 1979, p. 109.
[2] AZEVEDO, Fernando. A transmissão da cultura, Rio de Janeiro: INL, 1976, p. 81.
[3] SMITH, Merritt Roe; MARTELLO, Robert. Taking stock of the industrial revolution in America. In: HORN, Jeff; ROSENBAND, Leonard; SMITH, Merritt Roe. Reconceptualizing the Industrial Revolution, London:MT Press, 2010, p.180
[4] CUNHA, Luis Antonio. O ensino dos ofícios artesanais e manufatureiros no Brasil escravocrata. São Paulo: Unesp, 2005.
[5] MALAVOTA,Leandro Miranda. A construção do sistema de patentes no Brasil: um olhar histórico, Rio de Janeiro:Lumen Juris, 2011, p. 93
[6] MOTOYAMA, Shozo. Prelúdio para uma história: Ciência e Tecnologia no Brasil, São Paulo: Edusp, 2004, p. 143, RODRIGUES, Clóvis. A inventiva brasileira. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1973, p. 183.
[7] FAUSTO, Boris. História do Brasil, São Paulo:Edusp, 1994, p. 239.
[8] MALAVOTA,op.cit.p.190
[9] TELLES, Pedro. História de Engenharia no Brasil. Rio de Janeiro: Clube de Engenharia, 1994, p. 185.
[10] RODRIGUES, Clóvis da Costa. A inventiva brasileira. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1973.p.137.
[11] RODRIGUES.op. cit. p. 141.
[12] FERRAZ, Socorro. Documentos manuscritos avulsos da Capitania de Pernambuco, Volume 1. Arquivo Histórico Ultramarino Lisboa, Portugal, Projeto Resgate de Documentação Histórica “Barão do Rio Branco”. Editora Universitária UFPE, 2006.
[13] CARVALHO, Nuno. A estrutura dos sistemas de patentes e de marcas: passado, presente e futuro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 313.
[14] MARTINS, Mônica de Souza Nunes. Entre a cruz e o capital: mestres, aprendizes e corporações de ofícios no Rio de Janeiro (1808-1824). Tese de Doutorado Curso de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Orientador: Prof° Dr. José Murilo de Carvalho, Rio de Janeiro, 2007, p. 175.
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